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Sociologia, Problemas e Práticas

versão impressa ISSN 0873-6529

Sociologia, Problemas e Práticas  no.103 Lisboa dez. 2023  Epub 31-Jan-2024

https://doi.org/10.7458/spp202310329492 

Artigos Originais

A família, a criança e a parentalidade no debate noticioso: residência alternada como lei

The family, children and parenting in the news debate: shared residence as law

La famille, les enfants et la parentalité dans le débat: la résidence alternée en tant que droit

La familia, los niños y la paternidad en la debate: la residencia compartida como ley

Sofia Marinho1  , concetualização, curadoria dos dados, análise formal, metodologia, investigação, recursos, visualização
http://orcid.org/0000-0002-0307-2072

1 Instituto de Ciências Sociais, Universidade de Lisboa, Lisboa, Portugal


Resumo

A partir da análise de conteúdo mista de artigos de jornal, o artigo investiga representações da família, da criança e das práticas paternas e maternas nas notícias sobre a inclusão da residência alternada (RA) na lei. Os opositores da RA usaram o modelo tradicional de parentalidade e família para evocar a família perigosa, ideal, privatizada; a criança em risco; o pai perigoso e inadequado; e a mãe em risco. Com base no igualitarismo, os apoiantes retrataram a família igualitária, desigual, em mudança; a criança relacional e com direitos; o pai discriminado, cuidador e reconstruído; e a mãe perigosa, resistente à mudança e sobrecarregada.

Palavras-chave: residência alternada como lei; mudança legislativa; representações da parentalidade e da família; residência única.

Abstract

Drawing on mixed content analysis of newspaper articles, the article investigates the representation of family, children, and parenting practices in news stories about making shared residency (SR) a law. Opponents of SR used the traditional model of parenting and family to evoke the dangerous, ideal, privatised family; the at-risk child; the dangerous and inadequate father; and the at-risk mother. Drawing on egalitarianism, supporters portrayed the egalitarian, unequal, changing family; the relational, rights-bearing child; the discriminated, caring, reconstructed father; and the dangerous, change-resistant, overburdened mother.

Keywords: shared residence as law; legislative change; change representations of parenting and the family; single residence.

Resumé

En s’appuyant sur une analyse de contenu mixte d’articles de journaux, l’article examine la représentation de la famille, de l’enfant et des pratiques parentales dans les articles de presse sur l’inclusion de la résidence alternée (RA) dans la loi. Les opposants à la RA ont utilisé le modèle traditionnel de la parentalité et de la famille pour évoquer la famille dangereuse, idéale et privatisée; l’enfant à risque; le père dangereux et inadéquat; et la mère à risque. S’inspirant de l’égalitarisme, les partisans ont présenté la famille égalitaire, inégale et changeante; l’enfant relationnel et porteur de droits; le père discriminé, soigneux et reconstruit; et la mère dangereuse, résistante au changement et surchargée.

Mots-clés: la résidence alternée en tant que loi; changement législatif; les représentations de la parentalité et de la famille; la résidence unique.

Resumen

A partir de un análisis de contenido mixto de artículos periodísticos, el artículo investiga la representación de la familia, el niño y las prácticas de parentalidad en las noticias sobre la inclusión de la residencia compartida (RC) en la ley. Los opositores a la RC utilizaron el modelo tradicional de parentalidad y familia para evocar la familia peligrosa, ideal y privatizada; el niño en situación de riesgo; el padre peligroso e inadecuado; y la madre en situación de riesgo. Basándose en el igualitarismo, los partidarios retrataron a la familia igualitaria, desigual y cambiante; al niño relacional y portador de derechos; al padre discriminado, cuidador y reconstruido; y a la madre peligrosa, resistente al cambio y sobrecargada.

Palabras-clave: residencia compartida como ley; cambio legislativo; representaciones de la parentalidad y la família; residencia única.

Nas últimas décadas, vários países ocidentais empreenderam reformas da lei de família para dar às crianças o acesso à residência alternada (RA), também conhecida por custódia física partilhada - na qual estas residem com ambos os pais, dividindo 33 a 50% do seu tempo mensal com cada um (Marinho, 2017, 2018).

Em Portugal, a RA foi transformada em lei em 2020 (Lei n.º 65/2020, de 4 de novembro), podendo ser decretada se reunidas as condições concretizadas no número 6 do artigo 1906 do Código Civil: “Quando corresponder ao superior interesse da criança e ponderadas todas as circunstâncias relevantes, o tribunal pode determinar a residência alternada do filho com cada um dos progenitores, independentemente de mútuo acordo nesse sentido e sem prejuízo da fixação da prestação de alimentos (DR n.º 215/2020). Esta mudança legislativa deu-se no quadro da regência da partilha das responsabilidades parentais e da residência única (RU) com um progenitor (a mãe, em regra) e visitas ao outro (o pai, em regra), que continuará a ser um dos desfechos da regulação das responsabilidades parentais.

A reforma legal foi iniciada em junho de 2018, com a entrega de uma petição no parlamento a pedir a inclusão da RA na lei, como presunção jurídica, pela Associação para a Igualdade Parental e Direitos dos Filhos. Tal como em outros países, o processo de alteração legislativa foi acompanhado por debates acalorados entre vários atores e grupos de interesse que, ao procurarem ascender as suas perspetivas sobre as famílias pós-separação e o interesse da criança a normas legais, criaram uma batalha política nos meios de comunicação social (Parkinson, 2018).

A investigação sobre estes debates realça que tendem a ser dominados pela desinformação e pela utilização enviesada da investigação sobre a RA (Kruk, 2011; Nielsen, 2015), indicando que são pautados por crenças conflituosas sobre o género, as culturas de parentalidade e as relações entre mulheres, homens e crianças (Collier, 2009). Diz ainda que os envolvidos tendem a colocar os interesses das mulheres e crianças, vítimas de violência doméstica, contra as associações de defesa dos direitos do pai (Parkinson, 2018). Outra linha de investigação tem procurado identificar e refutar os argumentos contra a presunção jurídica da RA, presentes nos debates académicos e públicos, com dados clínicos e empíricos (Kruk, 2011; Nielsen, 2015). Contudo, pouco se sabe sobre quais são as representações das famílias, crianças, maternidade e paternidade fornecidas aos legisladores pela cobertura mediática da transformação da RA em lei de família.

