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Sociologia, Problemas e Práticas

versão impressa ISSN 0873-6529

Sociologia, Problemas e Práticas  no.100 Lisboa dez. 2022  Epub 18-Fev-2023

https://doi.org/10.7458/spp202210028146 

Recensão

Além do Cânone. Para Ampliar e Diversificar as Ciências Sociais [Celso Castro (org.), 2022, Rio de Janeiro, FGV Editora, pp. 319]

João Felipe Pereira Brito1 
http://orcid.org/0000-0001-5752-9560

1 Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, Lisboa, Portugal, Email: brito.jfp@gmail.com


Além do Cânone. Para Ampliar e Diversificar as Ciências Sociais (2022) é o mais recente livro do antropólogo e historiador brasileiro Celso Castro, publicado pela editora da Fundação Getulio Vargas, tradicional instituição de ensino e pesquisas do Rio de Janeiro, onde Castro é professor e pesquisador e, também, diretor da Escola de Ciências Sociais (FGV CPDOC). Em março de 2022, pude acompanhar o lançamento do livro em Lisboa, com a presença do autor e debate subsequente. Esta recensão é uma tentativa modesta de sintetizar a importância desta obra e de seus conteúdos.

A imagem escolhida para a capa da obra celebra a capacidade humana “de mudar de uma perspectiva para outra” em prol de uma “visão mais adequada” das sociedades e seus componentes, conforme Wright Mills citado por Castro (p. 11). Trata-se do desenho “América invertida”, do artista uruguaio Joaquín Torres García (1874-1949). Nele, vemos uma inversão vertical da costumeira representação cartográfica de América do Sul e América Central. O sentido dessa escolha, explica Castro, é transmitir a ideia de que “os textos e autores aqui reunidos” possam nos ajudar “a ver o mundo de uma maneira mais complexa e diversa” (p. 12). Uma coletânea, como um mapa, possui a capacidade de (re)apresentar o mundo, suas ideias e signos. Contudo, a ressignificação de um cânone há muito estabelecido, como veremos, vai muito além da estratégia de inversão.

Ainda na capa, Castro apresenta-se como organizador do livro, e isso já nos traz informação relevante sobre seu conteúdo. O livro não é um tratado autoral e crítico sobre a qualidade ou relevância dos textos clássicos que formam o cânone ocidental das ciências sociais. Ele é, sim, uma coletânea de textos pioneiros ou com contribuições sofisticadas sobre assuntos, objetos e métodos que se tornaram clássicos e que, em comum, têm o fato de que foram ignorados ou pouco aclamados na constituição histórica das ciências sociais enquanto campo científico. A pergunta que segue é inquietadora: por que estes textos foram ignorados ou pouco aclamados? Segundo Castro, porque o cânone aqui referenciado, termo que na tradição judaico-cristã tem sentido de catálogo divinamente inspirado e sagrado, foi formado sobre as já conhecidas estruturas sócio-históricas da dominação ocidental, que privilegiam os homens brancos falantes de línguas europeias. Nos termos do organizador: “a institucionalização das ciências sociais seguiu as condições sociais e os privilégios mais gerais das sociedades patriarcais e europeias ou norte-americanas no seio das quais se desenvolveu” (p. 9). Seu principal trabalho foi, então, buscar as “mães fundadoras” e “autoras e autores não ocidentais ou não brancos” (p. 10) que inauguraram ou muito contribuíram para ideias e debates que deram corpo às ciências sociais, direta ou indiretamente, com reconhecimento tardio ou persistente subvalorização.

