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Etnográfica

versión impresa ISSN 0873-6561

Etnográfica v.12 n.2 Lisboa nov. 2008

 

Gilberto Velho (org.)

Rio de Janeiro: Cultura, Política, Conflito

Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2008, 228 páginas.

 

Num estilo ecléctico, abrindo muitas portas de entendimento e sublinhando as potencialidades de um método, o etnográfico, esta obra está entre aquelas que merece ser lida por muitos. Trata-se de uma colectânea que resulta da articulação de dois factores: a já maturada pesquisa de Gilberto Velho em torno dos temas da antropologia urbana e das sociedades complexas e a edição de pesquisas em curso, levadas a cabo por alunos do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Departamento de Antropologia do Museu Nacional / UFRJ. É uma obra de síntese de temas muito variados mas que tem como pano de fundo a cidade do Rio de Janeiro, em particular, e os universos urbanos, em geral.

Há muito que Gilberto Velho assumiu como responsabilidade a abertura de um campo de estudos antropológicos dos fenómenos complexos que observava na sociedade brasileira e em detalhe na cidade carioca. A lista de publicações é hoje muito extensa e foi inaugurada por essa grande inquietação intelectual que representa O Desafio da Cidade (Campus, 1980). Na última década, porém, o autor tem-se dedicado insistentemente à questão da violência no Brasil contemporâneo, por exemplo em Cidadania e Violência (FGV, 1996), Mudança, Crise e Violência (Civilização Brasileira, 2002).

Em Rio de Janeiro: Cultura, Política, Conflito, no texto de abertura escrito pelo autor, “Metrópole, cultura e conflito”, podemos sublinhar dois aspectos principais para uma análise crítica contemporânea da vida urbana no Rio. Primeiro, a forma como descreve a transformação rápida de uma cidade em metrópole. Segundo, G. Velho insiste no argumento de que a convivência interiden­titária, a coexistência e interacção entre diferentes segmentos sociais – base mesmo da vida nas cidades – parecem hoje encontrar-se comprometidas. Neste sentido, o autor recorre aos estudos de G. Simmel para diferenciar conflito (presente em todas as sociedades) e violência (dimensão não generalizada da vida social), defendendo que no Rio se desenvolve uma verdadeira “cultura da violência” que ultrapassou largamente os limites da conflituosidade social.

O texto lança o mote que serve de âncora aos restantes textos do livro: a cultura é o eixo privilegiado da investigação. “As diferenças em termos de visões de mundo e estilos de vida entre categorias sociais que convivem e interagem cotidianamente não são sempre óbvias ou facilmente identificáveis” (p. 12). Assim, propondo uma abordagem etnográfica, um esforço intelectual de “estranhamento do familiar”, os restantes textos lançam-se na procura desses traços culturais que fazem do Rio de Janeiro a cidade que ela é, a cidade como ela é, para parafrasear o famoso cronista Nelson Rodrigues.

Os textos que se seguem são olhares próximos, etnografias situadas, que partem da reflexão de vários problemas e fenómenos que têm expressão na cidade e que oscilam criativamente entre: os bailes funk; os showmícios da política; redes sociais de músicos e professores da Baixada Fluminense; mulheres do samba; boates, estilos de vida gay e práticas homoeróticas; o mundo do heavy metal de várias zonas do Rio; camelôs e pontos de venda ambulante. Este é um aspecto a louvar só por si. Nesta obra temos a possibilidade de entrar directamente em realidades que não tendo sido etnografadas se mantiveram amplamente desconhecidas para grande parte de académicos e do público leitor em geral.

Tal como os temas, também os estilos narrativos são variados. Por exemplo, o texto de F. Piccolo, “Os jovens entre o morro e a rua…”, propõe-se tratar as questões de negociação do estatuto no acesso ao terreno de estudo (o morro de Vila Isabel, na zona norte do Rio), desenvolvendo e demorando-se sobre a sua categoria de outsider e sobre como se foi construindo uma certa familiarização com as pessoas do contexto estudado. Era não só a jovem mulher branca, não identificada como residente ou oriunda do mesmo segmento social das pessoas com quem se relacionava, mas uma recém-moradora do Rio de Janeiro, oriunda de “um outro Brasil”, do Rio Grande do Sul, e amplamente desconhecedora dos morros cariocas.