Tendo como base perspetivas sociológicas sobre a mudança e diversificação das práticas parentais e relações familiares, bem como o caso português como contexto social, este artigo estende a investigação anterior ao investigar como é que as famílias, a criança e a maternidade e paternidade são representadas na cobertura noticiosa do processo de mudança legislativa.

A análise baseia-se em 51 artigos publicados em jornais diários e semanários, portais de notícias e revistas de notícias, entre junho de 2018, mês da entrega da petição no parlamento, e 4 novembro de 2020, data da aprovação da introdução da RA na lei. Para além disso, desenvolve uma análise de conteúdo mista em três etapas: (1) para analisar os contextos sociais que moldaram a produção das notícias, identifica os jornais e revistas noticiosas que cobriram a mudança legislativa e classifica as notícias publicadas; (2) para identificar os principais temas debatidos, efetua uma análise temática do conteúdo dos temas das manchetes noticiosas e do seu contexto; e, (3) para investigar como foram representadas as famílias, a criança, e as práticas maternas e paternas após separação, efetua uma análise de conteúdo qualitativa dos artigos. Observa ainda quais os atores da família mais presentes no debate e se o peso relativo de cada um nos discursos mudou ao longo da cobertura noticiosa.

Nas próximas secções, apresenta-se o enquadramento teórico do conceito de representações dos média e discute-se brevemente a literatura sobre os debates académicos e públicos da RA como lei de família e sobre a relação entre a RA e os processos de mudança na família.

Os debates públicos sobre a residência alternada como lei

A ideia de que os meios de comunicação representam acontecimentos, fenómenos e pessoas parte do pressuposto de que o conteúdo das notícias constrói a realidade ou uma versão da realidade (Matthews, 2017; Rebelo, 2000). Deriva do conceito de representações sociais, constituído pelas atividades cognitivas, simbólicas e comunicacionais dos grupos sociais, através das quais estes criam, transmitem e objetivam a realidade e os seus significados no decorrer das interações e dos fenómenos de comunicação (Vala, 1993).

Ao serem interdependentes do sistema social em que se inserem e operam, os discursos da comunicação social baseiam-se nos discursos coletivos sobre a realidade nele existentes. Desta forma, a comunicação social é um ator social que produz, reproduz e distribui representações sociais, fazendo a mediação entre a realidade factual, as populações e as instituições que protagonizam os processos de decisão pública (Serrano, 1993). Ao nível da produção de notícias tal mediação é dupla, tendo uma dimensão noticiarista, relativa à capacidade de informar sobre o que vai acontecendo, e uma dimensão interpretativa, que transmite códigos de leitura, significado e interpretação dos acontecimentos (Oliveira, 2017). Um elemento-chave nestes processos são os processos de tematização ou de agenda-setting, relativos aos critérios de seleção e valorização de determinados temas considerados de interesse do público no processo de produção de notícias, em detrimento de outros (Wolf, 1987). Como explica Rebelo (2000: 13), tal filtragem da relevância social é estruturada por critérios jornalísticos que reproduzem as ideologias dominantes. Desta forma, o discurso jornalístico tende a refletir ou a dar voz a disputas simbólicas entre as pretensões de verdade dominantes (Bourdieu, 1989). É justamente o que tende a acontecer nos debates públicos sobre a RA que ocorrem na imprensa escrita.

Com efeito, na escassa literatura sobre os debates públicos da transformação RA em lei, é bem patente que estes são fortemente polarizados, opondo apoiantes das mulheres e crianças vítimas de violência doméstica a apoiantes da RA, considerando ambos que estão a defender o superior interesse da criança (Collier, 2009; Parkinson, 2018). Neste âmbito, Jaffe e Crooks (2004) revelaram o peso crescente que a luta feminista pelo reconhecimento da violência doméstica e do seu impacto na criança na lei obteve nos debates sobre a introdução da RA na lei nos Estados Unidos, Canadá, Austrália e Nova Zelândia. Mostram ainda que tais debates são moldados pela tensão entre o reconhecimento da importância do pai para a criança e o de que a existência de pais perpetradores de violência doméstica coloca crianças e mulheres em risco após separação. Assim, defendem que nestas situações o contacto entre a criança e o pai deve ser totalmente contraindicado porque pode ser letal.

Contudo, tal como mostra Wharton (2012), estes debates também são moldados por consensos. Num estudo dos debates mediáticos sobre a relação pai-filhos após separação, que envolveram grupos de defesa dos direitos de paternidade no Reino Unido, a autora encontrou três. No primeiro, a que chama “a lei é que deve decidir”, os pais divorciados ou separados são representados como vítimas passivas da distribuição enviesada da custódia das crianças nas sentenças dos tribunais, em que o acesso às crianças é considerado um bem social. No segundo, “as crianças vivem com a mãe”, a separação parental é representada como implicando que as crianças vivam com a mãe, sendo a RA retratada como uma situação excecional e irrelevante. Por fim, no terceiro, intitulado “as crianças são recompensas”, alega-se que um sistema jurídico enviesado leva a abusos, sendo as mulheres as potenciais abusadoras porque querem a maior fatia do acesso às crianças. Ao alegarem que a RA se reporta apenas a casos excecionais, os participantes no debate reconhecem a sua existência sem desafiar o modelo discursivo dominante, em que as crianças vivem com a mãe. Por outro lado, as suas alegações não são exatas, uma vez que as situações em que mães e pais cooperam após o divórcio ou a separação não são mencionadas. Deste modo, os participantes fomentam a ideia de que os interesses das mães e dos pais separados são inconciliáveis.

