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Etnográfica

versão impressa ISSN 0873-6561

Etnográfica v.12 n.2 Lisboa nov. 2008

 

A energia da antropologia. Seis cartas de Jorge Dias para Ernesto Veiga de Oliveira

João Leal

Universidade Nova de Lisboa; Centro em Rede de Investigação em Antropologia

 

Jorge Dias (1907-1973) manteve ao longo da vida uma intensa correspondência – até agora inédita – com vários dos seus amigos, colaboradores e colegas. As seis cartas que a seguir são publicadas são dirigidas ao seu grande amigo e companheiro de equipa Ernesto Veiga de Oliveira. Foram escolhidas por Benjamim Pereira de entre um conjunto mais vasto de cartas e foram transcritas, com respeito pela grafia original, por Catarina Mira. O período que cobrem é um período extenso: a primeira carta foi escrita em 1939, quando Jorge Dias iniciava os seus estudos etnológicos em Munique, e a última data de 1959, quando Jorge Dias, já depois da reorientação africanista da sua pesquisa, desempenhou funções de professor visitante na Universidade de Witwatersrand em Joanesburgo. Uma dessas cartas – escrita em papel timbrado da Missão de Estudos das Minorias Étnicas do Ultramar Português – não está datada, mas tudo indica que tenha sido escrita no final dos anos 1950, antes da estada de Jorge Dias em Joanesburgo.

Cada leitor lerá as cartas de diferentes maneiras: como uma janela de entrada nos sentimentos e sonhos de Jorge Dias, como documentos informais sobre o seu percurso científico e o dos seus companheiros de trabalho, como testemunhos sobre o modo como as suas aspirações se cruzaram com os dilemas do seu tempo.

Pela minha parte houve dois ou três pontos a que fui mais sensível. Um deles tem a ver com o modo como as cartas documentam o fascínio de Jorge Dias por modos de vida alternativos, identificados com o campo e associados à errância, à liberdade e à plenitude. Em 1939, em Munique, escrevia a Ernesto Veiga de Oliveira: “Estou ávido por me deitar pelos montes fora, a beber a luz, porco, rôto, selvagem. Vai-me saber espantosamente bem ter uns mêses consigo. Havemos de nos asselvajar até à medula. […] Havemos de percorrer essas regiões espantosas do País, lentamente, de saco às costas, a fazer a comida entre duas pedras, dormindo nos palheiros. Ouviremos aquelas vozes que quási emudeceram para nós, porque brutalizamos a nossa mais pura emotividade, com as lutas estúpidas a que nos temos sujeitado.”

É desta energia quase libertária que nasce a antropologia em Jorge Dias. Em 1942, ainda na Alemanha – esse “mundo nórdico de névoas espessas e frios glaciais” – Jorge Dias fala já da antropologia como a possibilidade de realização profissional de um ideal de “vagabundagem” – expressão recorrentemente usada na sua correspondência – associado à liberdade dos grandes espaços campestres e serranos. A etnologia, escreve Jorge Dias a Ernesto Veiga de Oliveira em Julho de 1942, “é para nós uma possibilidade única porque nos dá liberdade para andarmos meses pelas serras e campos, com a certeza de ter o pão garantido na sociedade dos homens”. Em Novembro de 1942 volta a insistir: “A Etnografia permite-nos viver pelos montes e pelas aldeias, sem termos um patrão, livres como desejamos e com a vantagem de termos uma recomendação do ministério e um ordenado todos os mêses.”

Presente nos anos de formação de Jorge Dias, esta energia libertária, de fundo antimodernista, nunca mais o abandonou, como mostra uma carta do final dos anos 1950 em que Jorge Dias escreve: “Eu tenho passado estes dias na quinta e, coisa curiosa, começo a sentir-me cada vez melhor naquele vale solitário rodeado pela ameaça invisivel da civilização. Vivo ali como um vagabundo, inebriado com o aroma das plantas silvestres e com os cantos da passarada e de outros bichos. Sinto-me bem, e cada vez me sinto menos ligado às ambições que fervilham na cidade fedorenta, empomadada e engomada.”

Testemunhando dessa energia que habita a vocação antropológica de Jorge Dias, as suas cartas para Ernesto Veiga de Oliveira falam também de alguns dos passos da transformação dessa energia em antropologia.

