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Sociologia, Problemas e Práticas

versão impressa ISSN 0873-6529

Sociologia, Problemas e Práticas  no.96 Lisboa ago. 2021  Epub 11-Out-2021

https://doi.org/10.7458/spp20219620915 

Recensões

Resonance. A Sociology of Our Relationship to the World [Hartmut Rosa, 2019, Cambridge, Polity Press, pp. 450]

1 Iscte - Instituto Universitário de Lisboa (Iscte), CIES-Iscte, Lisboa, Portugal


O livro Resonance de Hartmut Rosa é porventura o diagnóstico mais completo da relação paradoxal dos seres humanos com o mundo na formação social da modernidade tardia. É para além disso um tour de force sociológico dado que recentra as questões da crise da modernidade nas suas causas estruturais e socioculturais obrigando-nos a repensar as diversas investidas psicologizantes na explicação da nossa relação com os objetos que nos rodeiam (sociais, materiais ou ideais, assim como as três esferas de ressonância que abordaremos em baixo).

A premissa é a de que a modernidade trouxe condições radicalmente diferentes que se podem caracterizar como de “intensificação em escalada”, que resultam atualmente, segundo este diagnóstico, numa crise sem precendentes nas relações ambientais, políticas e subjetivas dos seres humanos com o mundo. A causa desta crise encontra-se no facto de a estratégia estruturalmente institucionalizada e culturalmente legitimada de “expansão incessante” ter resultado no “emudecimento dos eixos de ressonância” (Rosa, 2019: 10).

O livro apresenta duas grandes linhas de argumentação que se vão entretecendo ao longo dos seus capítulos. Por um lado, a intenção de fundar uma sociologia da nossa relação com o mundo cujo eixo seja o conceito de ressonância. Por outro, a capacidade de justificar, com base nesse conceito, uma apreciação normativa do que deve ser a “boa vida”.

Ressonância não é uma categoria ou um recurso que se obtenha. Ressonância é um modo de relação com o mundo. A nossa condição primordial perante o mundo é de ressonância. As nossas primeiras aproximações ao mundo quer corpóreas quer interpretativas são, quando eficazes, ressonantes. Assim o primeiro contacto do bebé com o mundo no seu ambiente uterino (ibid.: 50); da mesma forma, os contactos corporais com os outros significativos que se lhe sucedem (ibid.: p. 50 e seguintes).

Rosa define ressonância a partir da discussão clássica sobre o que é boa vida. Porém, o caminho selecionado não é o típico nestas discussões cujas premissas derivam essencialmente da ciência ou da filosofia políticas e cuja tónica tem sido colocada no princípio da maior autonomia.

De acordo com Rosa, na sociedade capitalista a qualidade de uma vida é aferível e baseia-se esta na acumulação de recursos e possibilidades. Ora esta lógica acumulativa, diz-nos Rosa, ajusta-se às exigências estruturais da formação social da modernidade (capitalista, racional, individualizadora), mas não esgota de nenhum modo a relação do sujeito com o mundo. Pelo contrário, é geradora de “zonas de mutismo”, ou seja, comportamentos e atitudes alienados aos quais Rosa contrapõe os momentos de ressonância.

Neste sentido, a qualidade de vida depende da qualidade da relação do self com o mundo (subjetivo, objetivo e social). Ou seja, das modalidades em que o self e o mundo entram em relação - como o self experiencia o mundo.

Nesta relação, existe ressonância quando o sujeito experiencia o mundo como se este lhe respondesse, ou o sustentasse - uma conexão constitutiva da própria identidade do sujeito. Como diz Rosa noutra sede, apresentando uma fórmula concisa de definir um conceito que ele próprio reconhece como sendo intrincado: “um modo em que o self é afetado, tocado, ou interpelado, mas em que também se sente capaz de tocar ou alcançar o mundo exterior”1 (Dorre, Lessenich e Rosa, 2015: 306). Às relações ressonantes, opõe-se relações alienadas. Este conceito possui um longo historial no pensamento social, em particular na teoria crítica. Contudo, como estamos perante uma sociologia das relações com o mundo, alienação define-se como “uma relação de não relação (a relation of relationless, no original). Alienação compreende assim uma relação com o mundo em que sujeito e mundo se confrontam com indiferença ou repulsa (Rosa, 2019: 184).