Kruk (2018: 389-396), ao debruçar-se sobre os debates públicos acerca da RA, identifica três vagas de argumentos contra a mesma, afirmando que estes são refutáveis pela investigação. A primeira emerge nos anos 70 do século XX, após a introdução do critério de superior interesse da criança no direito de família internacional. Tendo como base uma versão já ultrapassada da teoria da vinculação, em particular a ideia de que as crianças precisam de se vincular apenas à mãe, considerada como portadora de competências naturais para ser a cuidadora primária, alega que a RA é uma ideia absurda e impraticável. Isto porque iria submeter as mães e crianças ao controle do pai, permitindo-lhe evitar pagar a pensão de alimentos e assumir a responsabilidade pelos cuidados infantis. Argumentava-se ainda que a mudança constante de casa iria criar instabilidade na criança. A vaga posterior de argumentos alegava que a RA expunha as crianças a fortes conflitos parentais e à violência doméstica por implicar a cooperação entre pais e mães. Neste quadro, defendia-se que a RA só seria adequada para situações sem conflito em que estes se dão bem. Por fim, a terceira vaga de argumentos, que é a contemporânea, reconhece que a RA pode beneficiar as crianças, mas é contra a ideia de uma presunção jurídica da mesma no direito de família, dando aos juízes o poder de avaliar cada caso. O argumento é que as circunstâncias de cada criança e família são únicas, pelo que os melhores interesses da criança são diferentes em cada caso.

A residência alternada como elemento da mudança na família

Uma vez que o objetivo deste artigo é identificar e analisar as representações da família, da criança e da paternidade e maternidade publicadas na cobertura noticiosa da transformação da RA em lei de família, cabe ainda abordar a relação entre os regimes de residência ou custódia da criança e a mudança nas práticas parentais. Ora, cada regime de residência ou de custódia da criança (única ou alternada) concretiza um modelo cultural de família e as suas metamorfoses (Pfau-Effinger, 2004): do homem ganha-pão e mulher doméstica, para o duplo emprego e duplo cuidado, no qual emergem as práticas de parentalidade partilhada, quer no casal quer após a sua separação. Cada regime está ainda temporalmente e estruturalmente ancorado nas realidades sociais, económicas e políticas que com ele se entrelaçam, incluindo significados e crenças coletivas que orientam as práticas maternas e paternas e a forma como estas devem responder às necessidades das crianças (Marinho, 2017; Marinho e Gouveia, 2021; Neyrand, 2004). O regime de RU, ou de custódia única da criança, transporta para a separação parental as lógicas do modelo de homem ganha-pão e mulher doméstica (Kelly, 2007), bem como as da evolução deste para o do duplo emprego e cuidar feminino, que estabeleceu a dupla jornada feminina. Na realidade, a residência da criança com a mãe e a visita quinzenal da criança ao pai transportam para a separação parental a forma como as identidades e práticas de mães e pais são vistas através da lente do essencialismo biológico (Gaunt, 2006; Marinho e Gouveia, 2021). As mães são consideradas “naturalmente” predispostas para cuidar e para fazer o trabalho doméstico, devendo prestar cuidados constantes e individuais às crianças (Arendell, 2000). Os pais são vistos como sendo “naturalmente” inclinados para prover para a família e incompetentes nos cuidados à criança e no trabalho doméstico, levando a que a sua paternidade seja mediada pelo trabalho e pelos cuidados maternos (Brannen e Nilsen, 2006; Marinho, 2011).

O avanço do modelo de duplo emprego e duplo cuidar expressa a transformação das práticas e relações familiares e de género (Beck-Gernsheim e Beck, 1995). O que inclui políticas públicas que apoiam a integração das mulheres no mercado de trabalho e dos homens nos cuidados partilhados e na articulação trabalho-família (por exemplo, políticas de licença parental; Escobedo, Flaquer e Navarro-Varas, 2012; Wall e Escobedo, 2013). E igualmente a centralidade das crianças nas políticas de família (Lewis, 2006) e a associação do seu bem-estar ao envolvimento de ambos os pais na sua vida (Escobedo, Flaquer e Navarro-Varas, 2012; Marinho e Gouveia, 2021).

A construção social da paternidade envolvida ou íntima (Wall, Aboim e Marinho, 2007; Dermott, 2008) fundamentou a rejeição dos jovens pais da figura paterna distante e ausente, levando à diversificação dos modelos de paternidade na conjugalidade (Marinho, 2011). Para além de incluírem o prover para a família, ganharam outras facetas: o pai ajudante da mãe; o companheiro de brincadeira dos filhos ao fim-de-semana; e o pai cuidador autónomo e igualitário (Brannen e Nilsen, 2006; Marinho, 2011; Wall, Aboim e Marinho, 2007). Em paralelo, a maternidade inclusiva e igualitária avançou, bem como os ideais da parentalidade partilhada (Cowdery e Knudson-Martin, 2005; Marinho, 2017) e intensiva (Hays, 1996; Grunow, Begall e Buchler, 2018). Estes processos levaram a novos arranjos parentais, quer na conjugalidade quer após a separação parental, em que o modelo parental centrado na mãe se tornou desatualizado e demasiado restritivo para a maioria das crianças (Escobedo, Flaquer e Navarro-Varas, 2012), sendo gradualmente substituído pelas práticas da parentalidade partilhada, de que a RA é exemplo Céroux, B. (2014).