Talvez em sentido inverso, o texto de S. Costa, “Vertigem em Nilópolis…”, aproveita a sua experiência etnográfica para revelar, num tom confessional, desenvolvimentos autobiográficos associados à experiência de regresso ao lugar onde cresceu e de onde saiu para a ele voltar, mas agora perspectivando-o de modo antropológico. Ao olhar para a vida cultural na Baixada Fluminense, o espelho identitário mostrou-lhe conflitos subjectivos e uma certa transformação progressiva do que é familiar em estranheza e que, num momento seguinte, foi necessário deslindar.

Já M. Burns, em “A dona da voz e a voz da dona…”, opta por descrever uma vida, a da compositora e sambista Dona Ivone Lara, à medida que vai sugerindo interpretações sociológicas. Por sua vez, P. Lopes, em “Mundo heavy metal no Rio de Janeiro”, leva-nos no seu ombro numa viagem a vários clubes, ambientes underground, rixas e aparato simbólico destes rockeiros. Enquanto isso, procura explicar como se formulam identidades juvenis, zonas de gosto e o seu próprio interesse pessoal na escolha deste objecto de estudo.

Os textos da obra não se centram apenas nas questões que à “tecnologia da produção antropológica” dizem respeito, e talvez por isso sejam tão interessantes.

Ao usarem ferramentas disponíveis para conhecer e descrever o que observam, ao usarem quer modalidades narrativas mais introspectivas e autobiográficas, quer visões menos atravessadas por envolvimentos pessoais, os textos vão oferecendo dados relevantes para a interpretação das plurais e multi-situadas realidades urbanas.

O texto de A. Barreto, “Sobre palanques e palcos…” é, quanto a mim, dos mais bem conseguidos na articulação entre a proposta metodológica e a interpretação dos dados. Usa uma metodologia criativa para observar na sua extensão e plasticidade o papel dos showmícios na vida política-partidária local. Ao mesmo tempo, o texto é relevante para evidenciar as relações entre dinamismos políticos, culturais e económicos da cidade.

Outro texto bem conseguido é o de M. Benítez, “Buraco da Lacraia…”, na medida em que evidencia a presença do corpo e das marcas de raça, classe, género, idade e estilos nas interacções interpessoais e, em particular, nos intercâmbios homoeróticos estabelecidos.

Por fim, P. Mafra, em “Camelôs cariocas”, oferece uma pitada do que pode vir a ser uma boa etnografia, circulando com os vendedores ambulantes do Rio de Janeiro e que, sendo alvo de políticas restritivas e de controlo policial, evidenciam uma actividade que não cessa de crescer. Seria certamente muito interessante, todavia arriscado, penetrar os canais de influência e de expansão local / global dos pequenos e grandes camelôs.

O que se revela atraente nesta obra é como a sua estrutura e organização reflecte em grande medida o que é perceptível para a maioria dos cariocas e para quem com eles convive um dado período da sua vida. Se, por um lado, é inegável uma geografia da violência, terrenos e itinerários dos problemas: crescendo de violência armada e ligações opacas entre política, crime, polícia, por outro lado, o Rio de Janeiro é uma cidade que não cessa de fervilhar nas suas opções culturais, de sociabilidade múltipla, nas trocas de experiências e de estilos de vida e até mesmo na afirmação de novos mercados locais e de possibilidades, formais ou informais, que fazem da economia e da sociedade brasileira um exemplo de dinamismo no mundo.

Assim, qualquer retrato sociológico do Rio de Janeiro que não contemple pelo menos o cruzamento entre estas duas leituras da realidade quotidiana – que para simplificar se poderiam determinar como uma mais crítica e outra mais aberta à surpresa – não pode oferecer um quadro coerente do que ali se passa.

 

Susana Durão

Investigadora auxiliar do ICS-UL

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