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Etnográfica

versão impressa ISSN 0873-6561

Etnográfica v.13 n.1 Lisboa maio 2009

 

Entre as luzes e as sombras da cidade: visibilidade e invisibilidade no graffiti

Ricardo Campos*

Partindo de uma pesquisa de natureza etnográfica junto de jovens que se dedicam ao graffiti urbano, procura­‑se reflectir sobre a condição social destes actores que vivem, simultaneamente, entre dois universos sociais e culturais, construindo intrincadas estratégias de gestão da identidade e do seu quotidiano. O graffiti representa para muitos jovens um horizonte de ruptura e transgressão, um território de rejeição da lei e dos normativos hegemónicos onde se experimentam o risco e o desvio, a excitação e as sanções tantas vezes dolorosas. Este universo social, complexo e paradoxal, serve de mote à análise de questões como a relação entre as margens e o centro, a construção identitária no mundo contemporâneo, a visualidade e o anonimato na cidade.

Palavras­‑chave: juventude, graffiti, cidade, identidade, anonimato, visualidade.

 

Between the lights and the shadows of the city: visibility and invisibility in graffiti

An ethnographic research developed within the graffiti community of Lisbon is the starting point for a reflection regarding the social condition of the young members of this community. The graffiti writers live between two social and cultural universes, building complex strategies of managing identity and everyday life. Graffiti represents, for many young people, a ground for struggle and transgression, a chance to reject the law and the hegemonic norms, an arena where they experiment risk, excitement and, sometimes, painful sanctions. This complex and paradoxical social universe inspires the author to analyze subjects such as the relation between the margins and the center, identity construction in the contemporary world, visuality and anonymity in the city.

Keywords: youth, graffiti, city, identity, anonymity, visuality.

 

O presente artigo surge no âmbito de uma série de reflexões sobre o significado do graffiti[1] contemporâneo, integradas num projecto mais vasto que procura fundar alicerces para uma exploração antropológica da cidade enquanto território de comunicação visual (Campos 2005; 2007). A visualidade é um campo relativamente ignorado da pesquisa social. No entanto, como defendem diferentes autores na área da antropologia (Canevacci 2001; Banks 2001; MacDougall 1997; Pink 2001; Ribeiro 2004) e da sociologia (Chaplin 1994; Sauvageot 1994; Harper 2000; 1998), esta é uma dimensão extremamente importante da vida social, necessitando de um projecto de questionamento teórico e metodológico sólido.

Tive a oportunidade de estudar o graffiti urbano ao longo de mais de quatro anos, observando a cidade e trocando impressões com os autores desta linguagem tão particular.[2] Este é um universo complexo e heterogéneo, incentivando diferentes olhares e leituras. Achei particularmente interessante pensar o graffiti e os seus protagonistas à luz dos problemas que as ciências sociais têm levantado sobre os processos de construção identitária nas sociedades complexas, num mundo cada vez mais globalizado. Diferentes autores parecem apontar para uma realidade que reflecte a existência de identidades mais fluidas, impermanentes e compósitas (Appadurai 2004; Hall 2004; Velho 1987; Hannerz 1996; 1997). A identidade social / cultural remete, cada vez mais, para um projecto em curso, um processo contínuo de fabricação de um ser social que utiliza diferentes recursos e estratégias nesta gestação (Velho 1987; Hall 2004). Neste contexto, as denominadas “tribos juvenis” ou “urbanas” (Feixa 2006; Pais e Blass 2004) representam arenas sociais onde os mais jovens exploram estratégias de construção identitária que reflectem bem a natureza global, fragmentada e criativa deste processo.

A condição social dos actores do graffiti urbano é interessante para problematizarmos os processos de construção identitária, a fragmentação de identidades e a criatividade dos grupos na fabricação de modelos culturais à margem dos padrões hegemónicos. O graffiti é, desde as suas origens, o resultado de uma acção de subversão. Enquanto cultura, representa um conjunto de normas de acção, de valores, representações e ideologias fundados tendo por referência uma acção que é ilegal e, consequentemente, alvo de perseguição. As identidades colectivas e individuais forjadas neste território “à margem” (tempo e espaço sociais identificados como opostos à norma social dominante) incorporam a ruptura, dramatizam o estigma, capitalizam o desvio na elaboração de narrativas individuais e desígnios colectivos.

Correspondendo a um universo social fechado, que se protege do exterior e se resguarda na penumbra, o ingresso neste mundo implica a adopção da uma nova condição social, um lugar à margem dos papéis e normativos hegemónicos. Esta passagem determina a reconfiguração do “eu”, marcado por rituais precisos e por regras que definem os requisitos necessários à aceitação na comunidade.[3] Deste modo, como em muitos outros grupos ou comunidades representados como marginais ou desviantes, a ruptura com a norma e o desvio oferecem oportunidades para a construção de novos vínculos sociais e para a adesão a padrões alternativos (Becker 1963; ­Goffman 1988). O espaço de transgressão é, também, um espaço de ordem e integração.

Ao estudar esta cultura apercebi­‑me da importância que a visualidade[4] assume na definição de atributos culturais e marcas identitárias dos grupos juvenis que actualmente habitam as nossas cidades. Entre o ver e o não­ ver, entre o dar­‑se a ver e o esconder­‑se, tecem­‑se subtis linhas de gestão das identidades pessoais e colectivas que reflectem a forma como os jovens se dão ao mundo e pretendem ser observados. No exemplo que nos ocupa esta situação é bastante evidente. O graffiti vive da visualidade, resulta de uma acção individual e colectiva que usa os suportes visuais e uma determinada linguagem para comunicar e construir sentido, para estabelecer lugares sociais e hierarquias simbólicas.

Aqueles que se dedicam ao graffiti trabalham na obscuridade, numa labuta persistente que serve de legitimação à pertença a este universo. A existência (ou seja, o reconhecimento da existência do indivíduo pelos seus pares) alcança­‑se pela acção, pela prática primordial que origina todo um modelo cultural significativo para os agentes.

Neste contexto, o território e a visualidade assumem­‑se como dimensões a explorar de forma estratégica na construção das identidades e do estatuto dos actores. Usar a cidade, conhecer e utilizar o espaço edificado resulta num processo de apropriação e dominação territorial que se encontra no cerne de muitas culturas juvenis urbanas (Magnani 2002, 2005; Pais 2005). No graffiti é fundamental sinalizar a cidade, demarcá­‑la com siglas que possam ser vislumbradas. É a visão de uma cidade tatuada na pele por diferentes grupos em busca de excitação e reconhecimento pelos seus pares. O que lemos na epiderme da cidade são manifestações desta identidade que usa os códigos de comunicação urbanos para alcançar notoriedade.

Estas são algumas das questões tratadas nas páginas que se seguem, que pretendem reflectir sobre os processos através dos quais os jovens writers utilizam os diferentes recursos do seu quotidiano para forjar identidades paralelas, num espaço sociocultural na periferia das normas dominantes.

 

Graffiti enquanto universo cultural

Graffiti são as letras nas paredes, é a caligrafia, é ver as cenas escritas, é ver os tags, é o dia­‑a­‑dia […] É estares activo, é pintares e fazeres as tuas cenas como fazes sempre: vais pintar uns comboios, metro, mandas uns tags… Depois há todas aquelas cenas pelo meio que podem não parecer Graffiti, mas estão ligadas: é a cultura, é estarmos todos juntos, é sermos uma crew, “La cultura” (writer HEL em Rapolho 2005: 52).