Método

Amostra

Logo no início da cobertura jornalística da mudança legislativa foram criados alarmes no Gmail para artigos nos jornais nacionais em que houvesse menção às seguintes palavras e expressões de pesquisa: residência alternada, residência das crianças, divórcios, guarda partilhada, petição, residência alternada preferencial, residência alternada regime regra, direitos da criança, e igualdade parental. Foram escolhidos os jornais generalistas nacionais, diários e semanários e revistas de notícias, por serem estes que estavam a fazer a cobertura mediática do processo de mudança legislativa e por terem audiências numerosas, tendo sido incluídos os seguintes na pesquisa: Público, Diário de Notícias, Jornal de Notícias, Observador, Correio da Manhã, Jornal I, Sol, Expresso, Visão, Sábado. Entre junho de 2018 e 4 de novembro de 2020, data da aprovação da Lei n.º 65/2020, de 4 de novembro, foram recolhidas todas as notícias identificadas pelo alerta. Quando a análise para o presente artigo foi iniciada, fez-se uma pesquisa online para verificar se cada um dos jornais e revistas escolhidos tinha publicado mais notícias. Para ter acesso ao texto completo de algumas notícias, disponíveis apenas para assinantes, procedeu-se à assinatura dos jornais que as publicaram para recolher os PDF das mesmas, necessários para fazer a análise de conteúdo. Estes dois procedimentos permitiram recolher 51 notícias, constituindo estas o corpus de análise (ver quadro 1).

Procedimentos analíticos

O estudo combina a análise de conteúdo quantitativa com a análise de conteúdo qualitativa, tendo estas sido auxiliadas pela utilização do software MaxQDA18 e desenvolvidas em três etapas. Em primeiro lugar, seguindo a tipologia de Tuchman (1978), os artigos foram classificados em notícias duras e suaves. Segundo a autora, “hard news […] concerns occurrences potentially available for analysis or interpretation and consists of ‘factual presentations’ of occurrences”; e as “soft news are feature or human-interest stories” (1978: 47-48). Tendo em conta a classificação do próprio jornal, foram ainda identificados os artigos de opinião.

Em segundo lugar, efetuou-se uma análise de conteúdo temática dos títulos das notícias para identificar os temas que foram debatidos, enquadrando-os nos desenvolvimentos do processo legislativo de cada ano. Em terceiro lugar, tendo por base o método da grounded theory (La Rossa, 2005), foi realizada uma análise do conteúdo dos artigos. Esta começou pela codificação temática do conteúdo de cada artigo, criando categorias e subcategorias descritivas baseadas em segmentos do discurso e nas quais se procurou identificar os atores mencionados nos textos (família, pai, mãe, crianças) e as ações, estados e situações que lhes eram associadas. Após a comparação exaustiva e sistemática dos conteúdos das várias categorias e subcategorias inicialmente criadas, procedeu-se a uma recodificação em que algumas categorias foram agrupadas ou eliminadas. Este processo permitiu a identificação de eixos de análise, de conceitos emergentes e das suas propriedades. Finalmente, foi realizada uma codificação axial para desenvolver hipóteses interpretativas sobre as ligações entre os conceitos que emergiram da análise e os processos e contextos culturais e sociais que enquadraram a mudança legislativa.

Por fim, efetuou-se uma análise de conteúdo quantitativa do peso relativo das categorias e respetivas subcategorias mencionadas em cada ano.

A cobertura noticiosa

Conforme mostra o quadro 1, o processo de mudança legislativa foi reportado e discutido em: 21 notícias duras, 6 notícias leves e 24 artigos de opinião. O ano em que a imprensa deu maior atenção ao assunto foi 2019, tendo sido publicados 23 artigos, contra 13 em 2018 e 15 em 2020.

Quadro 1 Número de artigos sobre a mudança legislativa por tipo de jornal, portal de notícias e revista de imprensa, segundo o ano e tipo de notícias 

O Diário de Notícias e o Público foram os únicos jornais que acompanharam o processo legislativo ao longo dos três anos. A abordagem do Diário de Notícias centrou-se na publicação de notícias duras e a do Público, muito mais extensa, nos artigos de opinião, tendo constituído o principal fórum de discussão e de enquadramento interpretativo da transformação da RA em lei. O jornal Expresso deu pouca atenção ao assunto em 2018 e nenhuma em 2020, tendo publicado principalmente artigos de opinião em 2019. À exceção do Observador, que publicou quatro artigos em 2018, as restantes plataformas não consideraram o assunto muito relevante, publicando apenas um ou dois artigos ao longo dos três anos.

A cobertura noticiosa teve início em 2018, com a entrega da petição no parlamento no mês de junho. A partir daí foram publicados 13 artigos sobre quatro temas: a entrega da petição no parlamento; a oposição de 23 associações defensoras dos direitos das mulheres que trabalhavam na proteção das vítimas de violência doméstica; qual deveria ser o estatuto jurídico (presunção jurídica ou não) e social da RA; e se a lei deveria ser alterada.

Em 2019, cada um dos cinco partidos com assento parlamentar (PS, PAN, BE, PSD e CDS-PP) preparou um projeto de lei de alteração legislativa para ser discutido e aprovado em plenário. O debate na imprensa sobre o estatuto jurídico e social da RA aumentou, dando origem a 23 artigos de jornal em que se verificou uma disputa sobre qual a perspetiva das relações e dos arranjos familiares pós-separação que deveria prevalecer na lei. Os principais tópicos das notícias foram o estatuto jurídico da RA (solução preferencial, regra ou opção) proposto nos projetos de lei pelos partidos políticos, a necessidade ou não da alteração legislativa e os riscos da residência alternada para mulheres e crianças.

Como os projetos de lei dos partidos não foram votados até ao final do ano de 2019, estes tiveram de apresentar novos projetos de lei ao parlamento em 2020: Projeto de Lei n.º 52/XIV/1.ª (PAN); Projeto de Lei n.º 87/XIV/1.ª (PS); Projeto de Lei n.º 107/XIV/1.ª (PSD); Projeto de Lei n.º 110/XIV/1.ª (CDS-PP); e Projeto de Lei n.º 114/XIV/1.ª (BE). Neste período, o estatuto jurídico da RA na lei (regime preferencial ou opção mediante condições), a necessidade de uma avaliação casuística e individualizada da situação de cada criança na separação parental e os riscos da RA foram os principais tópicos em discussão, tendo como base as diferentes propostas dos partidos.

