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Etnográfica

versão impressa ISSN 0873-6561

Etnográfica v.13 n.1 Lisboa maio 2009

 

Jean-Yves Durand (org.)

Os “lenços de namorados”: frentes e versos de um produto artesanal no tempo da sua certificação

Vila Verde, Município de Vila Verde, Proviver EM, 2008, 2.ª ed. (revista e aumentada), 302 páginas.

 

Os “lenços de namorados” constituem um tipo de produção artesanal certificada recentemente no âmbito do Programa para a Promoção dos Ofícios e das Microempresas Artesanais (IEFP), bem como da legislação de enquadramento em vigor desde 2001 / 2002, sendo objecto de regulamentação a área de produção, as matérias-primas e os processos técnicos e decorativos admissíveis para a confecção dos lenços, mas também as próprias formas e dimensões destes.

Foi ao desafio colocado por este processo de certificação, liderado por várias entidades de promoção do desenvolvimento local, que a equipa organizada por Jean-Yves Durand procurou responder, caracterizando o universo dos “lenços de namorados”, e é precisamente desse estudo e reflexão que o livro aqui em apreço dá conta e de que veio a resultar, já em 2007, a reformulação dos critérios de certificação anteriormente aplicados aos lenços.

No processo de interrogação e caracterização desta produção têxtil, o trabalho da equipa liderada por Jean-Yves Durand descobriu um universo verdadeiramente polimorfo, contraditório dos discursos sobre ele construídos às escalas local, regional e nacional, sobretudo desde as décadas de 1980 / 1990, e cuja ampla diversidade – de ordem tipológica, técnica, artística, territorial e funcional, mas também quanto às diferentes ordens de valores de que os lenços são investidos e aos seus âmbitos sociais de produção e consumo – parece ela própria contraditória de qualquer esforço de regulamentação do que pode ou não ser designado e reconhecido como “lenço de namorados”.

Para além do trabalho etnográfico junto de bordadeiras (e bordador), a caracterização deste universo resultou, em grande medida, da análise material de um grande quantitativo de lenços – não apenas da produção contemporânea destinada ao mercado e de exemplares privados observados em trabalho de terreno, mas de diversas colecções, privadas e de museus – amplamente documentado nas 291 imagens que ilustram o livro.

Muito diversificadas, as colaborações do livro estenderam-se para além da perspectivação antropológica. Conta-se entre estas o importante esboço historiográfico de Ana Pires, que situa as incógnitas das origens dos lenços de namorados por relação com outros tipos de bordado em Portugal, bem como o que estes revelam em termos de organização do trabalho, questões de género e diferenciação social, retomados por Jean-Yves Durand para o presente e pretérito etnográficos dos lenços. A contribuição de Adriano Basto, centrada sobre os textos reproduzidos nos lenços e o que eles revelam de norma e desvio linguístico, é também recentrada e desenvolvida por Jean-Yves Durand a propósito de um dos vectores de legitimação da genuinidade dos lenços de namorados.

Responsável pela análise da bibliografia de referência produzida sobre os lenços desde finais do século XIX e do que a mesma foi revelando das imagens e discursos eruditos construídos em torno desta produção, Clara Saraiva aborda este universo a partir de perspectivas como os ritos de passagem, a lógica da dádiva e a construção social dos géneros e das respectivas emoções. Analisa ainda os processos de emblematização, identitária e / ou mercantil, de que os lenços têm vindo a ser objecto, transportando-nos inclusivamente para algumas das dimensões psicológicas da actividade de bordadeira. Mónica Pinho, por seu turno, é responsável pelo capítulo onde se transcreve parte das entrevistas por si realizadas junto das bordadeiras (e bordador), que nos remetem, em discurso directo, para essa multiplicidade de percursos e de soluções, que os lenços espelham e que constitui uma das principais razões para as dificuldades da sua classificação morfológica.

Cerzindo, e frequentemente sistematizando os diversos problemas e planos de análise suscitados pelos demais elementos da equipa, a vasta contribuição de Jean-Yves Durand desenvolve-se a partir da certificação dos lenços, designadamente enquanto motor e reflexo de processos de patrimonialização e mercadorização da cultura popular. Desconstrói discursos e imagens em diversas escalas e contextos e interroga em permanência as lógicas e os fundamentos (de ordem económica, financeira, social, identitária, psicológica, etc.) desse processo de certificação. Identifica, inclusivamente, problemas passíveis de serem colocados a esse processo num futuro próximo, mas, não obstante, pondera posições (maximalista vs. minimalista), propõe soluções e sugere o estabelecimento de parâmetros específicos para a concretização dessa certificação.

Elaborado em equilíbrio entre o discurso académico e a divulgação científica, este trabalho é particularmente importante para pensar os princípios e os dilemas éticos inerentes à sua realização – aos quais Jean-Yves Durand dá recorrentemente voz – e que decorrem do facto de que, sendo resultado de uma interrogação da realidade social dos lenços de namorados, ele é, simultânea e assumidamente, um dos instrumentos no processo de (re)construção dessa realidade.

Trata-se, em suma, de um olhar distanciado sobre um processo de patrimonialização que identifica, inclusivamente, as contradições desse mesmo processo, quando, por um lado, potencia novos mercados e novos consumos e, como tal, promove a revitalização desse produto, mas, por outro, cristaliza os parâmetros da sua produção, reduzindo as possibilidades da sua inovação no âmbito de uma realidade social em permanente mudança. É, contudo, um olhar sobre um processo de patrimonialização em que a própria equipa participou, com efeitos nas próprias dinâmicas sociais inerentes à produção, consumo e valoração dos lenços.

Neste sentido, a importância do livro não se esgota apenas no seu objecto e conteúdos, sendo igualmente bom para pensar processos de patrimonialização inerentes à revitalização de técnicas “populares” e “tradicionais” e à revalorização dos respectivos produtos, em particular no âmbito de processos de certificação artesanal.

Sendo um bom exemplo do papel que os antropólogos podem desempenhar fora do âmbito académico (designadamente em terrenos de reflexão sobre objectos tradicionais da disciplina, contribuindo com as suas competências específicas para a programação e aplicabilidade de tais processos de patrimonialização / certificação e habilitando de forma qualificada as decisões de ordem política, económica, ou outras, que lhes darão execução), Os “Lenços de Namorados”: Frentes e Versos de um Produto Artesanal no Tempo da Sua Certificação é, em particular, um importante contributo para pensar os desafios que se colocam à antropologia no recente contexto de valorização da cultura popular tradicional, quer a partir dos campos da economia, do desenvolvimento e do turismo, nos quais se centram os processos de certificação artesanal, quer estritamente no campo patrimonial, no recém-constituído domínio do “património cultural imaterial”.

 

Paulo Ferreira da Costa

Instituto dos Museus e da Conservação

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