Definir graffiti é bem mais complexo do que parece, facto que é comprovado pela variedade de definições académicas e pelas ideias difusas que o cidadão comum possui sobre este fenómeno. Para a maioria, o termo graffiti aplica­‑se, usualmente, às inscrições executadas no espaço citadino, em suportes diversos, como os muros, as paredes e variado mobiliário urbano, através da utilização de diferentes instrumentos (geralmente o aerossol ou o marcador). Daí que a definição usual abarque um conjunto extenso de actividades, códigos e processos criativos que estão longe de assumir uma coerência interna ou um sentido de conjunto. Nesta podem inscrever­‑se diferentes expressões da denominada street art, obscenidades rebuscadas, frases românticas, impropérios dirigidos a políticos, aclamações desportivas, entre tantas outras manifestações da inesgotável competência criativa do sujeito urbano.

O termo deriva do italiano graffiare, que significa algo como riscar. Graffiti, palavra entretanto banalizada, corresponde ao plural de graffito e designa uma “marca ou inscrição feita num muro / parede”.[5] Se podemos identificar vários espécimes de graffiti na rua, temos de reconhecer que apenas alguns podem ser identificados como expressões legítimas, de acordo com aquilo que, historicamente, se convencionou chamar graffiti, com base numa especificidade de linguagens, modos de produção e atmosfera cultural (Cooper e Chalfant 1984; Castleman 1982; MacDonald 2001; Campos 2007; Marques, Almeida e Antunes 1999). Para Joan Garí (1995) existem basicamente dois modelos de graffiti que, sendo distintos, partilham um princípio comum que confere a esta manifestação a sua singularidade: a transgressão. De acordo com este autor encontramos, em primeiro lugar, o modelo europeu (ou francês), herdeiro de uma tradição de pensamento filosófico, poético e humorístico em forma de máxima[6] e, em segundo lugar, o modelo americano, desligado do pensamento e artes oficiais e intimamente ligado aos meios de comunicação modernos. Esta é uma partição que, embora englobando um conjunto alargado de manifestações, não esgota os formatos de expressão individual e colectiva presentes na superfície das cidades. Por exemplo, no caso português, podemos interrogar­‑nos sobre o lugar ocupado pelos murais políticos surgidos no pós­‑25 de Abril. No entanto, ao contrário de outras expressões realizadas nas paredes, com considerações de ordem política, clandestinas e de natureza subversiva que afrontavam o regime anterior a 1974 (Pais 2002), dificilmente podemos aceitar os murais políticos pós­‑25 de Abril como objectos transgressores, produções de natureza ilegal ou marginal. Estes correspondiam a processos de comunicação perfeitamente enquadrados numa ordem política, sendo veículos de comunicação socialmente aceites e politicamente legítimos (apesar de o seu uso ser mais comum em determinados partidos políticos, praticamente todos os partidos usaram o muro como suporte para a realização de murais e inscrição de palavras de ordem).

Historicamente associado à cultura hip­‑hop, o modelo americano a que alude Joan Garí tende, na actualidade, a ser hegemónico nas nossas cidades. Este graffiti caracteriza­‑se por uma forte presença da dimensão pictórica, que tende a subordinar a palavra, relegando­‑a para uma posição subalterna no processo comunicativo (Sánchez e Tauste 2002; Garí 1995). O projecto em que me envolvi nos últimos anos tem por referência, precisamente, o graffiti hip­‑hop, uma linguagem particular com as suas convenções, modos de fazer e instrumentos que são reconhecíveis e abundam nas cidades que habitamos.

Quando falamos deste tipo de graffiti falamos de um universo cultural sustentado por um conjunto de pessoas que partilham uma identidade e um sentido de comunidade, dispõem de um vocabulário e de uma forma de expressão, conservam uma série de regras, valores e práticas que, no seu conjunto, servem como elementos de distinção perante outras comunidades. Aqueles que fazem graffiti denominam­‑se writers. É suposto um writer conhecer e adoptar um modelo cultural comum a todos aqueles que ambicionam fazer graffiti.

Os writers podem actuar de forma isolada, o que é relativamente raro, ou em grupo, geralmente integrados em crews. Estas “equipas” são formadas por jovens de diferentes idades, proveniências geográficas e sociais.[7] Considero que estes colectivos se constituem na sequência de dinâmicas diversas, que tanto podem privilegiar a heterogeneidade como a homogeneidade do grupo. Há, claramente, factores que tendem a acentuar o carácter difuso, fragmentado e móvel destes agrupamentos. A crescente mobilidade física e social dos actores, a formação de circuitos comunicativos alargados e de redes virtuais, a ­constituição de projectos e estilos de vida móveis, parecem promover a fluidez e impermanência, o carácter compósito destas formações.

Todavia, apesar desta heterogeneidade, em grande parte dos casos as redes sociais que se estabelecem estão, de alguma forma, vinculadas ao espaço, às relações de proximidade e vizinhança, à ocupação de territórios particulares. As diferentes crews podem, deste modo, assumir uma identidade territorial e, eventualmente, social. A condição etária é outro elemento ­homogeneizador. Apesar da diversidade de trilhos que se podem antever neste mundo, ­existem regularidades que estão fundamentalmente associadas à idade dos ­protagonistas. A biografia de cada um no graffiti articula­‑se com os modos de vida tipicamente juvenis, acompanhando a gradual passagem ao estado adulto e a consequente alteração de papéis e estatutos sociais. Para além da idade, outro atributo se revela, imediatamente, como factor de homogeneização importante: o género. Um breve olhar sobre o campo revela­‑nos um horizonte fortemente dominado pelo sexo masculino, situação que está bem vincada em determinados traços distintivos desta cultura.[8] O graffiti é, essencialmente, jovem e masculino.

O graffiti assume­‑se como um veículo de comunicação entre pessoas, um sistema de comunicação visual, com as suas convenções pictóricas, técnicas e ferramentas de execução. Institucionalizou­‑se enquanto linguagem urbana críptica, indecifrável pela larga maioria mas reconhecível pelos poucos que a dominam. Como explica CRAFT:

[…] a maior parte das pessoas olha para aquilo: “vandalismo”, puro e duro! Porque não consegue interpretar nada dali, porque isso exige uma noção de… de… de estética sobre as letras que a maior parte das pessoas não tem (entrevista a CRAFT).

Como qualquer outro produto da actividade humana, o graffiti sofreu mutações importantes desde os seus primórdios. No entanto, o léxico verbal e icónico da cultura graffiti continua a manter vivas as referências originais. Refiro­‑me aos tag, throw­‑up e masterpiece, este último geralmente substituído pelo termo hall of fame. Encontramos, todavia, uma maior fusão de referências, mobilidade e interferência de linguagens que tornam estes formatos cada vez menos estanques, dispersando­‑se em ramificações com alguma peculiaridade e tornando difícil, por vezes, identificar algumas formas de expressão de acordo com os critérios tradicionais.

O graffiti enquanto expressão e prática cultural é geralmente simplificado nas palavras dos seus autores, sendo reduzido a duas vertentes distintas: a ilegal e a legal. A vertente ilegal, geralmente denominada bombing, pressupõe uma acção manifesta de transgressão, de violação das normas, através da execução de graffiti em suportes proibidos. Este pode subdividir­‑se em street bombing (executado nos diferentes suportes da arquitectura urbana) e train bombing (executado em carruagens de metropolitano e comboio). O princípio que subjaz à prática do bombing reside, basicamente, no fazer­‑se ver, disseminar um símbolo pela malha urbana, tornando­‑o o mais visível possível. A vertente legal está mais próxima das realizações de índole artística, cuja principal ambição é o desenvolvimento e exposição das virtualidades técnicas dos autores e não a infracção. Geralmente o termo legal[9] é usado no graffiti por oposição à actuação de natureza ilegal. Estas categorias correspondem a fórmulas com intenções, atitudes, práticas e objectivos completamente distintos. Apesar desta divergência, um mesmo writer pode dedicar­‑se às duas esferas de acção, sendo a versatilidade uma característica valorizada pela comunidade. Vejamos como diferentes writers descrevem as distintas modalidades de graffiti:

[…] o bombing é muito uma afirmação pessoal e para os outros, no sentido em que “eu fui capaz de fazer aquilo, eu atingi aquele sítio”, […] mandar cenas brutais naqueles sítios é mesmo uma afirmação pessoal e para te destacares dos outros, percebes? […] O hall of fame é a vertente artística, mostrares o teu skill como designer, como pessoa… que gosta de desenhar e criar pieces abusadíssimos que uma pessoa fica ali: “hei!… comprava este quadro!” (entrevista a RAPS).