Famílias, paternidade, maternidade e crianças em debate

Indo ao encontro do descrito na literatura, a cobertura do processo de reforma legislativa deu palco a um debate aceso e ideologicamente polarizado entre opositores e apoiantes da RA. Conforme a figura 1, as famílias e as crianças foram os atores sociais com maior presença no debate ao longo dos três anos, emergindo logo a seguir o pai. Contudo, verificaram-se oscilações do peso relativo de cada ator em cada ano. Assim, na cobertura jornalística de 2018, as mães e as famílias foram as mais discutidas. Em 2019, o pai foi o principal protagonista, mas em 2020 deu o lugar às crianças.

Figura 1 Distribuição dos segmentos de texto das categorias famílias, mãe, pai e crianças, segundo o ano(N = 392)  

As famílias pós-separação

Conforme a figura 2, a representação da família no debate foi diversa, tendo emergido seis subcategorias de família nos textos publicados: perigosa, ideal, igualitária, desigual, em mudança, e privatizada.

Figura 2 Distribuição dos segmentos de texto pelas subcategorias de família, por ano (N=184) 

A família perigosa foi a subcategoria de família que teve mais presença nos discursos ao longo dos três anos, tendo sido o principal foco da discussão em 2018 e em 2019. Indo ao encontro do descrito na literatura, para os opositores da RA, os casais que se separam são perigosos para as crianças, uma vez que consideram os conflitos parentais intrínsecos à separação parental. Na sua perspetiva, a RA, principalmente como regra na lei, iria alimentá-los e aumentar a gravidade dos mesmos, colocando em risco mulheres e crianças vítimas de violência doméstica:

A sujeição da criança ao conflito parental constitui um evento traumático muito relevante e a residência alternada poderá potenciar a exposição a esse conflito, fruto, desde logo, das constantes interações que impõe aos progenitores. [Nuno Cardoso Ribeiro, Público]

Em contraponto, os apoiantes da RA apontaram os benefícios que esta tem para as crianças, pais e mães e para a redução do conflito parental, em comparação com os malefícios do regime de RU, e criticaram a generalização dos riscos para as mulheres vítimas de violência a todas as famílias:

Nos acordos de residência alternada, o conflito entre os pais reduz-se ao longo do tempo, ao contrário dos acordos de guarda única, já que os pais ameaçados pela perda dos seus filhos e da sua identidade parental lutam durante anos após a separação dos filhos. [Eva Delgado-Martins, Público]

[…] a manutenção de uma residência exclusiva, necessariamente associada a tempos insuficientes e desequilibrados da criança com um dos progenitores, colocará em evidência as acusações mútuas entre os mesmos e a diluição da vinculação segura e desejável das crianças com ambos, ao mesmo tempo que reduz o leque de convívios e a socialização com os amigos e a família da mãe e os amigos e a família do pai. [João Pedro Chasqueira, Público]

A família ideal foi a segunda subcategoria com mais peso nos discursos, destacando-se nos argumentos trocados em 2019 e 2020. Neste registo discursivo, os opositores da RA apresentaram-na como um modelo de família dificilmente concretizável. Para o efeito, identificaram diferentes listas de condições e requisitos que as famílias teriam de cumprir na prática da RA. Em resposta, os defensores argumentaram que tais listas eram impossíveis de cumprir por qualquer casal:

O sistema é o ideal, mas mediante uma série de pressupostos. A saber: relativa proximidade geográfica das casas dos progenitores; habitações semelhantes (para evitar preferências do menor); separação muito amigável; inserção social e rendimentos equitativos dos pais; as mesmas orientações educativas, culturais e alimentares (por exemplo, mãe vegan e pai nem por isso podem ser perturbadores para a criança em residência alternada); idêntica disponibilidade de tempo para acompanhar o filho ou ter apoios (avós que podem colmatar esta dificuldade). Será tudo isto concretizável? Raramente estão reunidos estes pressupostos e muitas vezes a separação é precedida de situações de violência doméstica. [Sábado]

É uma lista impossível de cumprir e, mesmo que se cumpra tudo isto, basta à mulher, no fim, […], dizer que não tem confiança no pai para já não ser possível. Enfim, conversa fiada. […] Os pais não têm de ser excecionalmente cooperantes, sem conflitos, ou ricos e com educação superior, ou mutuamente entusiásticos a respeito desta partilha para que as crianças beneficiem deste arranjo. [Luís Aguiar-Conraria, Observador]

As subcategorias família igualitária, em mudança e desigual surgiram apenas nos argumentos dos defensores da RA, visando responder à construção discursiva das famílias perigosa e ideal pelos opositores. A família igualitária foi o ator predominante nos argumentos trocados em 2019, realçando a relação entre a RA, os valores e práticas da igualdade de género e os benefícios que estes proporcionam às crianças:

Já escrevi várias vezes sobre o já velho combate dos que acreditam que a parentalidade responsável e plena é um dever (antes de tudo) e um direito de homens e mulheres. Que esta partilha é um salto civilizacional de enorme relevância. Que ela garante às mulheres uma verdadeira igualdade na utilização do seu tempo de lazer e na sua progressão na carreira. E que um novo papel dos homens na educação dos seus filhos corresponde à mudança social por que se bateram muitas gerações de ativistas pela igualdade de género. [Daniel Oliveira, Expresso]

O quadro de referência da família desigual era composto pela crítica ao regime regra de RU, em vigor à data da discussão, assinalando os seus pressupostos tradicionalistas e de desigualdade de género, principalmente nos artigos de 2018:

Esta mudança legislativa alterará o que “vigorou” durante anos, dado o conservadorismo dos tribunais, que atribuíam a residência das crianças a uma das partes, tendencialmente à mãe, em que parecia que apenas os quartos das casas das mães tinham condições para os filhos dormirem. Ficava a sensação que em face da maioria das decisões judiciais era mais importante para um filho dormir sempre no mesmo quarto do que crescer, ser amado e acompanhado quotidianamente pela mãe e pelo pai. [Paulo Vieira da Silva, Impala]

