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Etnográfica

versão impressa ISSN 0873-6561

Etnográfica v.10 n.2 Lisboa nov. 2006

 

Miguel Vale de Almeida

Outros Destinos: Ensaios de Antropologia e Cidadania

Porto, Campo das Letras, 2004, 253 pp.

 

“) Dei por mim a olhar para a estatueta de São Sebastião que tenho no meu escritório. Sempre me fascinou como naquela imagem se misturam feminilidade e masculinidade, dor e prazer, sofrimento pelo presente e esperança pelo futuro. Sebastião lembrou-me da razão porque escrevo publicamente sobre sexualidade e não me restrinjo à vida académica: porque é um assunto político. E quando comecei a escrever umas linhas tímidas sobre sida, foi sempre sobre os fantasmas culturais que a sociedade cultiva em torno de e a propósito da sida: os comportamentos que não sejam os da família heterossexual, reprodutiva, monógama. Como antropólogo sinto que tenho a obrigação de mostrar que nem sempre as coisas foram como são, e nem em toda a parte são como entre nós.” (p. 237)

É talvez injusto escolher como abertura do presente comentário ao último livro de Miguel Vale de Almeida (MVA) uma citação retirada de um dos poucos capítulos, de um total de catorze, cujo texto original não é dirigido à academia. Mas, justamente, identificar uma hierarquização entre o texto académico e o texto para “fora” da academia talvez faça pouco sentido na forma como a tarefa do antropólogo é apresenta por MVA: “Para um antropólogo é provável que a cidadania constitua uma responsabilidade acrescida, pois a prática de uma ciência social é caracterizada por dois traços complexos: por um lado, ela é reflexiva, isto é, o conhecimento produzido pelo cientista social é incorporado pelos actores sociais, mudando o comportamento destes, gerando assim um infinito círculo hermenêutico; e por outro lado, a natureza do objecto de estudo é parte integrante dos interesses e preocupações do antropólogo enquanto membro de uma socie­dade, isto é, enquanto cidadão.” (p. 45)

Outros Destinos – Ensaios de Antropologia e Cidadania é um caso raro — na antropologia produzida em Portugal — de voo rasante, intenso e honesto (à falta de melhor expressão) a um percurso de investigação. Uma viagem que percorre praticamente todos “lugares”, ou “destinos” — para parafrasear o título —, visitados por este antropólogo ao longo de uma prática já com duas décadas. Esta revisitação de paragens através da reunião de textos dispersos (inéditos e publicados em revistas e colectâneas nacionais e internacionais) constitui uma oportunidade para perceber subtilezas, insistências, compromissos e reflexões do seu autor, por um lado, mas igualmente, percebê-las como reflexo da multiplici­dade de níveis e abordagens que a prática antropológica, em particular, e as ciências sociais, em geral, implicam. Talvez um dos aspectos mais interessantes neste traçar dos mapas geográficos dos projectos de investigação seja a forma como, mais uma vez, damos conta da complexidade, polifonia e capacidade de “regeneração reflexiva” dos resultados do trabalho de campo antropológico (que surgem em Outros Destinos sob a forma do registo pessoal, do diário de campo, da etnografia recuperada ou mesmo reciclada, do diálogo com outras áreas de saber/discur­sivas e com públicos diversos). A concentração de produção dispersa e alguma já publicada e traduzida exige necessariamente a definição de um fio condutor que lhe confira novos sentidos e pertinências. Esse trabalho assume aqui duas vias: por um lado a afirmação da prática antropológica como lugar de cidadania pelas possibilidades acrescidas de experiência ética que convoca; por outro, e mais indirectamente, a ideia de que em cada projecto de investigação antropológica há desvios, vias paralelas e, por vezes, reencontros que vale a pena serem revisitados.

Mas voltemos à citação de abertura e às razões da sua escolha. Para quem vem acompanhando o trabalho de MVA, não surpreende esta capacidade de pensar a partir de si, mais como partilha e impulso ético de compromisso pes­soal com o mundo e com a antropologia, do que como forma de autocentramento pessoal. Nesse sentido, a imagem que nos oferece (a da figura de S. Sebastião no seu escritório que o leva à reflexão sobre a necessidade de utilizar a sensibilidade e instrumentos de cientista social para proble­matizar temas socialmente relevantes) remete-nos para o que esta obra tem, a meu ver, de mais central: a concretização de um estilo e de uma forma incorporar a antropologia que, embora não seja isolada e inigualável, destaca-se no panorama actual.

Outros Destinos encontra-se estruturado em quatro partes que abarcam ensaios que resultam das grandes áreas de investigação de MVA: 1) “A Antropologia, a cidadania e os desafios do mundo contemporâneo”; 2) “Etnicidade, política da identidade e hegemonia cultural”; 3) “Género e sexualidade”; e 4) “O projecto crioulo”.

