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Etnográfica
versão impressa ISSN 0873-6561
Etnográfica v.13 n.1 Lisboa maio 2009
Manuela Palmeirim
Of alien kings and perpetual kin: contradiction and ambiguity in ruwund (lunda) symbolic thought
Wantage (Oxon), Sean Kingston Publishing, 2006, 175 páginas.
Não deixa de ser interessante que tenha sido no ano do centenário de LéviStrauss que tive oportunidade de ler esta obra. O esforço mitológico que este autor realizou na América teve pouco eco em África. Com poucas excepções, entre as quais a mais significativa é sem dúvida a do antropólogo belga L. De Heusch, poucos autores se dedicaram a estudar o mito em África como Lévi-Strauss o fizera na América. Para tornar mais complicada a recepção do estudo estrutural do mito em contextos africanos, o trabalho de De Heusch despertou um debate, por vezes visceral, com o seu conterrâneo historiador J. Vanisa, para quem os exercícios estruturalistas de De Heusch representavam um obstáculo para o estudo do valor histórico das tradições orais.
Manuela Palmeirim toma partido pela visão estruturalista, na qual o valor do mito de origem e dos heróis culturais radica na sua capacidade de oferecer um modelo através do qual a sociedade se pensa a si própria. O livro trata do mito de criação dos Aruwund e do poder legitimador que o mito confere ao seu rei, o Mwant Yaav. Os Aruwund vivem no Sul da República Democrática do Congo (ex-Zaire), onde a autora realizou trabalho de campo em 1987-88 e em 1992 quando realizava a sua tese de doutoramento em antropologia na School of Oriental and African Studies de Londres. Como outros povos centro-africanos, os Aruwund, hoje habitantes da província de Katanga, apresentam um modelo de realeza divina no qual o rei é fundamental para o bem-estar da terra e da comunidade, embora coexista com outros mecanismos de poder governamental dependentes de Kinshasa. O estudo de Palmeirim é importante não só porque constitui uma análise muito detalhada do pensamento simbólico, mas também porque Katanga, com uma história marcada por episódios e reivindicações independentistas, é uma região muito problemática no contexto de um país cuja estrutura territorial é particularmente volátil.
O livro não só oferece um exemplo paradigmático de análise estruturalista aplicada à realeza divina, como é também uma excelente introdução ao debate sobre o mito e a história que atravessa a literatura historiográfica e antropológica africanista dos últimos 50 anos, sobretudo no capítulo 2. Aqui a autora debruça-se sobre os heróis que articulam a memória dos dignitários reais em torno de Mwant Yaav, exercício que revitaliza o clássico tema do culture heroe (neste caso, um caçador) e da invenção da civilização, uma temática anteriormente analisada, na mesma região, por De Heusch, com quem a autora mantém um constante diálogo e também algumas discrepâncias interpretativas.
Para além dos temas míticos e metodológicos, o trabalho mostra o grande valor analítico que tiveram no passado (e que a autora re-actualiza no presente) os modelos culturais, ligados ao parentesco, do perpetual kinship, segundo I. Cunnison (o modelo segundo o qual os grupos sociais mantêm uma relação de parentesco baseada em relações entre indivíduos de gerações passadas) e da positional succession, segundo A. I. Richards (o modelo onde o antepassado falecido é substituído por uma outra pessoa que ocupa o seu lugar e, como tal, torna irrelevante a sua morte). O conhecimento destes modelos, presentes no pensamento simbólico e na cultura política dos povos centro-africanos, ajuda a análise das situações políticas contemporâneas, em concreto o paradoxo do rei (o centro do livro): o paradoxo segundo o qual o rei é um de nós e ao mesmo tempo um estrangeiro.
A opção por considerar o mito e as suas variações (todas igualmente válidas segundo Lévi-Strauss) como modelos para pensar e não conjuntos de dados factuais sobre a história, leva a autora (capítulo 4) a introduzir um breve e penetrante ensaio sobre a hierarquia. Na sua opinião, a distinção entre hierarquia e igualitarismo não separa ideologias de diferentes tipos de sociedade, como L. Dumont argumentara. Esses são, sim, modelos complementares que uma mesma sociedade pode invocar, por vezes de forma simultânea e usando diferentes recursos (autoctonia e invasão, para citar dois exemplos contraditórios), para explicar a sua história e produzir o que a autora denomina um efeito caleidoscópico pelo qual a hierarquia e a igualdade são ambas importantes para a constituição da realeza (p. 88).
O livro, assim como a pesquisa etnográfica sobre o qual se constrói, apresenta um grande rigor, detalhe e honestidade científica. Embora a síntese seja sempre bem-vinda, neste caso talvez a autora tenha sido demasiado breve na contextualização dos Aruwund no Zaire pós-colonial e se precipite na análise do mito e das suas variações e transformações. Na minha opinião, o principal problema de um estudo simbólico deste tipo é torná-lo relevante para a compreensão da actual política africana (embora pense que, precisamente, devia ser mais relevante). Com a situação no Congo e com os debates científicos em torno do crescente valor como recurso cultural e político da autoctonia numa África neoliberal (pensemos nos trabalhos recentes de Bayart e Geschiere, por exemplo), assim como com o regresso mais ou menos democrático das chamadas autoridades tradicionais em quase todos os países do continente, é pena que a autora não tenha aproveitado o seu incomparável conhecimento da sociedade do Katanga (um dos casos em que a autoctonia não é uma metáfora mas um discurso real sobre a emergência telúrica dos habitantes) para dialogar com outros autores e tornar o seu fascinante material muito mas relevante para os debates mais recentes. Mas isto é também efeito da sua honestidade intelectual e da fidelidade ao modelo com que construiu a sua narrativa. Talvez o diálogo com outros autores sobre a politização da autoctonia, sobre a revitalização das realezas divinas em África, sobre a descentralização política e sobre outros aspectos em relação aos quais ela terá, certamente, muito a dizer fique para ulteriores pesquisas. Esperemos que assim seja, e que sejam realizadas com o mesmo rigor e detalhe com que realizou o trabalho agora publicado.
Ramon Sarró
Instituto de Ciências Sociais (UL)