Se calhar nos dias em que vamos fazer bombing achamos que o graffiti é mais uma coisa de contestação e espalhar uma mensagem. Quando vou fazer um hall of fame se calhar vejo o graffiti mais como uma arte que ainda tem muito para dar e… e vejo o graffiti mais pelo seu lado técnico e por uma mensagem mais artística, não tanto como contestação na rua, uma contestação directa… (entrevista a FICTO).

Bombing é mais para… para mim é espalhar o nome, o mais possível… Hall of fame é… juntar tudo o que nós aprendemos com o bombing, estarmos ali com grande empenho e dedicação, mostrar os nossos skills, ali ao máximo, uma coisa bem pensada. Não quer dizer que o bombing não seja pensado, mas o bombing tem de ser uma coisa rápida, temos de deixar lá a nossa marca, né? […] No hall of fame… sinto­‑me mesmo… mesmo descontraído, a pintar com quem eu gosto, a conviver e a tentar fazer um bom trabalho, acima de tudo, uma boa cena… (entrevista a SMILE).

Como podemos constatar pelos discursos, a representação das diferentes facetas que o graffiti pode assumir é relativamente consensual entre os writers. No entanto, a forma como cada um se implica nestas distintas esferas de actividade depende de factores de ordem pessoal e contextual que revelam desiguais horizontes de sucesso e investimento. A prática individual dos writers, que jogam estrategicamente entre estas duas vias, é essencial para o julgamento interno e para a hierarquização do campo, como nos explica RAPS:

[…] aquele gajo abusa mais no hall of fame, faz uns pieces bem melhores, aquele gajo vai­‑se destacar é no hall of fame. O outro que vai fazer as missões mais arriscadas pode não pintar tão bem em hall of fame, mas, como fez aquela missão mais arriscada, já espalhou o nome não sei quantas mil vezes, tem não sei quantos grafs, tipo o F… do Porto, o gajo é capaz de ser o maior bomber de Portugal. Não tenhas dúvidas, a nível de Portugal é capaz de ser dos maiores bombers, aquele gajo tem grafs em todo o lado e aquele gajo destacou­‑se mesmo por isso, não é pelo estilo, não é pela cena de pintar, é pelo… a quantidade de cenas que tem (entrevista a RAPS).

Apesar desta bifurcação dos campos de actuação, que acompanha a evolução de uma cultura com mais de três décadas que se foi globalizando, o graffiti tem na sua génese uma actividade ilegal, um acto manifesto de transgressão. Rezam as crónicas que o graffiti nasce, oficialmente, nos inícios da década de 1970 em Nova Iorque, momento em que adquire alguma visibilidade na sequência da crescente exposição mediática a que é sujeito (Cooper e Chalfant 1984; ­Castleman 1982). A edição de 21 de Julho de 1971 do New York Times noticiava um estranho fenómeno perpetrado por um jovem de origem grega residente em Nova Iorque, nos seguintes termos: “Taki é um adolescente de Manhattan que escreve o seu nome e o número da sua rua para onde quer que se desloque. Ele afirma que é algo que tem, necessariamente, de fazer” (Cooper e ­Chalfant 1984: 184). Este jovem, chamado Demetrios, dedicava­‑se a inscrever a enigmática sigla Taki 183 pelas carruagens de metropolitano da cidade. Não se concebe o graffiti sem a existência de uma demonstração aparentemente tão simples como a colocação de uma mensagem num suporte proibido (não previsto para o efeito). Ainda hoje, a pertença ao campo e o reconhecimento por parte dos pares passa, necessariamente, pelo bombing, pelas incursões na ilegalidade, território de aprendizagem de técnicas, procedimentos e regras de conduta.

O entretanto denominado graffiti legal ou artístico é uma derivação dos princípios originais do graffiti, o resultado das metamorfoses culturais do campo. Este tipo de graffiti, mais preocupado com a natureza estética dos artefactos produzidos e menos com a dimensão subversiva do acto, surge no âmbito de um série de processos sociais distintos que, ao longo da sua história, favorecem a emergência de diferentes práticas e expressões de um graffiti socialmente tolerado. Para este processo em muito contribuíram os meios de comunicação social e determinados agentes artísticos (artistas, galerias de arte, marchands) que, em muitos casos, elevam writers à categoria de artistas plásticos de sucesso, facilitando a propagação de uma representação do graffiti que oscila frequentemente entre a arte e o vandalismo. Estas representações são apropriadas pelos writers que, actualmente, tendem a segmentar este campo entre o graffiti ilegal (mais “puro” e associado à essência original desta prática) e o graffiti legal (expressão com ramificações distintas que tendem a distanciar­‑se das lógicas fundadoras, incentivando o convívio com outros territórios sociais e culturais).

 

Graffiti enquanto fórmula de comunicação urbana

Quem pinta olha para um tag e identifica aquilo como graffiti, portanto, como arte no meu caso, e consegue avaliá­‑lo enquanto bom tag ou mau tag, ou arte ou má arte (entrevista a CRAFT).

O graffiti assenta, como vimos, em fórmulas codificadas de expressão. Fazê­‑lo implica conhecer as formas elementares da linguagem para, em primeiro lugar, saber ler e interpretar e, em segundo lugar, poder produzir e comunicar. Este é um denominador comum, que todos os membros desta cultura compartilham, independentemente das práticas a que se dedicam ou da opinião pessoal acerca da qualidade e pertinência das mesmas.[10]

Esta é uma linguagem umbilicalmente ligada ao seu suporte, ocupando um lugar especial na cidade. A arena comunicacional em que adquire sentido reduz­‑se ao espaço citadino, repleto de diferentes códigos e circuitos comunicacionais que concorrem para a polifonia típica das grandes urbes densamente povoadas e cosmopolitas (Canevacci 1997). É, pois, na arquitectura da cidade, na malha social e cultural que se desenha na sua superfície que temos de encontrar a justificação para a génese e metamorfose deste fenómeno.

Uma digressão atenta à multivocalidade citadina revela­‑nos a explosão de circuitos de comunicação de natureza visual que constantemente reclamam a nossa atenção, em gigantescos painéis publicitários, em cartazes políticos, nos estrategicamente posicionados sinais de trânsito, nas apelativas vitrinas das lojas ou em murais trabalhados por desconhecidos. As imagens, isoladas ou assistidas pelas palavras e sons, surgem­‑nos de diversos ângulos e dos locais mais inesperados. Se há uma cidade física, também há imaginários urbanos (Silva 2001), que compõem a nossa experiência subjectiva da cidade, uma cartografia cognitiva e sentimental muito particular.

Se a cidade é o contexto onde relações e culturas particulares se desenvolvem, também é o território onde formas particulares de comunicar se desenham. O muro é, desde os tempos mais remotos, suporte privilegiado para a inscrição de símbolos, sendo apropriado por diferentes pessoas, grupos e instituições, com objectivos, funções e poderes distintos. Se o muro é lugar de ordem e harmonia, também é lugar de confronto e desobediência, é objecto de disputa, arena de confrontos simbólicos e recurso cobiçado (Figueroa Saavedra 2006).

