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Sociologia, Problemas e Práticas

versão impressa ISSN 0873-6529

Sociologia, Problemas e Práticas  no.100 Lisboa dez. 2022  Epub 18-Fev-2023

https://doi.org/10.7458/spp202210028194 

Em memória

EM MEMÓRIA DE JOÃO FERREIRA DE ALMEIDA

António Firmino da Costa1  , conceptualização, análise, redação, revisão
http://orcid.org/0000-0002-3413-8919

1 Iscte — Instituto Universitário de Lisboa, Centro de Investigação e Estudos de Sociologia (CIES-Iscte), Lisboa, Portugal,


Foi com imenso pesar que soubemos do falecimento do professor João Ferreira de Almeida, no passado dia de 16 de junho deste ano de 2022. Tinha 81 anos.

João Ferreira de Almeida é uma referência fundamental da sociologia em Portugal. Quando a revista Sociologia, Problemas e Práticas foi criada, em 1986, ele era já o sociólogo mais destacado do ISCTE e um dos grandes nomes da sociologia no país. Licenciou-se em direito, em 1964, mas desde muito cedo se interessou profundamente pelas ciências sociais e, em especial, pela sociologia. No início dos anos 1970, ingressou no Gabinete de Investigações Sociais (futuro Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa), liderado por Adérito Sedas Nunes, e que tinha sido criado poucos anos antes, de certo modo em contracorrente intelectual perante o quadro político não democrático e culturalmente fechado que até então vigorava.

Pouco depois, João Ferreira de Almeida integrou também o Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa, criado em 1972, no âmbito da reforma Veiga Simão. O ISCTE fazia parte dessa tentativa de modernização universitária, ainda bastante limitada pelas circunstâncias da ditadura. Em breve, porém, com o 25 de Abril de 1974 e a consequente abertura democrática, gerou-se uma dinâmica de grande intensidade e criatividade no ISCTE, tendo como uma das suas vertentes principais uma licenciatura em sociologia, a primeira a integrar esta área de conhecimento no sistema universitário público português. João Ferreira de Almeida foi interveniente central desse duplo desenvolvimento: quer do ISCTE como uma instituição recente e inovadora do sistema nacional de ensino superior, quer da sociologia como uma área de formação universitária e de investigação científica no país.

Remonta já a essa fase - anos 1970 e 1980 - um conjunto de contributos científicos de João Ferreira de Almeida, extremamente relevantes, sobretudo em torno de três domínios: os fundamentos epistemológicos e metodológicos da investigação em ciências sociais; os estudos sobre as transformações do espaço rural numa sociedade em transição; as teorias, pesquisas e análises sobre classes sociais e estratificação social. Grande parte da formação das sucessivas gerações de sociólogos portugueses, e grande parte da investigação sociológica desenvolvida no país desde então, foram - e ainda são - largamente inspiradas por esses núcleos fundamentais da obra científica de João Ferreira de Almeida. A sua tese de doutoramento em sociologia (1984), uma das primeiras defendidas no ISCTE e nesta área no país, depois publicada em livro (1986) com o título de Classes Sociais nos Campos, ilustra de maneira exemplar esses temas relevantes do conhecimento sociológico. Em 1991 realiza provas de agregação, também em sociologia e, nesse mesmo ano, torna-se professor catedrático.

Os domínios de estudo e investigação em sociologia acima referidos continuaram sempre a ser retomados por ele ao longo do tempo; porém a sua vasta produção científica foi-se desdobrando por vários outros focos de interesse analítico e trabalho de pesquisa, com contributos também da maior importância, nomeadamente sobre exclusão social, juventude, valores e ambiente. Em toda a sua atividade científica, conjugou sempre grande profundidade teórica e grande rigor metodológico com uma não menor abertura à mudança social e ao pluralismo intelectual.

Em paralelo com a docência, a investigação e a publicação científica, João Ferreira de Almeida realizou igualmente uma atividade institucional notável. Foi fundador da Associação Portuguesa de Sociologia (1985), seu primeiro membro e seu primeiro presidente. No ISCTE, entre outros cargos, foi presidente do Departamento de Sociologia, presidente do Conselho Científico e presidente do próprio Instituto, entre 1992 e 2005, período de forte afirmação universitária, alargamento disciplinar e proliferação de iniciativas. Ainda no ISCTE foi fundador e primeiro diretor da revista Portuguese Journal of Social Science. Noutros espaços institucionais foi, entre outras participações, membro do Conselho Consultivo da Junta Nacional de Investigação Científica e Tecnológica (JNICT), membro do Conselho Científico para as Ciências Sociais e Humanas da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT), membro do Standing Committee for the Social Sciences da European Science Foundation e membro do Scientific Advisory Board do European Social Survey.

João Ferreira de Almeida jubilou-se em 2011, mantendo-se como investigador integrado no Centro de Investigação e Estudos de Sociologia (CIES-Iscte). O Iscte atribuiu-lhe o título de Professor Emérito. Anteriormente, em 1998, tinha sido condecorado pelo Presidente da República Jorge Sampaio, como Grande Oficial da Ordem de Santiago e Espada (Mérito Científico). Mais tarde, em 2018, foi-lhe atribuída a Medalha de Mérito Científico pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior.

A revista Sociologia, Problemas e Práticas teve a oportunidade de publicar, ao longo dos anos, vários artigos de João Ferreira de Almeida, como autor singular ou em coautoria com outros colegas. Uma das suas características era o modo como cultivava a colaboração e a partilha na atividade científica, trabalhando em projetos de investigação e em publicações científicas com outros participantes, de várias gerações. Esses artigos abordam temas como classes sociais e estudantes universitários, valores e mudança social, metodologias de avaliação, trabalhar e ensinar em sociologia, classes sociais no espaço europeu, problemas epistemológicos das ciências sociais, bases sociais do autoritarismo e nacionalismo em países europeus. Participou ainda, na revista, numa entrevista sobre o projeto e o futuro do ISCTE, realizada a três personalidades-chave do Instituto, por ocasião dos 20 anos deste. Quanto aos artigos, o primeiro foi publicado em 1988 e o último em 2021 - uma colaboração que decorreu, pois, ao longo de praticamente toda a existência da revista.

Como tive ocasião de dizer no seu funeral, João Ferreira de Almeida era um cientista e universitário de elevadíssima craveira, um construtor de instituições e agregador de pessoas, um democrata convicto, um cidadão responsável. Era afável, divertido, tranquilo, despretensioso, informal. Tinha uma inteligência límpida e uma grande lucidez. Possuía uma cultura vasta, profunda e estruturada. Tinha convicções fortes e, ao mesmo tempo, um grande respeito pela diversidade de opiniões, pelo pluralismo.

É uma grande pena não podermos contar já com a presença dele. A sua obra científica e institucional, contudo, assim como o seu exemplo de democracia e civilidade, continuará a ser uma inspiração para muitos de nós.

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