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Etnográfica

versão impressa ISSN 0873-6561

Etnográfica v.10 n.1 Lisboa maio 2006

 

DANIEL MELO

A LEITURA PÚBLICA NO PORTUGAL CONTEMPORÂNEO (1926-1987)

Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais, 2004.

 

É talvez pelo problema da leitura, ou melhor, pelo problema da alfabetização, que passam os maiores desafios hoje colocados a todos os tipos de estudos culturais contemporâneos, e nomeadamente à história cultural clássica propriamente dita. Esta referência específica à história cultural não se deve a qualquer tipo de privilégio que lhe seja devido: pelo contrário, a disciplina que mais contribuiu para a definição do que seja a cultura portuguesa contemporânea acabou por se transformar no maior obstáculo ao conhecimento cultural do Portugal contemporâneo. O caso é bem conhecido: de Garrett ao neo-realismo, ou de Herculano a Eduardo Lourenço, a cultura portuguesa foi fixada como cultura letrada e, nesse sentido, reduzida a uma apertada oligarquia cultural.

Não se trata apenas de um problema quantitativo, embora seja verdade que, por si só, o facto de a história cultural deixar de fora, à partida, a maior parte da população, levanta dificuldades epistemológicas insuperáveis. A maior dessas dificuldades, porém, tem que ver com as relações que, no contexto do analfabetismo endémico da contemporaneidade portuguesa, se estabeleceram entre uma civilização que se quis da escrita e a realidade circundante que não sabia ler. Ou para falar com mais clareza: trata-se da dificuldade de não conseguir pensar a escrita como instrumento de poder na medida em que quem escreve e quem lê coincidem. A oligarquia cultural correspondeu à oligarquia política, o que arrasta atrás de si a própria história política contemporânea: tal como a história cultural, é uma história de Portugal reduzida a uma percentagem residual dos portugueses. Mas que, precisamente nesse sentido, exerce sobre o país quase todo que fica de fora um poder asfixiante.

Assim, a historiografia parece repercutir uma estrutura social de poder sobretudo marcada por uma muito desigual distribuição de bens. Neste caso, de bens culturais. A palavra, por não ser escrita, é retirada aos mesmos que também não tiveram, até muito tarde, direitos políticos, que coincidiram, naturalmente, com a esmagadora maioria dos subordinados a um regime económico onde provavelmente começaram todos estes desequilíbrios da estrutura social. Por aqui se compreende como a questão da leitura, mais especificamente da leitura pública, isto é, das iniciativas políticas estatais no sentido de criar espaços e equipamentos para leitores, tema central de A Leitura Pública no Portugal Contemporâneo (1926-1987), de Daniel Melo, ao abrirem, quase naturalmente, a reflexão sobre os que nela não participam, pode desafiar o olhar sobre o universo cultural tradicional às suas implicações políticas e económicas.

Em primeiro lugar, porque a leitura é correlata da participação política. Neste aspecto, as respostas republicana e salazarista ao problema do analfabetismo são dois modos antagónicos de lidar com o mesmo problema, mas que têm em comum, precisamente, o facto de o reconhecerem como um problema maior de uma sociedade moderna a caminho da, ainda que lenta, massificação. A chegada ao universo da leitura de percentagens cada vez mais significativas de portugueses foi enquadrada (para não dizer controlada) tanto pelo patriotismo positivista republicano como pelo nacionalismo ruralista e católico do Estado Novo.

Em segundo lugar, porque, logo desde o final da I Guerra Mundial, a emergência das várias indústrias culturais, que constituíram os consumos do gosto e do senso comum do século XX, entraram em competição com as formas da cultura letrada. Ou seja, a evolução da sociedade pôs em campo uma série de fenómenos simultâneos: a urbanização implicou a massificação que foi alargando as expectativas da participação política mas também a entrada para o consumo do mercado capitalista, e tudo isto pressionou e foi pressionado pelo processo de alfabetização, por sua vez concorrente dos novos regimes de imagens e sons com que a rádio e a canção, o cinema e, mais tarde, a televisão foram contribuindo para moldar a cultura dos portugueses.

Confuso? Muito confuso. Mas também, convenhamos, muito mais promissor do que as séries de movimentos intelectuais, correntes estéticas, dos seus génios e das suas constantes rupturas, que compõem a cronologia cultural portuguesa do século XX. Confuso, ou antes, problemático, desde logo por uma questão, precisamente, cronológica: ao contrário do que se passa nas culturas centrais de referência à sociedade portuguesa, aqui a alfabetização não estava resolvida quando emergiu a cultura de massas. Enquanto o cinema, a rádio e a televisão se acomodaram ali a sociedades cuja cultura se baseava no livro e na leitura — e que portanto entraram num jogo explicitamente político e de mercado —, já em Portugal, sob a alçada do estado autoritário, as imagens e sons inscreveram-se sem mediação crítica num terreno em boa parte virgem de qualquer contacto com culturas urbanas.

É este o contexto das formas de propaganda salazarista. Formas urbanas, de produção e de consumo urbano, que assim puderam, com muito pouco atrito, fazer-se passar pelo imenso mundo rural onde vivia ainda a maior parte dos portugueses e cuja vida os seus hábitos culturais, os seus conflitos políticos e as suas estruturas económicas foi virtualmente inventada pela oligarquia citadina. E é por isso também que A Leitura Pública no Portugal Contemporâneo não podia deixar de se basear na convergência entre o seu objecto explícito, por um lado, e a questão da alfabetização e da natureza dos regimes políticos, por outro — a que se poderia ter acrescentado com proveito uma maior atenção às dinâmicas da leitura pública em relação com o crescimento das indústrias culturais.

Daniel Melo estabelece o período entre 1930 e 1970, no que diz respeito à alfabetização da sociedade portuguesa, como aquele em que se passou “de uma minoria significativa [38%] para uma maioria consolidada [76%]” (p. 70). Ora é precisamente no interior deste arco cronológico que nasce o cinema sonoro e se institucionalizam e popularizam a rádio e a televisão. Aliás, e ainda segundo o autor, é só a partir da década de 50 que a oferta pública de leitura acompanha decididamente o processo de alfabetização: ou seja, na mesma década em que, com a criação da RTP, se começam a reunir as condições para o domínio audiovisual do espaço público.

Os elementos que o autor nos dá, sobretudo nos capítulos que analisam o perfil dos leitores e das suas leituras, abrem a porta — se estabelecidas as múltiplas relações a que convidam — a inúmeras reflexões sobre as implicações políticas e culturais da evolução da leitura pública no século XX em Portugal. Um exemplo, talvez o mais significativo: a tendência para uma leitura mais evasiva, sobretudo através dos clássicos românticos do século XIX, nas mulheres, nos jovens e nos estratos sociais mais desfavorecidos, em contraste com a preferência por uma literatura mais crítica e cosmopolita daqueles que, por motivos sociais e etários, se encontravam mais próximos do poder. No contexto português do salazarismo, talvez se possa começar a fazer, a partir deste estudo, uma sociologia do neo-realismo, possivelmente para vir a chegar à conclusão de que o Estado Novo caiu, pelo menos, tanto aos pés da oposição política e cultural como da televisão.

Parece fácil de imaginar como muito do que a cultura portuguesa e os consumos culturais dos portugueses são, hoje, ficará mais perceptível se conseguirmos desenvolver com rigor alguns destes problemas que, a partir de A Leitura Pública no Portugal Contemporâneo, parecemos agora em condições de colocar.

 

Luís Trindade

Faculdade de Ciências Sociais e Humanas

Universidade Nova de Lisboa

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