Todavia, o graffiti não vive apenas no muro, nasce nas paredes, nos tectos, nas janelas, nas portas, nos caixotes de lixo, nas carruagens de metro ou de comboio, nos vidros e estofos de autocarros, entre outros suportes inanimados que povoam a geografia urbana. Qualquer superfície é, à partida, legítima desde que cumpra o requisito fundamental: esteja no espaço público, independentemente do estatuto da propriedade, ao dispor de todos.

Estas manifestações resultam de uma prática territorializada. O espaço físico da cidade sustenta uma malha de acções que dão corpo e solidez a uma comunidade particular. É nas paredes da cidade que os writers ganham vida, adquirem estatuto e concorrem por lugares de destaque. É nas paredes que estes se dão a ler, expondo as suas virtudes e fragilidades, sujeitando­‑se à avaliação dos restantes membros desta comunidade. Os territórios da cidade não são, portanto, vazios de sentido. Os writers e as crews sabem­‑no bem. Utilizam o espaço de forma lúcida e pragmática, com objectivos comunicacionais precisos e com justificação cultural. A aprendizagem da cultura comporta uma educação do olhar direccionado para uma leitura da cidade, das suas formas e conteúdos, dos seus suportes e linguagens, em função de uma praxis.

O writer é um agente que procura na arquitectura os spots mais interessantes, busca no mobiliário urbano suportes inteligentes para a comunicação, está atento aos mais insignificantes tags, conhece as fábricas abandonadas, os spots mais controlados e os menos acessíveis, familiariza­‑se com os yards, mantém­‑se vigilante fiscalizando a movimentação das autoridades, está atento aos outdoors mais recentes e às paredes brancas. A sua cidade é um repositório de signos. A sua cidade é um livro aguardando escrita. As citações que se seguem são elucidativas, relativamente à forma como se usa estrategicamente a cidade:

[…] o sítio também é bastante importante, que é a visibilidade que tu tens. Se fizeres ali naquele sítio ou se fizeres dois metros ao lado, ou noutra parede… o sítio. O sítio é muito importante e hoje em dia tenho muito a noção disso, do sítio, e quando há sítios que surgem tento logo lá ir mesmo, porque sei que se eu não for vai lá outro (entrevista a RAPS).

Eu vejo spots que gosto, eu anoto. Eu tenho uma lista de spots que eu quero fazer. Eu nessas coisas sou um bocado metódica […] Eu escolho os spots, p’ra já, primeiro que tudo, é se eles são visíveis, se forem visíveis é um spot que eu quero fazer. Depois tem de ser um spot que… eu olho… p’ra já, acho que há qualquer coisa, parece que… não é uma mística, não é nada disso, mas aquele spot atrai­‑te. Há uns que são mais visíveis que outros, mas há uns que atraem­‑te mais, não sei porquê, e por exemplo… acho que em primeiro lugar, é esse factor de ser visível. Depois se é uma parede boa, ou uma chapa, por exemplo. Se as chapas são boas, se dá para mandar cores, se é uma parede razoavelmente boa… (entrevista a DONA).

Agir no território do proibido parece ser, invariavelmente, algo que distingue o graffiti de outras formas de comunicação no espaço público. E aqui surge o acto de rebelião. E surge igualmente aquilo que é fundamental, e provavelmente justifica a acção dos jovens nestes territórios, o prazer da transgressão. Isto quer dizer que aqueles que fazem graffiti habitualmente não inscreveriam essa mensagem no seu espaço privado. As inscrições em locais não previstos para o efeito reflectem, de forma mais ou menos consciente, a desobediência a um normativo que estabelece regras claras num universo comunicacional controlado por poderes públicos e privados.

Para os writers a cidade é o seu campo de batalha, tomada como espaço de reivindicação, de manifestação de singularidades identitárias. Pode estabelecer­‑se uma analogia entre a superfície da cidade e a superfície corporal, matérias visíveis capacitadas de poder de comunicação, apropriadas por diferentes jovens para exprimirem singularidades colectivas e, em muitas situações, resistência ou desafio às normas e poderes dominantes. A este propósito, um paralelismo entre o graffiti e a tatuagem (Ferreira 2007), inscrições em diferentes epidermes, parece­‑me particularmente interessante para pensarmos a importância da visualidade enquanto recurso político, campo estratégico fundamental para a expressão de identidades que desafiam as convenções hegemónicas. Tomar posse da cidade é, neste contexto, uma manifestação de poder e, simultaneamente, a expressão de uma existência que, apesar de cilindrada pelo anonimato citadino e pelos poderes que regulam o espaço urbano, se consegue fazer ouvir (ou ver).

A transgressão simboliza, também, provocação à moral e aos bons costumes. O acto pode ser levado às últimas consequências com a linguagem obscena e a iconografia indecorosa, num claro desafio à ordem. A transgressão redunda, também, em imprevisibilidade e perturbação, surge inesperada, num ápice, em locais imprevistos e impróprios, causando surpresa a quem passa. As linguagens de transgressão, nas palavras de Célia Ramos, “violam as expectativas da cultura que predetermina, num texto como o da cidade, como e quando o seu espaço e tempo podem ser utilizados” (Ramos 1994: 44). O graffiti revela, assim, um duplo sentido comunicacional. Em primeiro lugar, a mensagem, o conteúdo verbal ou icónico da mensagem com um determinado significado. Em segundo lugar, a transgressão, que comunica desobediência e recusa da norma. Os dois estão interligados, pois o conteúdo expresso só alcança sentido enquanto infracção.

 

Visibilidade e invisibilidade, anonimato e identidade no Graffiti

O graf não é mais que o tag ampliado a uma escala p’r’aí de 1000 ou não sei o quê. Porque o tag… a cena é seres rápido e teres style na cena, para não ser um tag vulgar […] espalhares o teu tag e não sei o quê e criares impacto, ser uma cena que chama a vista… É o graffiti! É bué egocêntrico, tu queres é que as pessoas olhem para a tua cena… (entrevista a RAPS).

É longa a história dos modos e instrumentos usados pelos poderes instituídos para exercerem o controlo e a vigilância das populações. O Estado tem vindo a diversificar e aperfeiçoar os modos através dos quais identifica e vigia. No entanto, como nota o sociólogo Gary Marx (1999), falar dos processos de identificação (documentação da identidade individual e simultaneamente da capacidade de localização do indivíduo) implica falar dos processos de não­‑identificação. O anonimato[11] existe nos interstícios de uma sociedade com fortes e rigorosos mecanismos de identificação, adaptando­‑se à evolução dos seus procedimentos.

Como refere Nissenbaum (1999), o anonimato permite aos indivíduos permanecerem inalcançáveis, localizarem­‑se num horizonte resguardado dos olhares. A associação entre anonimato e diferentes tipos de estigma ou de desvio é bastante próxima, sendo que o anonimato é utilizado como um recurso estratégico importante por determinados indivíduos e grupos que partilham uma condição ou situação que os coloca, de alguma forma, à margem das convenções e regras dominantes (Goffman 1988; Fróis 2005). Diferentes grupos minoritários ou marginais desenvolvem processos de ocultação da identidade que lhes permitem agirem na sombra, sem risco de serem identificados e eventualmente perseguidos por práticas ou atitudes não conformes à norma.

O graffiti contemporâneo está indiscutivelmente associado à invenção de um acto de comunicação anónimo, que deriva da índole ilegal que esta prática comporta. A criminalização e persecução incentivam a inventividade, canalizada para a criação de estratégias de camuflagem. No mais completo anonimato ou sob pseudónimo, as palavras e imagens surgem de uma forma que, sendo socialmente reprovável, necessita da protecção de uma máscara. Ou seja, a mensagem não assinada confere completa liberdade no uso das palavras (ou iconografia), colocando o seu autor ao abrigo de avaliações de ordem moral ou de acusações de ordem criminal. Daí que o graffiti viva literalmente na sombra, sendo executado essencialmente ao abrigo da noite, sob a protecção da penumbra.