Tratando-se de uma “sociologia da nossa relação com o mundo” [Weltbeziehung], a premissa é justamente que a maneira como os sujeitos experimentam e se apropriam desse mundo nunca é simplesmente individual, mas sempre mediada sociocultural e socioeconomicamente. Contudo, a ressonância não é o modo efetivo da nossa relação com o mundo em condições de modernidade (tardia) e da sua lógica de reprodução capitalista. A lógica acumulativa, instrumental, gerou maioritariamente dois outros modos: a indiferença - relação propriamente instrumental com o mundo - e a repulsa - relação de evitamento do mundo. Por conseguinte, à possibilidade de ressonância opõe-se a circunstância da alienação.

Estes dois polos delimitam as possibilidades de interpretação crítica relativamente a uma sociedade estruturalmente institucionalizada e socioculturalmente legitimada em torno de modos de relação com o mundo que são fundamentalmente alienantes. Dito de outra forma, a modernidade é caracterizada pela dialética entre alienação e ressonância, e o potencial para a segunda tem sido esvaziado pela prevalência da primeira.

A um nível individual, se quisermos, biográfico, há resultados diferenciados de tal relação com o mundo (dos sujeitos e dos objetos) que prefiguram uma vida bem ou malsucedida. A interpretação destas duas condições sociais não é feita em termos de recursos e da acumulação dos mesmos, o que equivaleria a sustentar a mundividência própria da sociedade capitalista, que Rosa critica. Aliás, é também uma reserva endereçada à sociologia das desigualdades, preocupada fundamentalmente com os diferenciais na obtenção de capitais.

Ao invés, existem diversas esferas de ressonância, às quais Rosa dedica toda a segunda parte do livro, explicitando os seus conteúdos e formas sociais. Desde logo, oferece uma classificação geométrica das mesmas: horizontais - que compreendem as relações sociais (família, amor, amizade) -, diagonais - relativas ao mundo das coisas (escola, trabalho, desporto) - e verticais - de dimensão existencial, ou que visam a totalidade (uma experiência religiosa ou estética) (Rosa, 2019: 172).

Cada sociedade estrutura de determinada forma estas esferas dentro das quais os membros podem construir eixos individuais de ressonância. Na modernidade, estas formas oscilaram entre ressonância e alienação. Com efeito, nas partes III e IV do livro, Rosa introduz o conceito de “aceleração social” que o celebrizou através duma sua obra anterior.2 Segundo este conceito, a sociedade capitalista moderna deve permanecer em perpétua expansão para se reproduzir cultural e estruturalmente, ou seja, deve permanecer dinamicamente acelerada, uma condição que o autor designou por “estabilização dinâmica” (Rosa, 2013: 187).

O problema, conclui, é que este imperativo da aceleração gerou múltiplas crises, de natureza biopsíquica, ecológica e política. O modo atual de relação com o mundo é instrumental, caracterizado pelo “fetichismo dos recursos”, e compulsivamente concentrado na intensificação das tarefas e dos objetivos; como diz Rosa “independentemente do quão criativos, ativos, e rápidos fomos este ano, no próximo ano teremos que aumentar” (Rosa, 2019: 427).

Num tal contexto, encontram-se assim acessíveis as condições sociais e políticas para lançar um programa para a ressonância? Rosa considera que sim; e contra o pessimismo que ausculta nos seus críticos - devidamente organizado num capítulo com esse mesmo título - descreve as principais linhas desse programa.

Com o espaço que nos fica aqui reservado, convirá apenas salientar aqueles que se afiguram ser os seus princípios norteadores. Primeiro, uma política da desaceleração. Se o mote funcional da modernidade foi o da aceleração sistémica, a crítica progressista da mesma terá que se basear na exigência de desaceleração. Não por acaso, numa entrevista recente,3 Rosa afirma a necessidade de aproveitar a inércia lançada pela pandemia do covid-19 para uma inflexão em direção à desaceleração generalizada. A obtenção de ressonância convida a uma ressincronização, i.e., a um reencontro entre os nossos eixos de ressonância individuais e os tempos sociais institucionalizados, por oposição à dessincronização, em particular a desvinculação dos tempos da política e dos desenvolvimentos socioculturais.

Segundo, um projeto para uma sociedade pós-crescimento. Este deve necessariamente assentar numa reincorporação das forças do mercado e da sua “cega compulsão para a intensificação” na vida sociocultural da sociedade. Prima facie, uma tal proposta não difere na sua essência das leituras da colonização do mundo da vida (Habermas, 1992 [1988]) ou do reconhecimento (Honneth, 1995).