Pelo seu turno, a família em mudança habitou os discursos de 2018 e 2019 e associou a mudança legislativa à necessidade de adequar a lei às realidades sociais das famílias contemporâneas:

Libertaram-se as funções e as emoções: as mulheres já não estão enclausuradas no lar, as obrigações são divididas. Os homens, “ex-chefes de família”, já não contêm os sorrisos, do brincar ao mudar das fraldas: para além de cuidadores competentes dos seus filhos, a generalidade deles assumiu o seu papel de insubstituíveis provedores afetivos junto das suas crianças. [Paulo Henrique Figueiredo, Público]

Por fim, a subcategoria família privatizada foi a que teve menos peso nos artigos (apenas oito segmentos de texto nos três anos), estando associada à crítica da introdução da RA como regra e sem a necessidade de acordo dos pais na lei através da crença de que o Estado não deve intrometer-se nas decisões das famílias:

As possibilidades de os tribunais vierem a impor-se à vontade dos pais, nos casos em que estes tenham acordado entre si em moldes diferentes, é muito criticada pelos especialistas. Se os pais acordam de uma determinada maneira, por que razão há-de o tribunal impor uma solução diferente? [Natália Faria, Público]

A criança na separação parental

A criança foi o segundo ator com maior protagonismo nos discursos dos jornais, sendo referida em discussões acesas sobre qual a estrutura familiar e as relações parentais que melhor servem o “seu superior interesse” pelos dois lados do debate.

Conforme a figura 3, destacaram-se três representações distintas da criança: em risco, relacional, e com direitos. As duas primeiras reuniram mais atenção ao longo dos três anos, sendo a primeira predominante nos textos de 2018 e 2020 e a segunda nos textos de 2019. A terceira esteve mais presente nos textos de 2018 e 2020, mas com menor relevo do que as outras.

Figura 3 Distribuição dos segmentos de texto pelas subcategorias de criança, segundo o ano (N = 112) 

As representações das crianças em risco estiveram presentes nos discursos dos dois lados do debate. Para os opositores, a RA colocava as crianças em risco pela exposição ao conflito parental, por serem utilizadas como “armas de arremesso” pelo casal parental e por andarem de “mala às costas” entre a casa da mãe e do pai. Em contraste, para os apoiantes era a RU que colocava as crianças em risco, visto provocar o afastamento destas de um dos progenitores na separação parental.

Quintanilha diz recear que, em caso de conflito entre os pais, as crianças fiquem ainda mais expostas “na medida em que vão andar, semana sim semana não, a ouvir as queixas de um e de outro e, eventualmente, as manipulações de um e de outro”. [Natália Faria, Público]

[…] o impacto de um relacionamento entre os pais que não seja saudável (caso em que os filhos são impedidos de ter uma relação de quantidade e de qualidade com ambos os pais), no presente e no futuro dos filhos, é muito negativo. Os filhos sentem-se mais pressionados, mais ansiosos e mais deprimidos, têm menor autoestima e autoconfiança. [Eva Delgado-Martins, Público]

[…] nas redes sociais, muita gente argumentou que a residência alternada era muito confusa para as crianças, que, ora estavam uma semana numa casa, ora iam para outra na semana a seguir e depois não sabiam onde tinham deixado os livros, os casacos, etc. [Luís Aguiar-Conraria, Observador]

A categoria criança relacional expressou a mobilidade e flexibilidade relacional exigida às crianças pela coparentalidade após divórcio/separação no debate público. Era composta por descrições de crianças que constroem as suas relações significativas e alcançam a estabilidade emocional e o bem-estar em quadros de igualdade, através da circulação entre a casa e a família da mãe e do pai.

[…] a co-parentalidade está intimamente associada ao ajustamento e saúde física e psicológica das crianças, sendo o contacto igualitário com ambos os pais o critério maior facilitador da prossecução de itinerários de desenvolvimento harmonioso. [Paulo Henrique Figueiredo, Público]

Por fim, a criança com direitos traduziu a importância que o princípio do “superior interesse da criança” alcançou no processo de mudança legislativa, traduzida no debate público através da ideia de que as crianças são cidadãs autónomas dos pais, com direitos e necessidades específicas.

Mais do que os direitos dos progenitores, trata-se do direito das crianças a terem uma relação satisfatória, completa e feliz com os pais, quer vivam juntos ou separados. [Ana Gabriela Silva, Público]

Manter a ideia de que a criança deve conviver diariamente apenas com uma figura parental, em detrimento da outra, a quem são permitidas meras visitas é, antes de mais, a violação de um direito fundamental que pode comprometer o seu bem-estar. [Rute Agulhas e Alexandra Ansiães, Público]

A paternidade após separação

Dando corpo às conceções de família em disputa na troca de argumentos entre opositores e apoiantes da RA, foram vários os significados associados à figura paterna e às suas práticas. Os pais perigoso e inadequado dominaram as narrativas dos opositores e o debate (figura 4). Os pais discriminado, cuidador e reconstruído destacaram-se nas narrativas dos apoiantes, tendo a primeira um peso semelhante ao pai perigoso nos três anos e as outras pesos inferiores.

Figura 4 Distribuição dos segmentos de texto pelas subcategorias da figura paterna, segundo o ano (N = 63)  

O pai perigoso foi descrito como o agressor de mulheres e crianças e aquele que queria a RA para não ter de pagar pensão de alimentos aos filhos, tendo estas representações dominado os discursos dos opositores em 2018 e em 2020. Os apoiantes da RA reconheceram que esta não se aplica a situações de violência doméstica e contestaram fortemente a generalização de tais práticas a todos os pais.