Os 16 textos selecionados para esta coletânea obedeceram, segundo Castro, a três critérios: i) diversidade; ii) pioneirismo ou impacto; e iii) “beleza”, uma apreciação pessoal do organizador. Pelo primeiro critério, os textos, autoras e autores não deveriam estar presentes em coletâneas tradicionais dos principais cientistas sociais. Pelo segundo critério, foram escolhidos textos importantes “por terem sido os primeiros a tratar de algum tema” (p. 10) ou pela recepção nacional ou regional que tiveram. Quanto ao terceiro, a subjetividade de Castro falou mais alto, mas ele justifica suas escolhas realçando contextos históricos e a combinação dos critérios anteriores. Cabe ainda destacar que a maior parte dos textos selecionados tem nesta obra sua primeira tradução para a língua portuguesa, o que estimulou seu lançamento em Lisboa (para além de outros lançamentos no Brasil) e, por óbvio, o trabalho desta recensão. Os motivos do negligenciamento histórico sobre essas autoras, autores e de seus textos, nos corredores acadêmicos e nas políticas editoriais, devem-se a processos de subalternização pelo gênero, raça/etnia, religião ou nacionalidade, às vezes por uma intersecção entre mais de um desses marcadores sociais da diferença - que, neste caso e em tantos outros, foram também condicionantes para o desprestígio e para o esquecimento. Contudo, porque a História precisa ser escovada a contrapelo (cf. Benjamin, 2012 [1940]) e porque os tempos atuais são mais exigentes quanto à diversificação das referências teóricas que nos ajudam a pensar e a realizar o mundo, estes mesmos marcadores da diferença que outrora apenas subalternizavam pessoas e grupos tornam-se, hoje, imprescindíveis para que compreendamos a contemporaneidade e também os processos que nos trouxeram a ela.

Além de organizador, Castro também é o apresentador dos 16 capítulos, que seguem uma ordem cronológica de apresentação. Nas páginas de argumentação que antecedem cada um dos trabalhos selecionados, ele descreve fatos essenciais da biografia das autoras e autores, sempre em diálogo com seus percursos intelectuais e institucionais. Assim, antes de ler Pandita Ramabai (capítulo 3) e perceber sua densa descrição das opressões que acompanham uma mulher hindu desde seu nascimento, inclusive as de casta alta, com críticas sobre as naturalizações que acompanham a construção da condição social das mulheres (62 anos antes de Simone de Beauvoir, frisa Castro), será possível saber que seu pai era professor de sânscrito, que em 1878 ela recebeu o título de “Pandita” (“erudita”) pela Universidade de Calcutá e que, após passar pelo Reino Unido e converter-se ao cristianismo, sua obra mais famosa foi publicada nos EUA (A Mulher Hindu de Casta Alta) em 1887, onde lecionava e dava palestras.

Iniciando essa coletânea pela “fundadora das ciências sociais” (p. 13, capítulo 1), Harriet Martineau, posição que vem sendo destacada em manuais recentes de iniciação à Sociologia (cf. Giddens, 2008), Castro realça a superação do etnocentrismo, a defesa do direito das mulheres e do fim da escravidão na obra desta autora inglesa que também viajou aos EUA e escreveu sobre a sociedade estadunidense (1837, Sociedade na América) concomitantemente a Alexis de Tocqueville. No ano seguinte, Martineau escreveu o texto incluído nesta coletânea em que delineia um projeto metódico, relativista e sugestivo para os estudos “sobre a moral e os costumes”, incluindo os fenômenos sociopolíticos e religiosos em ambiente urbano (p. 26), décadas antes do similar projeto de Émile Durkheim.