Contudo, a proposta torna-se demasiado frágil para sustentar um real programa político emancipatório. Rosa pretende que a sua teoria da ressonância pode refletir criticamente sobre as possibilidades de construção dum mundo onde “os padrões não sejam a dominação e o controlo, mas o escutar e responder” (Rosa, 2019: 428). Aceitando o programa da desaceleração como normativamente viável, Rosa revela alguma ingenuidade quando vê esta como estruturalmente inócua, apenas concentrando os seus efeitos na reativação de eixos de ressonância, como mostram, por exemplo, os seus comentários algo extemporâneos sobre a pandemia enquanto “ocasião para redesenhar o mundo” [entrevista referida acima]. Como pode ser factual e quotidianamente comprovado, a desaceleração do covid não lançou os sujeitos num reencontro com o mundo, como por vezes Rosa afirma, mas sim numa crise generalizada de proporções ainda mal aferíveis. Em vez de multiplicação de eixos individuais de ressonância, assistimos à disseminação de bolsas de alienação e insegurança cujas consequências são imprevisíveis. Porém, mais enigmática, é a certeza com que Rosa parece afirmar que relações de competição - tais como as criticadas no atual modelo acumulativo e concorrencial de vida - não podem ser geradoras de ressonância (Rosa, 2019: 203), “salvo em atividades recreativas ou competições atléticas” (sic). Uma crítica a esta assunção mereceria com certeza maior desenvolvimento; aqui podemos apenas perguntar, sendo o último juiz da ressonância o próprio ator, como se parece depreender da noção de que os seres humanos possuem “eixos individuais de ressonância”, quem adjudicaria o que é boa ou má ressonância?

Para além dos aspetos normativistas anteriores, em termos teóricos, adiciono apenas dois comentários que se afiguram relevantes. Primeiro, o livro de Rosa abre todo um campo de investigação e reflexão sociológica que gostaria de classificar como de pós-regulatória. De um ponto de vista trivial, a palavra norma ou a expressão normas sociais surge no texto apenas cinco vezes - num livro com mais de quinhentas páginas parece revelador. Mas, mais teoricamente substancial, o facto de formulações clássicas em torno da integração através das normas ou de regras (legítimas) serem preteridas em favor da recuperação de um caminho fenomenológico que incide sobre a intersubjetividade enquanto relação com o mundo4 e que é conceptualizado enquanto “eixos de ressonância” orienta o pensamento social numa direção que é estranha à própria teoria crítica mais recente (de Habermas a Honneth, onde o poder regulador das normas sociais é ainda estruturante duma racionalidade dos comportamentos).

Segundo, por vezes, ao longo do livro, julgamos aproximarmo-nos perigosamente do discurso da new age, com expressões como “oásis de ressonância” ou “respostas do mundo”, formulações pouco operativas analiticamente em sociologia. Em todo o caso, o projeto da teoria crítica sempre rejeitou a prisão da operacionalização e abraçou a capacidade da abstração e transcendência conceitual. Ficará eventualmente para académicos de inclinação mais empirista a capacidade para estabelecer relações hipotético-dedutivas a partir do material elaborado pela teoria da ressonância. O que parece ser efetivo, é a teoria crítica, nos moldes dos seus grandes mentores tais como Adorno ou Benjamin se encontrar relançada através deste Resonance.

Referências bibliográficas

Habermas, Jurgen (1992 [1988]), Legitimation Crisis, Cambridge, Polity Press. [ Links ]

Honneth, Axel (1995), The Strugle for Recognition, Cambrige, Polity Press. [ Links ]

Rosa, Hartmut (2013), Social Aceleration. A New Theory of Modernity, Nova Iorque, Columbia University Press. [ Links ]

Dorre, Klaus, Stephan Lesseni e Hartmut Rosa (2015), Sociology, Capitalism, Critique, Londres, Verso. [ Links ]

Rosa, Hartmut (2019), Resonance. A Sociology of Our Relationship to the World, Cambrige, Polity Press. [ Links ]

1Esta definição possui a virtude de condensar aquela que é oferecida numa caixa de destaque no livro (Rosa, 2019: 174).

2Social Aceleration. A New Theory of Modernity (2013).

3https://www.uni-jena.de/en/200403_Rosa_Interview

4A referência aqui é Merleau-Ponty, cuja centralidade para a teoria social já tinha sido salientada por Margaret Archer, no seu Being Human; sobretudo, no que respeita a corporalidade das nos sas interações com pessoas e objetos como sendo orientada por intencionalidade e comporta mentos avaliativos.

Recebido: 17 de Setembro de 2020; Aceito: 23 de Setembro de 2020

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