Chegámos a ter casos de agressores sabendo da morada das ex-mulheres, às vezes em casas-abrigo, à conta dos direitos que os tribunais de menores lhes garantiam para as visitas. Crianças em permanente pânico que os pais voltassem a agredir as mães aquando das visitas. Ou juízes atrás de juízes considerando que agressores domésticos condenados afinal são pais maravilhosos. […] Como é possível considerar que um homem violento que bate na mulher será bom pai? [Maria João Marques, Público]

[…] considero a violência doméstica um dos mais graves problemas sociais, humanitários e de segurança em Portugal. Fruto, na realidade, da mesma cultura machista que afasta os homens dos seus deveres parentais. Que o historial de violência doméstica é, obviamente e com as cautelas normais quando há um conflito, um elemento determinante nas decisões judiciais sobre a guarda dos filhos e a partilha de deveres. Mas fazer leis presumindo que a maioria dos homens são agressores é um insulto ao Estado de Direito e aos direitos fundamentais dos cidadãos. [Daniel Oliveira, Expresso]

O pai inadequado foi construído por argumentos que defendiam que a sociedade portuguesa não estava preparada para ter a RA como lei, tendo predominado nos discursos sobre o pai publicados em 2019. Esta figura paterna foi retratada com as características sociais do ganha-pão tradicional, ou seja, o pai distante cuja paternidade é mediada pelo trabalho e pela mãe durante a conjugalidade. É um pai que não quer ou não tem competências para cuidar dos filhos após a separação e é cúmplice da desigualdade de género que molda o regime de RU.

Os pais-homens são os primeiros a não desejar a residência alternada - um pai que invista na carreia não consegue ir buscar os filhos à escola na semana que lhe compete e passar os fins de tarde com eles. A frase foi dita numa entrevista ao Notícias Magazine pela antiga juíza do Tribunal Constitucional Clara Sottomayor. Que depois acrescentou: “A lei das responsabilidades parentais depois do divórcio não é um instrumento para concretizar a igualdade de género. [Daniel Oliveira, Expresso]

O pai discriminado surgiu das narrativas sobre a desigualdade de género inerente ao regime de RU com partilha de responsabilidades parentais e as consequências do mesmo para o pai, apresentadas pelos apoiantes da RA. Foi retratado como a figura paterna renegada e excluída dos cuidados e interações quotidianas com os filhos pela RU, principalmente em 2018 e 2019.

[…] o pai passa a ser visitante na vida dos filhos. Usufrui intermitentemente de umas migalhas de tempo com as suas crianças, numa punição provinda do nada, como se cumprisse castigo por pecado original. Uma condenação disfarçada por pretensa partilha de “assuntos de especial importância” na vida dos filhos - quando, de facto, o fundamental é a inclusão e participação no seu dia-a-dia. [Paulo Henrique Figueiredo, Público]

Pelo seu turno, a construção discursiva do pai cuidador, que ocorreu nos textos de 2018 e 2019, estava interligada a duas temáticas: as mudanças nas práticas paternas; e se a sociedade portuguesa está ou não pronta para a RA como lei. Assim, esta figura paterna foi retratada como o pai presente no quotidiano dos cuidados aos filhos, emocionalmente próximo destes e envolvido na coparentalidade.

Ser pai a sério é muito mais do que ser visitante: é ser constante, participar plenamente, estar por dentro, ter momentos de ternura no deitar, no acordar, no contar de histórias para adormecer; disciplinar e, por vezes, contrariar, que também faz parte de educar. [Paulo Henrique Figueiredo, Público]

Vivemos numa sociedade em que os papéis de género se estão a modificar, exigindo-se (e muito bem) aos homens um maior papel na vida familiar e de acompanhamento dos filhos. A consequência óbvia desta mudança de papéis é que os homens aprendem a tratar das crianças e criam vínculos cada vez mais fortes com os filhos. Hoje, os pais são incomensuravelmente mais cuidadores, afetivos e presentes. [Luís Aguiar-Conraria, Observador]

Por fim, o pai reconstruído foi retratado como aquele que considera o divórcio/separação como uma oportunidade para ser mais próximo e envolvido na vida dos seus filhos do que foi na conjugalidade. Foi a subcategoria menos mencionada no debate.

Quando a separação se dá, muitas mães ainda têm dificuldade de encontrar outros papéis significativos na sua vida e muitos pais tentam viver uma proximidade que não foi suficiente até então. [Ana Gabriela Silva, Público]

A maternidade “após separação”

Em contraste com a forte tematização do pai e das práticas paternas, foi dada muito menos atenção à mãe e às práticas maternas na imprensa. Quando presentes, sobressaíram as mães em risco, perigosas, resistentes à mudança e sobrecarregadas (figura 5).

Figura 5 Distribuição dos segmentos de texto pelas subcategorias de práticas maternas, segundo o ano(N = 29) 

A mãe em risco foi a mais falada em 2018, aparecendo nos discursos como a vítima do pai perigoso e da RA porque esta implica a partilha parental e o contacto entre o pai e a mãe:

[…] [a RA como regra] é uma conceção “muito, muito perigosa”, na medida em que pode promover “o ascendente e a violência constante de um agressor ou agressora sobre as vítimas”. Ou seja, a residência alternada pode funcionar como uma “arma” à disposição do agressor, para manter a proximidade e o contacto permanente com a vítima. [Susete Francisco, Diário de Notícias]

Já a mãe perigosa esteve presente nos argumentos ao longo dos três anos. Agregou argumentos de contestação da acusação de que todos os homens são potenciais agressores na família, avançada pelos opositores da RA:

Se formos mais específicos e compararmos os pais com as mães, vemos que as mães agridem muito mais do que os pais (73% mais). Mas, mesmo não indo para o caso das agressões extremas que motivam a intervenção do IAC, há vários estudos que indicam que as mães são quem mais bate nas crianças. [Luís Aguiar-Conraria, Observador]

Os discursos sobre a mãe resistente à mudança destacaram-se em 2018 e 2019. Nestes, esta é cúmplice da desigualdade parental inerente à RU, por não querer perder os privilégios na relação com os filhos que esta dá às mulheres.