Todavia, no mundo do graffiti a relação entre o anonimato e a identificação é mais complexa do que parece. O anonimato, como condição, remete para uma ausência de identificação, facto que não corresponde inteiramente à situa­ção que analisamos. Em primeiro lugar porque o writer recorre à fabricação de uma personagem, imbuída de nova identidade e personalidade, que suspende a identidade oficial. No graffiti aquilo que encontramos é a criação de um pseudónimo, uma nova identificação que corresponde a um alter-ego reconhecido pelos membros da comunidade. A assinatura desvenda o acto imputável a uma personagem forjada, encobrindo o indivíduo oficialmente reconhecido. Em segundo lugar porque o anonimato se destina basicamente ao mundo exterior, que pode ser entendido como agressor. A face encoberta pela máscara criada é, geralmente, conhecida pelos membros da comunidade mais próximos. Basicamente, procura­‑se preservar o anonimato do writer perante o exterior, salvaguardando a sua intangibilidade. Em terceiro lugar, apesar do aparente paradoxo, a acção do writer parece constituir uma voz fracturante que se insurge contra o anonimato urbano.[12] Ou seja, recorrendo a estratégias de ocultação conhecidas, o writer inventa uma nova identificação (e identidade) que deve ser exposta na superfície da cidade, ostentada de forma maciça, reconhecida enquanto denominação e sigla pictórica. Ser­‑se nomeado, reconhecido no meio da multidão anónima é a causa que move grande parte daqueles que fazem graffiti:

[…] é preferível quase ter um graf no sítio certo do que teres vinte ou trinta grafs espalhados à toa, é preferível, porque é a visibilidade. Tu fazes o graf para quê? Para as pessoas verem (entrevista a RAPS).

Como vimos, a cultura graffiti nasceu no seio do movimento hip­‑hop norte­‑americano há mais de três décadas, tendo alcançado alguma notoriedade pública quando os meios de comunicação social nova­‑iorquinos relataram o enigmático fenómeno representado pela multiplicação da sigla Taki 183. Taki seria o diminutivo do nome de baptismo do jovem Demetrios, enquanto o 183 corresponderia ao número da rua onde este habitava. Através desta operação de composição de um pseudónimo, o tag, este jovem dava origem a uma acção que foi seguida por muitos outros que, com siglas compostas com uma estrutura semelhante (nomeadamente Frank 207, Chew 127 e Júlio 204), se dedicavam a assinalar a sua marca na cidade (Castleman 1982).

O tag surge da mente engenhosa de alguém que necessita de preservar a sua pessoa e, simultaneamente, de publicitar a sua pessoa, num exercício algo paradoxal. Este é inventado a partir de uma condição aparentemente incongruente, em que alguém procura alcançar a fama mantendo­‑se invisível. O dilema é resolvido com o recurso aos processos inaugurados pela publicidade de massas, ou seja, pela saturação de uma marca no espaço, marca essa que serve de símbolo a algo ou alguém. É da relação entre o visível e o invisível que nasce o tag. Criam­‑se códigos, apenas conhecidos e reconhecidos por alguns, que permitem aos seus autores alcançar a fama sob anonimato.

Apesar de ser menos comum, um writer pode optar por incorporar vários tags, o que é indicador, geralmente, de uma personalidade múltipla no mundo do graffiti (os múltiplos tags funcionam como heterónimos que indiciam distintas facetas de actuação). Um writer pode, ainda, ir assumindo diferentes tags ao longo da sua biografia neste meio, num processo curioso de “extinção” e “(re)nascimento”. Quando acontece, a adopção de novos tags ocorre geralmente por duas razões: em primeiro lugar, pela saturação do tag, que pode gerar cansaço e restringir a actividade criativa do sujeito, exigindo uma operação de renovação da sigla identitária; em segundo lugar, por uma estratégia que visa desorientar as autoridades policiais.

O tag representa uma forma codificada de identificação. É uma colecção de letras cuja composição pretende servir para designar alguém que pertence à comunidade de writers.[13] Supõe, portanto, a substituição da identificação oficial, habitualmente o nome de baptismo, reconhecido pelas instâncias oficiais e pela sociedade, por uma identificação que apenas é (re)conhecida por um número limitado de pessoas. Isto não significa que esta identificação seja ignorada por todos aqueles que não pertencem a este núcleo. Indica, contudo, que são obscuros os termos de descodificação. Ou seja, o cidadão comum não sabe “ler” um tag, nem consegue estabelecer a ligação entre o código e a entidade física de referência, o seu autor.

A concepção de um nome, que resulta de um processo aparentemente simples e espontâneo, carrega uma carga simbólica importante e marca a transição para um novo campo social, com as suas lógicas internas. O primeiro passo para a aceitação nesta comunidade dá­‑se, então, através desta “operação mágica” de extinção da identidade oficial (marcada por uma biografia e um nome de baptismo) e pela criação de uma nova identidade que corresponde a um novo ser, com uma biografia ainda por traçar. Esta capacidade criadora investe o agente de um poder novo, nas palavras de Babo:

Dar nomes às coisas faz parte de um poder atribuído, desde Crátilo, ao Onomaturgo, aquele que está investido do poder de nomear. Diz­‑se da arte do graffiti que é a arte do autógrafo e é como autógrafo ou assinatura que ele pode ser entendido. Ora, o tag é performativo nessa dimensão, já que ele se arroga esse direito onomaturgo de nomear (Babo 2001: 227).

Revelar­‑se na assinatura de um alter-ego concebido ao abrigo de fantasias pessoais empossa o seu autor de uma espécie de “poder divino”, outorga­‑lhe jurisdição sobre o ciclo da vida e morte da personagem, sobre as suas opções de vida. Esta operação determina que, neste universo, o indivíduo é tão responsável pela elevação do seu nome como pelas acções que lhe são imputadas. O writer é, então, o seu tag. Este deve sentir­‑se bem na pele e na máscara que criou, em sintonia com o conjunto de letras que serve de identificador perante os companheiros. A partir do momento em que se assume um identificador perante a comunidade, é dever de todo o writer preservar, defender e honrar o seu tag, procurando elevá­‑lo a uma categoria superior.

Dar­‑se a ver é, portanto, um “acto heróico”, o culminar de um processo em que alguém concebe um alter-ego e desvenda a sua existência, ostenta a sua presença, resistindo às adversidades e superando todas as contrariedades (autoridades policiais e vigilantes, obstáculos físicos, conflitos grupais, etc.). Em diversas situações me apercebi da forma como os writers se concebem como uma espécie de heróis modernos, enfrentado todos os perigos e vilões, fiéis a uma missão e vocação que é difícil contrariar.[14] Esta representação heróica da actividade é especialmente relevante no caso do graffiti ilegal, em que as “missões” funcionam como simulacros de situações que remetem para imaginários cinematográficos e alegorias belicistas, contextos particularmente adequados à exibição de actos de bravura e à consagração dos mais valorosos.

O tag é usualmente composto por um conjunto disperso de letras que podem não corresponder a um signo linguístico (com significado e significante).[15] Geralmente, quando é o resultado de alguma reflexão, é escolhido em função do impacto verbal ou visual que transporta. Os termos usados, quando comportam um significado verbal, invocam ideias, imaginários, sensações que, por alguma razão, são queridos ao seu autor e servem de qualificação individual na comunidade, conferindo à nova identidade um sentido preciso, uma designação que carrega um determinado desígnio, como confidenciou FIRE:

FIRE neste momento é o meu nome principal, é o meu nome, FIRE, é o nome que as pessoas respeitam […] VODU, o FIRE, o ENEMY, têm todos a ambição de serem um nome forte, respeitado. FIRE é um nome mítico, n’é?, o “fogo”. FIRE é o fogo, é um elemento decorativo na roupa, em inúmeros graffitis, em desenhos, em publicidade, em tudo. FIRE é um nome fortíssimo, e eu adoptei esse nome para ser também um nome forte em graffiti (entrevista a FIRE).

