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Etnográfica

versão impressa ISSN 0873-6561

Etnográfica v.13 n.1 Lisboa maio 2009

 

Cláudia Castelo

Passagens para África: o povoamento de Angola e Moçambique com naturais da metrópole

Porto, Edições Afrontamento, 2007, 405 páginas.

 

O império exige colonizadores, pessoas, quer seja para conquistar, impor a ordem, evangelizar, administrar o território e populações locais, promover comércio ou indústria. Apesar da centralidade dos diversos actores colonizadores – militares, administradores, profissionais liberais, comerciantes, agricultores – a historiografia portuguesa não apresentava até à tese de doutoramento de Cláudia Castelo estudos aprofundados e críticos sobre a colonização branca das colónias africanas portuguesas. O livro Passagens para África: O Povoamento de Angola e Moçambique com Naturais da Metrópole, corolário da tese, tem como objecto a migração de naturais da metrópole para as colónias de Angola e Moçambique entre 1920 e 1970.

Após ter trabalhado sobre o impacte e a incorporação do luso-tropicalismo de Gilberto Freyre na ideologia colonial portuguesa (“O Modo Português de Estar no Mundo”: O Luso-tropicalismo e a Ideologia Colonial Portuguesa (1933-1961), Porto, Edições Afrontamento, 1998), Cláudia Castelo enfrentou uma montanha de fontes primárias e publicações da época com ferramentas metodológicas da história, demografia, sociologia, antropologia e psicologia social para estudar os discursos coloniais de povoamento, os actores históricos e as representações destes sobre os territórios e populações coloniais.

As diferentes perspectivas sobre o processo de povoamento reflectem-se na segmentação do livro em três partes. Na primeira são analisados os modelos de povoamento branco, as políticas oficiais e concepções ideológicas subjacentes, e posteriormente a autora caracteriza demográfica e sociologicamente as populações que seguiram para estes territórios ultramarinos, revelando na terceira parte as representações dos colonos sobre eles próprios, a terra e os habitantes autóctones, pontuadas com episódios das condições de vida no terreno e do relacionamento com as populações locais. As duas correntes – colonização intensiva com populações da metrópole dirigida pelo Estado; colonização de capitais e quadros sem intervenção estatal – definiam o tipo de ocupação, papel do Estado, perfil dos colonos e relação destes com a população local. Ou seja, apresentavam abordagens diferentes ao projecto colonial, mas com a sobrevivência da Nação como base comum.

A persistência de discursos e políticas de emigração do último quartel do século XIX ao final do projecto colonial inferia a existência de problemas na concretização destas ideias. Angola e Moçambique, apesar de serem destinos preferenciais na emigração para as colónias, não eram, no entanto, o destino principal da emigração portuguesa. Numa caracterização macro, a autora trabalha uma miríade de dados para apresentar os perfis dos emigrantes, revelando sexo, idade, estado civil, escolaridade, aptidão profissional, distrito de origem na metrópole e de fixação na colónia, condições de viagem, e estabelece quais os momentos históricos de maior ou menor fluxo migratório. A autora revela ainda que, no que toca à colonização dirigida, o Estado promoveu o oposto de representações e políticas de povoamento, demonstrando que a colonização livre, isto é, sem intervenção do governo, foi o grande motor da emigração para as colónias.

Na terceira parte Cláudia Castelo ilustra as representações dos colonos sobre eles mesmos e o meio circundante, a metrópole, e ainda a centralidade destas representações para a construção da sua identidade. Patenteia a distância existente entre os colonos e a metrópole política. Mostra as condições de vida de colonos e africanos em ambas as colónias ao longo do tempo, contrapondo às representações coloniais casos específicos de terreno que revelam a complexidade da situação colonial e a fragmentação da experiência colonial.

Metodologicamente, ao integrar instrumentos de diversos campos do conhecimento, história, demografia, sociologia e antropologia, a autora fornece uma lufada de ar fresco aos estudos coloniais portugueses. A base sólida de fontes primárias pesquisadas nos meandros dos arquivos portugueses, angolanos e moçambicanos, o olhar crítico sobre os censos e a literatura da época, o entrelaçar de dados quantitativos e qualitativos, as análises de representações e discursos e dos diferentes níveis activos no objecto tornam o argumento deste trabalho mais coerente e persuasivo. O corolário desta interdisciplinaridade é um livro que avança uma imagem mais complexa sobre o povoamento das colónias de Angola e Moçambique no Terceiro Império Português.

A autora poderia ter dado outros passos em frente, por exemplo prosseguido a linha de investigação da história oral, seguindo o exemplo de estudos originários da academia norte-americana – Nancy Hunt, A Colonial Lexicon: Of Birth Ritual, Medicalization and Mobility in the Congo (Durham, NC, Duke University Press, 1999); Luise White, Speaking with Vampires: Rumor and History in Colonial Africa (Berkeley, University of California Press, 2000); Jeremy Ball, “The Colossal Lie”: The Sociedade Agrícola do Cassequel and Portuguese Colonial Labor Policy in Angola, 1899-1977 (tese de doutoramento, Los Angeles, University of California, 2003). Os testemunhos orais, ao invés dos arquivos, desaparecem diariamente, e apesar de divagações e visões de um passado dourado, outorgam informações-chave ausentes de censos, relatórios coloniais, bibliografia de época ou literatura de memórias coloniais. Este trabalho, em particular a parte iii, ganharia maior força analítica ao incluir elementos de história oral. Tal iluminaria de forma clara aspectos como as redes presentes no processo de emigração, as motivações para emigrar e a escolha do local de chegada, o papel da ideologia política do colono na ida para as colónias ou as representações africanas dos colonos, e outorgaria maior detalhe às situações de caracterização micro, como a vivência do dia-a-dia dos colonos e as suas dificuldades, as hierarquias e tensões entre colonizadores, o quotidiano e a capacidade de agenciamento dos africanos. O resultado seria um reforço da história crítica vista de baixo, enfatizando-se o hiato entre a experiência no terreno colonial e os discursos e representações coloniais, produzindo-se uma imagem mais complexa e sofisticada do projecto e da realidade coloniais.

Dito isto, este trabalho revela o processo de maturação que os estudos coloniais em Portugal tiveram nos últimos anos. Apresenta um olhar crítico e contextualizado dos discursos e políticas de povoamento, ilumina o hiato entre estes discursos e a prática dos planos de povoamento metropolitanos, integra a metrópole e as colónias num mesmo patamar de análise, mostra a força analítica ao descartar conceptualizações maniqueístas e homogeneizantes do contexto colonial e consegue uma harmonia salutar entre a extensão e a profundidade do estudo.

Quem trabalha sobre o Império defronta um dilema quando procura encontrar o ponto de equilíbrio entre os dois discursos dominantes, as representações hegemónicas do período colonial e as caracterizações anticoloniais, ambos com um lastro ainda aceso no presente. Cláudia Castelo atinge este equilíbrio, contribuindo de forma importante para uma imagem mais complexa do projecto colonial português.

 

Jorge Varanda

CRIA, CMDT-LA

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