As cartas da Alemanha são essenciais para perceber as fases iniciais dessa transformação: as primeiras leituras, a oscilação terminológica entre etnografia, geografia humana e Volkskunde, os primeiros esboços de projectos, como quando Jorge Dias escreve a Ernesto Veiga de Oliveira, enfaticamente: “não quero que Você abandone o seu curso, pois convem ter uma licenciatura em Letras […]. Os trabalhos a fazer são de vária ordem e muito vastos e entre outras coisas convem uma certa cultura filológica, pois talvez valesse a pêna fazer o mapa linguístico de Portugal.” Da mesma forma, em Novembro de 1942, antecipando o seu regresso a Portugal, Jorge Dias desafia Ernesto Veiga de Oliveira para um primeiro exercício de etnografia vagabunda: “Estas férias já devíamos vaguear muito por serras do norte, para possivelmente publicarmos qualquer coisa juntos antes da sua licenciatura e depois meu caro Ernesto, a nossa vida será lado a lado, por serras e vales, pelas praias cheias de sol, pelas romarias coloridas e barulhentas e pelos grandes planaltos silenciosos e desertos em que velhos pastores perpetuam costumes milenários.”

Quanto às cartas de final dos anos 1950, surpreendem vários momentos dessa energia já transformada em antropologia concreta. Alguns desses momentos são institucionais. É o caso da criação do Centro de Estudos de Etnologia, ao qual repetidamente Jorge Dias regressa nas suas cartas. Na carta não datada de final dos anos 1950 refere-se-lhe ainda, de forma algo contida, como um Centro que deverá “estudar diferentes aspectos da cultura das sociedades humanas e em especial do pôvo português nas várias regiões da terra em que se encontra fixado”. Mais tarde, em carta de Dezembro de 1959, transparece já o entusiasmo pela obra realizada no quadro do Centro: “Afinal, a gente pode ter a certeza de que o nosso Centro vem a realizar uma obra única no país, e com recursos extremamente modestos. Ou eu me engano muito, ou daqui a uns dez anos o nosso Centro é uma instituição notável no país pela obra realizada. É tudo uma questão de orientar bem o trabalho e de trabalhar com perseverança.”

Simultaneamente, as cartas de final dos anos 1950 documentam vários momentos do desenvolvimento das pesquisas concretas às quais se abalançavam então Jorge Dias e os seus companheiros. A pesquisa relativa aos espigueiros, que estaria na origem do clássico Espigueiros Portugueses (1963), é várias vezes referida, como na carta de Dezembro de 1959: “Gostei de saber que Vocês sempre estão decididos a atirarem-se aos espigueiros. Eu tenho hoje muitos elementos sôbre o assunto de muitas partes do mundo: Africa, America do Sul, Centro e Norte, e Oriente. Creio que possa trazer alguns elementos novos sôbre o caso. Não sei se o faça já, juntamente convosco, ou se publique mais tarde. De qualquer maneira o vosso tem de aparecer antes ou ao mesmo tempo, pois a parte especulativa deve seguir-se a parte descritiva e analítica.” As pesquisas de Ernesto Veiga de Oliveira sobre a arquitectura popular em Portugal são também referenciadas. Depois de referir uma deslocação de Orlando Ribeiro a Tavira para estudar os “telhados a 4 águas, tipo pombalino, com características orientais”, Jorge Dias escreve a Ernesto Veiga de Oliveira: “Isto mostra a importância dos estudos da habitação que Vocês têm vindo a fazer com extraordinário rigor, mas que por enquanto está limitado ao litoral do Norte. É preciso estender a vossa actividade a outras áreas do país.”

Por vezes são anunciados projectos que nunca chegaram a ser concretizados, como a ideia de escrever “uma pequena monografia sobre as constantes da actividade industrial do povo portugues”. Noutros casos assinalam-se novas possibilidades técnicas – o carro, uma Leika – que permitiriam projectar a pesquisa para novos patamares de exigência. Há uma menção à reorientação africanista da pesquisa de Jorge Dias, que se lamenta a esse propósito por ter abandonado os seus companheiros de trabalho “para seguir tão desvairados caminhos”. A integração de Benjamim Pereira – “seguro, sereno e de olhinho vivo e sempre alerta” – na equipa de trabalho do Centro é também objecto de várias referências: “Ele é um excelente moço e tenho a certeza que havemos de fazer dele um bom etnógrafo. Eu simpatizei logo que o vi pela primeira vez, mas agora não tenho a mínima duvida de que está ali uma pérola. Se tu o fores ajudando e pulindo, orientando convenientemente a sua actividade e sujerindo alguma leitura havemos de fazer dele um magnífico colaborador.”

Tomadas no seu conjunto, estas referências – e outras que o leitor terá ocasião de descobrir por si próprio – mostram-nos um Jorge Dias irrequieto na sua ânsia de fazer da antropologia um espaço de movimento e de “perseverança” aberto a novos desafios. Ainda hoje somos devedores – em Portugal – dessa energia que transformou a “vagabundagem” numa “disciplina” que faz da visitação de universos culturais diferentes o seu motivo inspirador.

 

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