Esta identificação com o tag é importante, na medida em que permite ao autor criar uma carreira, uma memória ou um certo sentido alegórico para a sua actuação enquanto writer. Muitos, à falta de outras motivações, decidem­‑se por um corpo apelativo de letras, flexível e rico em termos de potencial pictórico. DONA justifica a criação do seu tag nos seguintes termos:

Acabei por ficar com aquele nome: DONA, e depois achei que DONA é um nome forte. É bué importante o nome que tu escolhes, é bué importante as letras. Para já tem letras mais… razoavelmente boas. O D é bom, o A é bom, porque depois temos que escolher as letras que dê para nós partirmos daí […] E DONA é um nome que tem poder, um nome que tem força, é sempre “DONA de qualquer coisa”, […] está sempre por cima, digamos assim. Eu acho isso importante, é um nome forte, depois é um nome que… Por exemplo, lês DONA parece que fica na cabeça, é um nome… tem força! (entrevista a DONA)

A relevância de um writer provém, então, da notoriedade alcançada pelo seu tag. A relação mágica que se estabelece determina que o poder do nome seja equivalente ao poder do ego. O nome eleva o ego. O nome é a matéria­‑prima, o objecto de trabalho, dedicação e aperfeiçoamento, a razão de ser de uma prática cultural e de uma cultura.[16] O tag assume, assim, uma dimensão sagrada, é um elemento que deve ser respeitado. Quanto mais visível, ornamentado e imponente for o tag, mais crédito concede ao seu detentor:

É um dos grandes objectivos… Eu acho que não é verem o nome, mas terem respeito por esse nome, por exemplo… um gajo que pinta muito, pinta… é assim mesmo vândalo, pinta grandes “bombas” e comboios e não dá hipótese, toda a gente fica: “epá, esse gajo!… Ele abusa mesmo, porque tem grande estilo e faz cenas mesmo abusadas e está por todo o lado…” E têm mais respeito por esse nome (entrevista a CRIA).

Daí que o desrespeito e a desonra no mundo do graffiti estejam, basicamente, associados à violação do tag, sendo esta prática uma clara demonstração de desprezo por alguém que pertence à comunidade. Como afirma FIRE:

O que nós pomos na parede é o nosso nome. Se alguém toca naquilo que nós fazemos, é connosco que está a falar […] Se alguém nos pisa vamos ter de ser confrontados com isso. É a nossa imagem, é o nosso bem­‑estar dentro do graffiti que está em causa (entrevista a FIRE).

À dupla face do writer corresponde, igualmente, uma vida dupla, uma existência dividida entre, por um lado, as actividades rotineiras aceites pelas normas da sociedade e, por outro lado, as actividades camufladas, ao abrigo da vigilância das autoridades e da crítica da sociedade. Como mencionava um dos writers entrevistados, “durante doze horas por dia sou uma coisa… vá lá, das 9 às 5 sou uma coisa, a partir daí sou uma pessoa do graffiti”. Esta duplicidade é regulada, com maiores ou menores atritos, em função das circunstâncias e dos modos como vivem o quotidiano. Com frequência emergem conflitos, episódios fracturantes, dinâmicas que obrigam a uma reavaliação das implicações individuais no graffiti:

A escola, pronto… Fodeu­‑me um bocado a vida, o graffiti. Mas isso é porque eu sou preguiçoso, percebes? Porque há pessoal que faz a escola, faz o graffiti, sai à noite, faz tudo. Pessoas organizadas, percebes? Só que eu não, meu […] Família, pronto, […] já tive uns problemas, quando a minha mãe se passava da cabeça: “Ah, tu já não pintas mais!” e o caraças. E eu: “Tá bem.” Mas já houve uma altura em que eu disse mesmo: “Mãe, eu vou continuar a pintar, por muito que tu queiras ou não, por muito que me dês dinheiro ou não.” E disse­‑lhe e ela percebeu isso e ela sempre gostou, estás a ver? Só que a irritava o facto de estar sempre a ir parar à esquadra. Eu disse­‑lhe: “Pá, mãe, é uma coisa que eu não consigo evitar, eu nunca hei­‑de de deixar de pintar, é a mesma coisa que tu nunca hás­‑de deixar de ver televisão”, percebes? Eu disse­‑lhe logo isso desde puto. Podia levar chapadas mas eu avisei logo, “mãe, isto é assim”. Viu logo que eu tinha amor à cena (entrevista a NIUS).

Este equilíbrio depende da actuação no universo do graffiti e do tipo de constrangimentos que decorrem da vida extra­‑graffiti. Assim, aquilo que o writer é fora do graffiti determina em grande medida aquilo que é dentro do graffiti e vice­‑versa. Os dois pólos estão mutuamente implicados e alimentam­‑se reciprocamente, numa dinâmica harmoniosa ou conflituosa. Para se fazer graffiti não é necessário abdicar da “outra” vida. Todavia, na maioria dos casos, existem tensões que são difíceis de solucionar.

Estas antinomias tendem a esbater­‑se ao longo do tempo. Nos seus discursos, a maioria dos writers activos define o graffiti como um modo de vida. Muitos organizam o quotidiano em função desta actividade, assumindo a sua centralidade no presente. Com a transição para a idade adulta esta centralidade é progressivamente questionada, facto que comporta o abandono ou reconversão da carreira. A reconversão determina, geralmente, uma opção por práticas que embora vinculadas, simbólica e socialmente, ao graffiti, se situam num terreno apartado da actividade ilegal. Deste modo, muitos writers, com o gradual alargamento da carreira no tempo, acentuam o seu envolvimento em actividades de graffiti artístico e semi­legal, alguns tentando mesmo compatibilizar este universo com as exigências de natureza profissional (por exemplo, desenvolvendo uma carreira profissional na área das artes visuais).

Quanto mais um writer se dedica à actividade ilegal, quanto mais investe em tempo, energia, dinheiro e emoções, mais provável se torna o surgimento de pressões, incompatibilidades e cisões entre a vida do graffiti e o universo exterior. Esta é, literalmente, uma distinção entre os aspectos diurnos (escola, família ou emprego) e nocturnos (graffiti realizado ao abrigo da noite e da vigilância) da vida dos jovens, remetendo para a distinção efectuada por Pina Cabral (2000), que aludia a estas duas dimensões da vida sociocultural. Recorro às suas palavras:

Devemos diferenciar entre um aspecto diurno da vida sociocultural, ao qual correspondem as pessoas, coisas, processos e significados que recebem maior legitimação, e um aspecto nocturno que corresponde aos que são reprimidos e não encontram uma forma óbvia de expressão (Pina Cabral 2000: 875).

Os problemas que os writers enfrentam são de diversa ordem e ocorrem por diferentes razões. De forma a lidar com os distintos obstáculos, esta cultura desenvolveu uma atitude preventiva assente em modelos estratégicos de contorno da vigilância e da punição. Agir silenciosamente na sombra, assumir a invisibilidade como factor de protecção, são factores importantes para o sucesso. Esta estratégia de prevenção passa, em primeiro lugar, pela adopção de um tag, que protege a identidade dos prevaricadores. Em segundo lugar, pressupõe o aprofundamento de estratagemas locais que visam um conhecimento do território e dos seus actores, uma “vigilância dos vigilantes” (noção das rotinas e procedimentos das forças policiais e dos seguranças privados, dos movimentos dos habitantes citadinos, dos horários de comboios e metropolitanos, etc.). Dominar os circuitos urbanos e os seus actores (adjuvantes e oponentes) é fulcral para uma carreira sem contratempos de maior. Ver sem ser visto é uma forma de poder (Robins 1996). Ora, os writers procuram ser invisíveis vigiando o mundo visível e os seus agentes. Das fronteiras nocturnas vão desvendando as circularidades diurnas habitadas por perigos diversos que importa prever, ultrapassar, conquistar.