Numa sociedade onde o poder das mulheres ainda é escasso, o poder sobre os filhos dá-lhes uma sensação de empoderamento irresistível. Muitas vezes, esse poder doméstico é usado como vingança contra o ex-marido que é relegado para a condição de cabide dos sábados e de cartão de crédito da semana inteira. [Luís Aguiar-Conraria, Observador]

Por fim, a mãe sobrecarregada foi a subcategoria que teve maior presença no debate de 2019. Foi representada como carregando aos ombros as consequências da crença de que as mães são naturalmente mais dotadas para cuidar de crianças.

[…] as mulheres em causa não são apenas mães, mas […] também têm outras ambições e […] para as divorciadas é um tremendo fardo terem a responsabilidade - e o cansaço - dos filhos só em cima delas. [Luís Aguiar-Conraria, Público]

Conclusão

O principal objetivo deste artigo foi investigar como é que as famílias, a criança, a maternidade e a paternidade foram representadas nas notícias de jornal que fizeram a cobertura noticiosa da transformação da RA em lei de família.

A cobertura noticiosa da mudança legislativa foi composta por um número semelhante de notícias duras e notícias de opinião. Mas ambas foram plataformas de tomadas de posição a favor e contra a RA. Nas notícias duras, sobressaíram as vozes de jornalistas e das fontes que consultaram para corroborar a sua posição e a do jornal que representavam. Nos artigos de opinião, principalmente publicados pelo Público, evidenciaram-se as vozes de interessados e “especialistas” numa forte disputa ideológica e política polarizada, em que opositores e apoiantes da mudança legislativa procuraram o reconhecimento dos seus pontos de vista sobre a RA. Tais argumentos veicularam representações de velhos e novos modelos culturais de família e parentalidade e, portanto, das relações de género, da maternidade, da paternidade e da criança.

Na linha do explicado por Jaffe e Crooks (2004), a oposição à mudança legislativa foi fortemente protagonizada pelos membros e simpatizantes das associações envolvidas no apoio a mulheres e crianças vítimas de violência doméstica e na luta feminista pelo reconhecimento legal da necessidade de as proteger. Nos seus discursos, evocaram modelos culturais tradicionais de família e parentalidade com pouca expressão na sociedade portuguesa (Marinho e Gouveia, 2021) e perspetivas deficitárias da paternidade (Hawkins e Dollahite, 1997), para defender que a sociedade portuguesa não precisava da mudança legislativa, nem estava pronta para ela. Assim, este registo discursivo foi povoado por representações da família perigosa e ideal, da criança e da mãe em risco, e do pai perigoso e inadequado. Ao arrepio da literatura sobre as práticas de divórcio e de RA, bem como sobre as atitudes face à parentalidade e à família na sociedade portuguesa, ilustrada no presente artigo, o peso do conflito parental no divórcio/separação e nas práticas de RA foi exacerbado. Assim como o perigo desta para as crianças, supostamente resultante dos contactos entre mães e pais e da partilha parental, que as torna “armas de arremesso” e sujeitas à instabilidade de andarem de “mala às costas” entre a casa da mãe e a do pai. À RA foram associadas listas de requisitos e condições impossíveis de concretizar pela maior parte das famílias, tornando-a um ideal inalcançável. As mães foram e representadas como vítimas da RA, sujeitadas por ela quer ao pai agressor, defensor da RA para exercer o seu poder sobre a mulher e não ter de pagar a pensão de alimentos, quer ao pai inadequado, “naturalmente” focado apenas na carreira, distante da criança emocionalmente e sem vontade e competências para cuidar dos filhos e filhas, quer na conjugalidade quer após a sua dissolução. Deste modo, os discursos de oposição à RA e mudança legislativa utilizaram as notícias para criar pânico social em torno da violência doméstica e dos maus-tratos às crianças, exagerando o peso que têm na sociedade portuguesa e enviesando os resultados da investigação sobre a relação entre estas e a RA.

Outro resultado relevante demonstra que os argumentos dos apoiantes da RA e da mudança legislativa evocaram modelos igualitaristas de família e parentalidade para contrapor aos argumentos dos opositores, retratando a família igualitária, desigual e em mudança nos seus discursos. Deste modo, assinalaram a relação entre a RA e a igualdade de género e os benefícios desta para mães, pais e crianças, e criticaram os pressupostos tradicionalistas e de desigualdade de género da RU, para defender a necessidade de adequar o código civil às novas dinâmicas parentais e familiares.

As representações da criança relacional e com direitos nos seus discursos realçaram a ligação dos princípios do seu “superior interesse”, com a manutenção de uma relação próxima com pai e mãe após separação/divórcio e com as novas perspetivas da criança como cidadã que tem direitos autónomos dos direitos dos pais. As figuras do pai presentes nos seus discursos (discriminado, cuidador e reconstruído), assinalaram não só a desadequação da RU para as crianças e pais contemporâneos, mas também mudanças em curso na paternagem assinaladas pela investigação, retratando não só os pais presentes e envolvidos nos cuidados às crianças e emocionalmente próximos destas, como também os que fizeram do divórcio/separação uma oportunidade de mudar a forma como foram pais na conjugalidade, tornando-se mais próximos e envolvidos na vida dos filhos. Já as figuras da mãe representadas nas notícias (perigosa, resistente à mudança e sobrecarregada), procuraram não só demonstrar que existe violência doméstica e maus-tratos infantis tanto no masculino como no feminino, como também que as mães são quer cúmplices quer a fonte da desigualdade de género sofrida pelos pais na regulação das responsabilidades parentais e, portanto, culpadas da sobrecarga parental que sofrem quando ficam a residir com as crianças.

Assim, também o discurso dos apoiantes da mudança legislativa se centrou em amplificar uma determinada versão da realidade parental, que veiculou uma perspetiva deficitária da maternidade e moldou a ausência no debate das mães envolvidas na coparentalidade e igualdade parental, as que incentivam ou exigem que o homem cuide das crianças e das tarefas domésticas na conjugalidade e desejam a RA no divórcio/separação (Cunha e Marinho, 2018; Marinho, 2017).

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Recebido: 02 de Fevereiro de 2023; Aceito: 07 de Junho de 2023

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