O texto de abertura é, a meu ver, exemplar das mais-valias deste projecto. Intitulado “Antropologia: tomar balanço para o século XXI”, trata-se de um ensaio que resultou de uma memorável conferência proferida na Culturgest a propósito do ciclo “O fundamental do século XX”, organizado por António Pinto Ribeiro em 1996. Embora com dez anos, é um texto útil para pensar as preocupações surgidas nos finais dos anos 90 e entretanto algo atenuadas, ou mesmo secundarizadas, pela própria viragem do milénio e pelos embates criados pela sucessão de acontecimentos arrebatadores que o inauguraram. Seguindo a proposta do contexto que lhe deu origem, é um texto de balanço, mas com projecção para diante, já que MVA aproveita a revisão para afirmar a importância da disciplina — pelas suas especificidades clássicas — como uma das mais produtivas formas de entendimento das complexidades e perplexidades da contempora­neidade: “O futuro da antropologia está na recuperação da herança etnográfica e desse carácter híbrido ou bastardo do tipo de conhecimento especial obtido nesse encontro. Assumindo os aspectos políticos do passado da sua fundação, o seu futuro poderá e deverá ser mais engajado na elucidação das relações entre os sistemas de dominação ou constrangimentos (incluin­do as gramáticas culturais) e as acções das pessoas e grupos na busca de sentido para as suas vidas.”  (p. 25).

Nos restantes capítulos desta primeira parte temos oportunidade de perceber (cap. 2) a mitologia pessoal deste antropólogo e de como ele descobriu (nas prateleiras de uma biblioteca municipal americana) uma ciência que dava espaço à construção e questionamento identitário do próprio cientista (pela mão das cartas de terreno de Margaret Mead). E ainda uma interessante visão pessoal sobre a antropologia portuguesa na viragem democrática. É também nestes capítulos que surge de forma mais presente o cruzamento entre objectividade/cidadania/engajamento (cap. 3); ou que são ensaiadas formas mediatizadas de material etnográfico (cap. 4).

A segunda parte cruza igualmente capítulos de discussão teórica com reflexões a partir da revisitação de material etnográfico. No ensaio de abertura (cap. 5) MVA procura cruzar duas noções — a de Estado-nação e a de multicultura­lismo — com o objectivo de sistematizar as semelhanças entre os dois “artefactos culturais” a que deram origem — o nacionalismo e o colonialismo — que se encontram na base das comunidades “instáveis e contestadas” (p. 82) em que vivemos durante todo o século XX. Um preâm­bulo importante para os textos seguintes que se centram sobretudo na etnografia recolhida no Brasil (Ilhéus, Bahia) sobre políticas de representação cultural e etnicidade. A experimentação das periferias da etnografia surge mais uma vez na abordagem da figura de Gabriela de Jorge Amado (cap. 7) ou na análise de recortes de jornais (cap. 8).

 A terceira parte percorre algumas questões cruciais do trabalho de MVA em torno da construção social do género e da sexualidade. Mais diversificado no tipo de textos, na extensão do período das pesquisas abarcadas e nas formas de abordagem, o conjunto de cinco capítulos reflecte uma abordagem de etnografia diversi­ficada ao serviço da já conhecida posição do autor: “Ora parece-me que o género é precisamente um processo de objectificação das relações sociais, simplificando a sua complexidade e localizando em homens e mulheres características de agência e poder que não lhes são inerentes. Importa pois identificar esses habitus que, sediados no sujeito incorporado, reproduzem o género e o potenciam a ‘falar’ do poder noutras relações sociais, como o trabalho, a política, as expressões emocionais.” (p. 180).

A última parte de Outros Destinos é integralmente dedicada a uma discussão sobre a noção de “crioulo” e “crioulidade” a partir da produção antropológica de Almerindo Lessa sobre o Cabo Verde colonial. Uma reflexão que aborda simultaneamente a história da disciplina, as fragilidades da antropologia portuguesa de enfoque colonial e que denuncia a construção, culturalmente enraizada, das teorizações sobre a crioulidade.

Apesar de a grande maioria dos textos publicados em Outros Destinos não serem inéditos e assentarem em dados etnográficos em parte já conhecidos a partir de outras obras de MVA, o exercício da sua compilação em torno de uma clara linha de abordagem antropológica, o esforço de reinvenção e compromisso com a etnografia que reflectem, tornam este projecto um importante fruto de maturidade académica.

 

Teresa Fradique

Escola Superior de Artes e Design de Caldas da Rainha

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