Como vimos, o graffiti representa um território de transgressão e subversão, de excessos e riscos vários, de intenso prazer e emoções à flor da pele, que contrasta com as restantes actividades do quotidiano, rotineiras, regradas e vigiadas por instâncias diversas. Esta dimensão nocturna da vida de muitos jovens encontra­‑se em muitas das denominadas “tribos juvenis”, pois, como refere Machado Pais,

Em sociedades sujeitas a uma planificação, ordenamento e controle acentuados, a tentação é a de subverter as ordens institucionais […] O que se passa é que os jovens se sentem particularmente atraídos por tudo o que excita os sentidos, inclusive quando essa busca de excitação se realiza mediante condutas de risco (Pais 2002: 22).

Ferrell (1996) notou esta espécie de “excitação incandescente” presente nas actividades do graffiti que, à semelhança de outras culturas juvenis urbanas, encontram nestas acções uma compensação ao tédio da vida quotidiana. A “transgressão recreativa” (Ferrell 1996) gera este tipo de sensações e uma ­ritualidade muito própria, carregada de adrenalina e extremamente viciante. Por diversas ocasiões ouvi animados relatos de episódios que revelam a intensidade e o prazer associados ao risco, à satisfação decorrente da transgressão e da concretização de tarefas complexas. As fugas à polícia e aos seguranças privados, as ocasionais cenas de violência envolvendo crews rivais ou os muitos acidentes que ocorrem, transformam a actividade num jogo perigoso que, para muitos, é uma obsessão. Trata­‑se de uma cultura que joga nos limiares do socialmente aceitável e da legalidade, que promove a transgressão e, em certo sentido, a transcendência – vencer barreiras sociais e legais, dominar os medos e incapacidades, superando os limites que são impostos ao sujeito. As palavras de alguns writers a propósito de bombing no metropolitano e nos comboios, actividades que condensam uma série de elementos que as definem como as mais perigosas, são elucidativas:

É a cena mais brutal que existe. Eu lembro­‑me que cada vez que eu pintava um metro eu saía de lá, tipo… “Man, onde vamos curtir agora? Isto é até amanhã!” […] Ficas mesmo… eu pelo menos, ficava bué feliz da vida […]. É tudo cenas que tu depois não consegues explicar porque estás a sentir aquilo, percebes? Quem gosta, gosta. Quem não gosta, olha, que desista! (entrevista a NIUS)

E eu acho que train bombing, por ser das cenas mais arriscadas, é a cena que mais “pica” me dá, percebes… Ʌ como é que eu hei­‑de dizer? É o ponto máximo da adrenalina, estás a ver? Tu estás a arriscar, tu vais arriscar, tu sabes que podes ser apanhado, mas quando vês um train a girar como vimos agora é tipo… é alta emoção. Tu nem imaginas o que um gajo sente. […]. É uma cena do outro mundo e é bué da bom quando tens amigos teus que percebem do graf e que não sabem que tu foste fazer e vêem na linha e mandam­‑te um props, telefonam­‑te, ou mandam uma mensagem, whatever… (entrevista a MASK)

 

Conclusão

As culturas juvenis têm sido observadas como entidades sociais relativamente plásticas, particularmente produtivas na reconfiguração dos figurinos estéticos e simbólicos, na (re)invenção das práticas do quotidiano (Pais 2005; 1993; Pais e Blass 2004; Feixa 2006; Amit­‑Talai e Wulff 1995; Willis 1990). Paul Willis (1990), numa análise às culturas juvenis, introduziu a expressão “trabalho simbólico”, aludindo à actividade humana através da qual é produzido significado pelo recurso a diversas matérias­‑primas, simbólicas e materiais, disponíveis no ambiente social e cultural. Segundo este autor, o trabalho simbólico é essencial para a construção das identidades sociais dos jovens, sendo um importante mecanismo de reconhecimento e catalogação social. Para Willis, o trabalho simbólico dos indivíduos conjuga diversos elementos: em primeiro lugar, os instrumentos da linguagem, do corpo, do drama; em segundo lugar, a “criatividade simbólica”, processo através do qual se engendram significados e identidades recorrendo a diferentes estratégias e materiais.

Estes elementos são fundamentais, na medida em que “muitos dos recursos tradicionais de, e das bases herdadas para, o significado social, pertença, segurança e certeza psíquica, perderam a sua legitimidade para uma boa proporção de jovens. Não mais existe o sentido de uma cultura total com lugares definidos e um sistema de valores universal partilhado” (Willis 1990: 13). Deste modo, o trabalho simbólico e a criatividade simbólica permitem produzir e reproduzir identidades individuais, situar as identidades sociais num contexto histórico e social e, por último, transmitir um sentimento de vitalidade e agência, uma noção da capacidade de actuação do indivíduo no mundo (Willis 1990). A comunicação na parede, tal como aquela que surge através de outros canais, como por exemplo o corpo, resulta de uma apropriação das matérias ao dispor da juventude, num processo criativo de bricolage com profundo significado semiológico (Hebdige 1976).

A rua é, neste contexto, um recurso crucial para os jovens, “reivindicada como espaço de criatividade e emancipação, onde as ritualidades juvenis aparecem como uma espécie de celebração da diferença e da autonomia” (Pais 2005: 62­‑63). Os muros estão pejados de inscrições enigmáticas que desvendam a existência de grupos que usam a cidade para comunicarem e adquirirem estatuto no seio de uma comunidade que se protege dos olhares externos.

O anonimato faz parte do jogo. Formular um nome confere poder e um sentido de destino que está ausente no nome de baptismo, outorgado por outrem. O writer é o único responsável por esta criação e pela carreira associada ao nome. O graffiti oferece aos jovens a possibilidade de jogarem com as identidades, definindo estratégias em que a dimensão lúdica está presente, no gozo da recriação de papéis e máscaras. Sob estas máscaras, o proibido é permitido. A marginalidade, a incursão pelos aspectos nocturnos e reprimidos da vida social (e psicológica) adquirem para estes jovens uma centralidade que se opõe à centralidade hegemónica imposta pela moralidade dos adultos e dos poderes instituídos. Esta é uma nova centralidade, sob a qual orbitam relações emocionais, estados gregários, normas de conduta e uma ética que contribuem para formar o ser social. Entre jovens definem­‑se regras e condutas, moldam­‑se ideologias, aprendem­‑se modos de fazer. Este espaço “à margem” é, assim, território de socialização, de aprendizagem de papéis e de experimentação social.

Ser writer implica abraçar uma realidade à margem, perigosa e socialmente censurada. O percurso espinhoso é, aliás, um dos ingredientes fundamentais à compreensão de um universo cultural que glorifica uma imagem heróica de writer, personagem que deve transpor todas as resistências para alcançar os seus objectivos e a aclamação dos seus. As recompensas são unicamente de natureza simbólica, afectiva e social, derivam de uma aceitação na tribo, da valorização de um nome erigido com base no mérito pessoal.[17] Esta é uma carreira que se constrói à margem dos padrões hegemónicos e normativos dominantes, perturba a lei e a lógica da organização urbana, subverte os paradigmas estéticos.