Os capítulos 5, 7, 8, 9 e 11 também são dedicados a mulheres pioneiras com imensa contribuição para as diferentes áreas das ciências sociais e que acabaram subvalorizadas ou esquecidas na construção canônica. No capítulo 5, Marianne Weber é reapresentada não apenas como revisora e editora da obra de seu famoso marido, mas como uma socióloga autônoma, feminista e politicamente ativa. No texto selecionado, “Autoridade e autonomia do casamento” (1912), ela faz uma análise pormenorizada do patriarcalismo na Modernidade e indica as rupturas que as “mulheres modernas” (p. 94) almejavam e já agenciavam. No capítulo 7, Jane Addams é revelada como pacifista vencedora de um prêmio Nobel (1931) e, especialmente, como defensora de uma sociologia aplicada na tão consagrada “Escola de Chicago”, onde suas contribuições foram estranhamente ignoradas por décadas. No seu texto selecionado (“Memórias de mulheres: transmitindo o passado, como ilustrado pela história do Bebê Diabo”, capítulo de O Longo Caminho da Memória das Mulheres, de 1916), ela trabalha com articulações entre gênero e memória e sobre os efeitos dos traumas vividos nas crenças e condutas individuais de mulheres idosas. No capítulo 8, Castro nos traz Lucie Varga, feminista, judia, antifascista, e seu “impressionante artigo” de 1936 sobre a gênese e a ascensão do nazismo, tido como “uma densa etnografia do movimento nazista e uma exemplar obra de ‘história do tempo presente’” (p. 121). Trata-se de uma rigorosa análise sobre as especificidades socioeconômicas, intelectuais e institucionais da “nação cultural” (“kulturnation”, p. 135) alemã unificada no século XIX e dos seus reflexos nos acontecimentos das primeiras décadas do XX. O capítulo 9 traz um texto de Mirra Komarovsky (“Contradições culturais e papéis sexuais”, 1946), socióloga norte-americana que, contemporânea a Margaret Mead, analisava os “papéis sexuais” que inferiorizavam as mulheres, observando o status do “feminino” em conflito com valores modernos como um “problema social” e um “campo de pesquisa”. Já no capítulo 11, tem-se Hilda Kuper (“Uma aristocracia africana”, 1947), antropóloga britânica nascida na antiga Rodésia (atual Zimbábue) e com vida, formação e trabalho na África do Sul, no Reino Unido e nos EUA. A partir de sua etnografia na Suazilândia (atual Essuatíni), Castro afirma que Kuper deixou grande contribuição à “antropologia política dos rituais” (p. 196).

No que se refere aos homens não-brancos com trabalhos de grande relevância para a formação das ciências sociais, destaca-se Willian Edward Burghardt Du Bois (W. E. B. Du Bois), historiador graduado em Fisk e em Harvard, onde posteriormente tornar-se-ia “o primeiro afro-americano a obter o título de doutor” (p. 58), com estudos em estatística e ciência política na Universidade de Berlim e em contato com a ascendente sociologia alemã. O capítulo 4 traz o texto “Preconceito de Cor”, parte de sua obra pioneira nos estudos urbanos, O Negro da Filadélfia: Um Estudo Social (1899), publicada 26 anos antes da mais reconhecida obra da Escola de Chicago, que é tida até hoje como o berço da sociologia urbana. Du Bois realizou um denso estudo com métodos mistos sobre a vida urbana dos afro-americanos, aprofundando o debate sobre pobreza, discriminação racial e relações de poder. Opunha-se frontalmente ao darwinismo social e enfatizava categorias como “emprego” (p. 64), “salário” (p. 72) e “aluguel” (pp. 73-74) em sua análise, associando as condições materiais de vida na cidade às opressões étnico-raciais, abrindo assim novas possibilidades para a reflexão crítica sobre o sistema capitalista em sua expressão urbana, eliminando tipificações a-históricas sobre “trabalho”, “competição” e “propriedade”.

Anténor Firmin, negro, advogado e antropólogo haitiano, autor de Da Igualdade das Raças Humanas (1885), também é lembrado como um intelectual de vanguarda para a superação do darwinismo social, enfrentando a academia francesa. O capítulo 2 traz seu texto “Hierarquização fictícia das raças humanas”, no qual apresenta uma perspicaz crítica às “influências das ideias do ambiente” (p. 39) sobre a ciência. No capítulo 12, temos o sociólogo estadunidense Edward F. Frazier, com um texto que agrupa a “Introdução” e a “Conclusão” de sua obra Burguesia Negra (1955). Nesta, Frazier aprofunda alguns temas antes observados por Du Bois, porém num momento histórico em que muitas famílias afro-americanas já alcançavam elevados estratos de classe, o que as afastava das culturas negras populares e, em contrapartida, trazia-lhes isolamento social e confusões psíquicas, já que viviam em uma sociedade com discriminações étnico-raciais ainda estruturantes.

