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Etnográfica

versão impressa ISSN 0873-6561

Etnográfica v.10 n.2 Lisboa nov. 2006

 

Susana Narotzky e Gavin Smith

Immediate Struggles. People, Power and Place in Northern Spain

Berkeley, University of California Press, 2006, 251 pp.

 

Tendo por terreno etnográfico uma área da Comunidade Autónoma Valenciana, em Espanha, e casando o passado do pós-guerra civil com o presente das (des)regulações complexas de uma “economia regional”, esta é uma obra de alcance importante em muitos sentidos. Primeiro, porque constitui um excelente exemplo de reconstrução contemporânea do projecto etno­gráfico, reconstrução essa que deixa decididamente para trás a atmosfera de crise disciplinar em torno da antropologia, ainda não totalmente dissipada, sem com isso propor um impossível regresso ao statu quo ante. E se o seu registo nada tem de backlash, é precisamente porque não se equivoca quanto aos desafios que se levantam a esse projecto nos dias de hoje. Não só os identifica com rigor e lucidez, como alia a esta identificação uma reflexividade aguda, menos centrada no/a etnógrafo/a e nas questões de autoria — a esse nível a reflexividade não é enunciada: é praticada, criteriosamente, ao longo do texto — do que nas categorias usadas para descrever a realidade.

Nenhuma dessas categorias é jamais dada por adquirida. Antes de mais, no que diz respeito à maneira como recortam a realidade. Veja-se, para um exemplo entre muitos possíveis, o par localidade / transnacionalismo e o modo como tais categorias são susceptíveis de obscurecer, ou deixar de lado, os processos através dos quais se produz um “lugar” (place). O enfoque da obra nas “economias regionais” prende-se com efeito, na sua origem, com a proble­matização da questão do “lugar” no contexto do capitalismo contemporâneo, isto é, com uma modalidade específica de ressurgimento da “localidade” num mundo globalizado. O objecto propriamente dito diz respeito, tal como o formulam os autores, às relações sociais produzindo um “factor” económico que tem vindo recentemente a ser descrito como “capital social” e a ser associado a determinados espaços e territórios, associação esta contida em expressões como “economia regional” ou “distrito industrial”. A reflexividade que referi é uma das características mais estimulantes deste trabalho: a de levar-nos constantemente a mudar de ângulo, a re­cuar perante binarismos descritivos sedimentados e, sobretudo, a prescindir deles não a partir de posições de princípio, mas a partir da compreensão de práticas e processos específicos, processos esses em que os pólos de uma dualidade muitas vezes jogam, afinal, de maneira dialéctica.

Mas a reflexividade que é exercida em torno das categorias analíticas não é apenas de ordem conceptual. Ela é, também, de natureza política ao expor as poderosas implicações destes conceitos. É permanente a atenção dada ao modo como certas categorias descritivas são passíveis de vir, depois, a repercutir-se na realidade vivida pelas pessoas, incorporando-se nela e alterando-a, quer por via do quadro legitimador que fornecem ao desenho de determinadas políticas — no caso, políticas europeias e programas de desenvolvimento económico apoiadas numa ideia de “cultura local” e “capital social” —, quer por via da adopção destas mesmas categorias pelos próprios actores para definir norma­tivamente a realidade. Acontece que nem todos os actores sociais estão posicionados da mesma forma para corresponder a essas definições normativas e às suas correlativas essencializações culturais, tais como “o valenciano empreendedor”. Estão sim envolvidos numa malha de relações desigualitárias, de poder e de exploração económica, entramado esse tanto mais complexo quanto muitas vezes é feito de relações “comunitárias”de parentesco, amizade e vizinhança, quer dizer, precisamente o tipo de relações “locais” consideradas fulcrais para a vitalidade do tecido económico e do desenvolvimento segundo o modelo, agora hegemónico, de “economia regional”. Ora o modelo de vida social nele contido — e para o qual concorreram cientistas sociais com alguns dos seus conceitos — é um modelo de tipo corporativo que vela e escamoteia exactamente esta ordem de conflito pulsando nas relações sociais e económicas.

É neste sentido que esta etnografia reclama a centralidade da noção de classe como categoria da realidade capaz de captar o conflito presente nessas relações, os processos históricos que as constituem, e de fornecer uma perspectiva sobre o poder que as atravessa, ao mesmo tempo que deixa exposta a insuficiência de abordagens confinadas a um afloramento da “identidade”, da “experiência” e da “vida quotidiana”. Essas não deixam de ser reconhecidas como dimensões importantes e são exploradas com subtileza na etnografia realizada, mas sem que sejam descurados aspectos decisivos da reprodução social num contexto capitalista. Como os autores fazem questão de notar, por muito que tenhamos entrado numa condição pós-moderna ou numa sociedade pós-industrial, estamos longe de ter saído duma sociedade em que a reprodução da vida quotidiana assenta na produção de mercadorias produzidas através de um sistema de circulação de capital regido pela lógica própria da rentabilidade e do lucro. Essa e outras correntes de força que subjazem à experiência do dia-a-dia, geradas na história ou em esferas de poder longínquas, vêm cruzar-se numa abordagem multidimensional e a várias escalas que integra, de maneira sempre dialéctica, desde as práticas sociais observadas aos modelos teóricos e conceitos construídos.

Estas são algumas das razões que fazem com que a reconstrução do projecto etnográfico aqui referida de início seja feita nos termos daquilo a que os autores chamam de realismo histórico, designação essa que denota também o reconhecimento da necessidade de embeber a história na observação do presente, e de encarar para todos os efeitos cada pessoa como um sujeito e agente social historicizado. Mas este modo de fazer antropologia arranca antes de mais da porventura contra-intuitiva convicção — convicção essa argumentada também ela historicamente no domínio temático próprio da obra — de que a abordagem etnográfica é particularmente adequada e se encontra especialmente bem colocada para a compreensão da economia e da sociedade no mundo complexo e fracturado de hoje.

 

Manuela Ivone Cunha

Universidade do Minho — NEA, CEAS, IDEMEC

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