O writer é um bom exemplo da forma como as identidades podem ser construídas e reformuladas integrando, simultaneamente, dimensões legitimadas pela hegemonia e rejeitadas por esta. O writer aprende a gerir esta duplicidade ontológica, entre uma identidade visível, cumpridora de papéis socialmente reconhecidos como válidos (filho, aluno, vizinho, etc.), e uma identidade invisível, criada no reduto de uma cultura que se protege e que define internamente os trâmites para a fabricação de novas identidades e papéis sociais. Escapar aos olhares da sociedade e à vigilância das autoridades é, desde logo, uma aprendizagem básica que todos os iniciantes neste universo têm de fazer sob pena de não singrarem no meio. De certa forma e como diversos autores puseram em evidência (MacDonald 2001; Ferrell 1996), este jogo que se estabelece entre os writers e a autoridade é a força motriz para muitos dos que se dedicam ao graffiti ilegal.[18] Contornar a vigilância, desafiar o poder e o aparelho ao seu serviço, ultrapassar os constrangimentos, adquirindo estima na comunidade writer, são situações que justificam a dedicação a esta causa. O mérito é alcançado, em grande medida, pela capacidade de definir estratégias de actuação na sombra, pela elegância com que se contorna a lei e se desafia a ordem.

A incursão por este mundo revelou­‑me o writer como uma espécie de super­‑herói do mundo nocturno, alguém que domina as vielas e que se move nos subterrâneos, que espia as autoridades e escapa aos mais variados perigos. Este assume uma vida dupla. Numa operação mágica investe­‑se de uma máscara que lhe confere poderes acrescidos e o direito a ingressar num mundo restrito. Como qualquer super­‑herói, transcende as limitações humanas, supera a normalidade e finta as rotinas que fazem da vida diurna um mundo de tédio e constrangimentos vários. Os writers vivem uma vocação e uma missão, como muitos testemunharam por palavras sentidas. Daí a enigmática inscrição do writer OBEY que, recentemente, acompanhava um graffiti em Lisboa e que, agora, adquire todo o sentido: “A man with a mission… so, don’t fuck with me

 

Breve Glossário

Bombing

Graffiti de natureza ilegal. É comum distinguir entre street bombing (ou bombing de rua) e train bombing (ou bombing em comboios).

Bomber

Writer que faz bombing.

Crew

Um grupo de writers que pinta em conjunto, formando uma equipa que adopta uma sigla que a identifica no meio.

Graf

Abreviatura de graffiti.

Hall of fame

Graffiti, realizado na maior parte dos casos em paredes legais ou pouco expostas. Resulta numa execução de grandes dimensões e com maior complexidade pictórica.

Props

Dedicatórias que podem acompanhar um graffiti.

Spot

Local onde o writer pinta (ou local potencial para a execução de um graffiti).

Tag

É o pseudónimo do writer, o nome que este adopta no meio. O termo tag aplica­‑se também à assinatura (“fazer um tag” ou “tagar”).

Writer

Alguém que pinta a aerossol de acordo com uma série de regras e convenções, sendo portanto reconhecido como membro de uma comunidade que faz graffiti.

Yard

Parque de estacionamento para material ferroviário circulante.

Tagar

Espalhar o tag.

Train

Comboio.

 

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*Ricardo Campos - Centro em Rede de Investigação em Antropologia

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[1] No final apresento um glossário com os termos provenientes deste universo cultural que são utilizados ao longo do texto.

[2] Este projecto foi desenvolvido no âmbito do doutoramento em antropologia visual. O trabalho etnográfico foi realizado na região da Grande Lisboa, junto de uma série de writers que se disponibilizaram para a realização de entrevistas e, nalguns casos, para um acompanhamento mais próximo das suas actividades ligadas ao graffiti.

[3] Utilizo aqui o termo “comunidade” de forma algo flexível, tendo em consideração que os “praticantes” de graffiti, em primeiro lugar, assumem e partilham uma identidade singular, reconhecível em determinadas práticas e representações, em segundo lugar, aceitam um conjunto de regras e procedimentos, de normas de conduta fundamentais à manutenção da unidade e coerência cultural e, por último, estabelecem vínculos de natureza simbólica, social e afectiva entre si. Logo, podemos argumentar que existe um sentido colectivo, a consciência de existência de uma comunidade alargada, de volumetria variável, que pode cingir­‑se ao pequeno grupo dos afectos mais próximos daqueles que pintam em conjunto, como pode estender­‑se a uma massa indistinta de praticantes que vão ocupando a cidade (e o mundo) com as suas inscrições.

[4] Devemos distinguir “visão” de “visualidade” (Rose 2001; Walker e Chaplin 1997). A visão está fundamentalmente relacionada com as capacidades fisiológicas humanas para olhar o que nos rodeia. A visualidade remete para a forma como o olhar é social e culturalmente construído.

[5] Esta é a denominação dada às inscrições feitas em paredes desde o Império Romano (são conhecidos os graffiti presentes nas catacumbas de Roma ou em Pompeia). Actualmente o termo graffiti passou a ser utilizado no discurso comum aplicado ao singular e ao plural, indistintamente. Ou seja, no discurso corrente: um graffiti, dois graffiti ou, geralmente, dois graffitis (de forma abreviada, um graf, dois grafs).

[6] Por exemplo, o graffiti realizado durante o Maio de 68 francês, com palavras de ordem que se tornaram emblemáticas.

[7] Conheci várias crews que eram compostas por writers de bairros, cidades e mesmo países distintos. Nestas é comum conviverem writers de idades e qualificações distintas, “iniciantes” e “consagrados”, estudantes de secundário e do universitário, trabalhadores e desempregados. A maior ou menor heterogeneidade do grupo depende de diversas circunstâncias, da dinâmica e biografia dos grupos, o que torna improvável o vislumbre das regularidades que regem estes circuitos sociais.

[8] A masculinização deste campo foi analisada em pormenor por Nancy MacDonald (2001), na abordagem das comunidades writer londrina e nova-iorquina.

[9] Ao referir o graffiti legal não pressuponho que este seja realizado no estrito respeito da lei, uma vez que, geralmente, até é executado sem autorização e em locais públicos. No entanto, dado o tipo de trabalho realizado, esta actividade é, em muitas circunstâncias, tolerada pelos cidadãos e pelos poderes públicos.

[10] Isto não implica que exista uma completa homogeneidade e mimetismo de actuação. Existe um denominador cultural comum, a partir do qual surge a criação, a inovação, a diversidade e mesmo a contestação no interior deste universo cultural.

[11] O significado de “anónimo” é, literalmente, “sem nome”. Porém, segundo Gary Marx (1999), o conceito de anonimato deve ser entendido num eixo relativo à identificabilidade vs não­‑identificabilidade de uma pessoa, sendo que o anonimato total equivale a falarmos de alguém que não é identificável. No entanto, o que encontramos geralmente são níveis de anonimato, pois este depende de circuitos de revelação e ocultação de informação pessoal.

[12] A noção de anonimato urbano remete para a vivência quotidiana nas grandes cidades, habitadas por uma massa de indivíduos incógnitos que se cruzam diariamente sob o signo do anonimato (Pétonnet 1987).

[13] Como exemplos de tags, posso adiantar alguns daqueles que colaboraram nesta pesquisa, como FIRE, SMILE, KIER, FICTO, CRAFT, etc.

[14] A este propósito, uma analogia com o imaginário dos super­‑heróis celebrizados pela cultura de massas norte­‑americana é inevitável.

[15] Como no caso dos tags de alguns writers que conheci, que se autodenominavam KIER, NIUS ou MIKS.

[16] O nome pode adquirir relevo de duas formas (estas não são mutuamente exclusivas): por um lado, através da sua presença maciça no nosso campo visual; por outro lado, através da qualidade plástica das suas formas.

[17] Nancy MacDonald (2001) fala de “carreira moral”, a propósito do graffiti, na medida em que a trajectória individual é construída em função da estima pública, da reputação, e não em função de qualquer compensação de ordem material.

[18] Existe, contudo, no interior deste universo social, uma faceta mais visível e socialmente tolerada que identifiquei de forma genérica como o graffiti legal. Sob esta denominação encontramos um rol de actividades que revelam uma aproximação a circuitos exteriores ao graffiti e um maior compromisso com as normas sociais dominantes.

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