Ao longo do século XX, em sociedades fora da Europa e da América do Norte, muitos foram os teóricos que inauguraram perspectivas sobre seus contextos socioculturais e sobre a formação de seus Estados-nações e que ainda hoje são referências. Segundo Castro, eles poderiam perfeitamente “ampliar o campo de possibilidades do cânone” (p. 11). Manuel Gamio, por exemplo, fundador da antropologia no México, teve relevantes trabalhos em etnologia, arqueologia e estudos sobre migração. Seu texto no capítulo 6, “Preconceitos sobre a raça indígena e sua história”, parte do clássico Forjando Pátria (pro-nacionalismo) (1916), pode-se ser lido como uma introdução à antropologia cultural de influência boasiana na intelectualidade mexicana, justamente em contexto revolucionário e de grande debate sobre a identidade nacional. Masao Maruyama, capítulo 10 (“Teoria e psicologia do ultranacionalismo”, 1946), e Yoshimi Takeuchi, capítulo 14 (“Ásia como método”, 1961), trazem o Japão ao cerne do pensamento político de meados do século passado. O primeiro com uma obra crucial para a compreensão da “estrutura intelectual” e da “base psicológica” (p. 167) que moldaram o que ocidentais chamaram de “nacionalismo extremo”, alicerce para o Estado imperialista e militarista japonês derrotado na II Guerra Mundial. O segundo, comparando processos de modernização em Japão e China, propõe a transformação da ideia “Ásia” em questão metodológica, contrapondo-se às ideias “Europa” ou “Ocidente” (p. 263). Já no capítulo 13, com o texto “Nota sobre sanscritização e ocidentalização” (1956), Mysore N. Srinivas revela a complexidade das estratégias de ascensão social e busca por prestígio das castas mais baixas da sociedade indiana, superando lugares-comuns. No capítulo 15, “Ocidentose: uma praga do Ocidente. Diagnosticando uma doença” (1962), Jaläl Äl-e Ahmad, tal qual os dois autores citados anteriormente, trata dos efeitos socioculturais e políticos da “dominação ocidental” sobre o Irã e demais nações “famintas” (p. 283), alegando que a “ocidentose” resulta da importação de bens e signos ocidentais sem as tradições e “modo de pensar” que os tornaram possíveis, “sem continuidade histórica, sem gradiente de transformação” (p. 289). Por fim, no capítulo 16, “Relações centro-periferia: uma chave para a política turca?” (1973), Serif Mardin, a quem Castro chama de “decano da sociologia turca” (p. 291), apresenta-nos uma sociologia histórica rica em conflitos entre um “sistema tradicional” e a “modernização” (“ocidentalização”) de Estado e sociedade, recheada por dicotomias tensionadas como “urbanização” e “nomadismo” (p. 297), “centro” e “províncias”, burocracias “sultânica” e “racional”, “religião” e “secularismo”, “grande” e “pequena” culturas (p. 308), do Império Otomano do XIX até a República kemalista do pós-guerra. Tanto quanto os demais autores, Mardin pensa a originalidade de sua sociedade em processos de mudança acelerada e, inevitavelmente, friccionando-se ao Ocidente.

Das incitações que este de livro de Castro traz ao estudante ou pesquisador das ciências sociais, destaco aquela que mais se impôs sobre mim neste trabalho de recensão: um esforço para desnaturalizar os percursos e as ferramentas conceituais do pensamento científico. Questionando não apenas as posições dominantes e os discursos hegemônicos que criam e reproduzem subalternidades, as autoras e os autores trazidos aqui por Castro estimulam que outros tantos cientistas sociais “tomem a palavra” (Cf. Spivak, 2021 [1988]) com suas respectivas tradições de pensamento, reconstruindo suas histórias, trazendo seus vernáculos e coleções aos laboratórios.

Referências bibliográficas

Benjamin, Walter (2012 [1940]), “Teses sobre a Filosofia da História”, em Sobre Arte, Técnica, Linguagem e Política, Lisboa, Relógio D’Água Editores. [ Links ]

Giddens, Anthony (2008), Sociologia, 6ª ed., Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian. [ Links ]

Spivak, Gayatri C. (2021 [1988]), Pode a Subalterna Tomar a Palavra?, Lisboa, Orfeu Negro. [ Links ]

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