SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.13 número2Uma proposta antropológica para o futuro do Museu de Arte PopularMuseu de Arte Popular: oportunidades perdidas, novas oportunidades índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Etnográfica

versão impressa ISSN 0873-6561

Etnográfica v.13 n.2 Lisboa nov. 2009

 

Da arte popular às culturas populares híbridas [1]

João Leal

FCSH-UNL, CRIA

 

Gostaria e apresentar dois argumentos principais em defesa do Museu de Arte Popular (MAP), que o presente governo, mal-avisado, decidiu encerrar. O primeiro diz que, num quadro – como o que caracteriza a contemporaneidade – em que tudo se tornou susceptível de patrimonialização, faz todo o sentido encarar o MAP como um património que deve ser defendido ou, para ser mais específico, como um museu que deve ser musealizado. O segundo argumento diz que, num quadro – como o que caracteriza a contemporaneidade – em que as culturas populares têm vindo a ser reformatadas a partir de ideias como a hibridez e a criatividade, faz todo o sentido dinamizar o MAP, fazendo dele uma plataforma de diálogo com essas novas formas da cultura popular. O primeiro argumento extrapola para o caso do MAP ideias sobre o património defendidas por historiadores como Pierre Nora (1984) e David Lowenthal (1998). O segundo tira consequências de debates sobre as culturas populares pós-modernas, protagonizados por antropólogos como Nestor García Canclini (1998) ou David Guss (2000).

De acordo com o primeiro argumento, tudo hoje é património. A prova de que é assim é dada justamente pela ideia em nome da qual se quer destruir o MAP: a constituição de um Museu da Língua (e do Mar…). A ideia, como se sabe, não é original. É importada do Brasil e faz parte das guerras culturais em curso acerca da propriedade da língua portuguesa. Mas não é esse o ponto que eu queria sublinhar. A simples ideia da criação de um Museu da Língua seria impensável há duas décadas. E se hoje é aceite com naturalidade, é porque aquilo que contemporaneamente se entende por património ganhou uma amplitude e um eclectismo que possibilitam que tudo – ou quase tudo – seja visto como património, ou para citar Pierre Nora (1984), que tudo – ou quase tudo – seja visto como um lugar de memória. Segundo Marc Augé (2006), o mundo pós-moderno e globalizado em que vivemos é um mundo assente na multiplicação de não-lugares. Exactamente por isso – em reacção a isso –, é também um mundo assente na multiplicação de lugares de memória, de património, de kastom (como se diz no pidgin English da Melanésia), de heritage (como se diz em inglês), de tradições (inventadas ou não).

O MAP é, no caso português, um desses lugares de memória. Ele é, antes do mais, o lugar de cristalização de uma tradi-ção de estudos, de coleccionismo e de intervenção sobre a arte popular que nasce no final do século XIX com Joaquim de -Vasconcelos, que se prolonga na I República com Vergílio -Correia, Luís Chaves ou Leite de -Vasconcelos, e que culmina – mas não termina – no Estado Novo com a actividade de António Ferro no SPN/SNI. Crítica, a esquerda posicionou-se também nesta área, propondo – por exemplo com Ernesto de Sousa – uma arte popular alternativa, apoiada na chamada outsider art. Esta importância -atribuída à arte popular não é especificamente portuguesa e nada tem de provinciano: em toda a Europa, no mesmo período, era esse o espírito do tempo; à direita e à esquerda. As artes populares eram vistas – a par de elementos mais prosai-cos como a bandeira e o hino ou de elementos mais sofisticados como mitos de origem ou ideias de um passado comum – como um dos aspectos fundamentais do kit “faça você mesmo” que, segundo Orvar Löfgren (1989), é requerido pelas identidades nacionais modernas. Ter uma arte popular – mesmo que tivesse de ser inventada – era fundamental para que um país fosse admitido no concerto das nações, como de resto mostram as Exposições Universais e o relevo nelas concedido à arte popular. O MAP é um produto idiossincrático desse estado de espírito, onde ser-se tradicional era uma pré-condição para se ser moderno, como mostrou a pesquisa de Vera Alves (2007) sobre o SPN/SNI.

É desta articulação contraditória entre tradição, nacionalidade e modernidade que nasce o MAP. Nele, o moderno e o tradicional misturam-se. O desenho do edifício e os murais das diferentes salas são estilizações modernistas de elementos populares. E, se os objectos que povoam as diferentes salas são tradicionais – embora não forçosamente autênticos –, o contexto em que eles são reapresentados é moderno. Quanto ao objectivo último do todo que era o MAP – a nacionalização do gosto das classes médias –, não podia ser mais moderno, com também mostrou a pesquisa de Vera Alves (2007).

Em condições normais, o MAP – tal como existia antes de ser encerrado – não teria chegado até nós como chegou. Mas, por uma mistura ironicamente feliz de incúria e de inércia, sobreviveu ao seu tempo e é hoje um testemunho – raro na Europa – de um estado de espírito que, quer se goste quer não, participou da formatação do gosto moderno pelo popular.

Nesse sentido – regressando ao meu primeiro argumento –, o MAP é um lugar de memória. Num tempo em que tudo é património, o MAP é património e deve ser preservado. O que estou a sugerir é que o MAP deve continuar, mas como uma espécie de metamuseu, ou, se se quiser, como um museu de si próprio. Isso exigiria escolhas estratégicas ao nível museográfico. Talvez nem todas as salas sejam para conservar, dada até a sua desigual valia: a sala do Minho é única no seu valor decorativo e documental; já as salas sobre o Sul são menos conseguidas. Sobre o que lá está teria de ser construído um percurso expositivo que propusesse um olhar crítico sobre o museu, que o mostrasse como o resultado cenográfico de um determinado olhar sobre as culturas populares. Mas, independentemente dessas escolhas museográficas, o MAP deve continuar.

Ele é de resto uma peça essencial ao equilíbrio cénico desse outro lugar de memória que é a Praça do Império, um lugar único em Portugal pela sua capacidade para, num mesmo espaço, juntar tantas camadas contraditórias da história e da cultura portuguesa: guerreiros lusitanos e um planetário; o estilo manuelino e os Távoras; um jardim tropical e um museu de marinha; sonhos desfeitos de grandeza imperial e paradas da Guarda Nacional Republicana; turistas, famílias com crianças, arrumadores de carros e pescadores de domingo; a adesão à União Europeia e a arte moderna; pastéis de nata e McDonald’s. E o Tejo. Sobretudo o Tejo.

Os modernos – entre os quais os modernos do MAP – concebiam os seus projectos de emblematização das culturas populares a partir da categoria da autenticidade: o povo era aquilo, aquilo era autêntico. Claro que o povo não era necessariamente aquilo e claro que aquilo não era necessariamente autêntico. Nesse sentido, o MAP é um híbrido: um lugar onde se misturavam diversos tempos – o tempo supostamente imóvel dos camponeses e o tempo moderno da construção autoritária das nações –, diversos objectos – objectos populares “genuínos”, objectos populares encomendados, miniaturas, ampliações, murais de artistas modernistas –, diversos grupos sociais – o povo, etnógrafos estetas, as classes médias.

Esta hibridez constitutiva do MAP funcionou durante muito tempo como um -handicap para o museu, acusado de privilegiar a cenografia em detrimento da exactidão etnográfica. Não deixa de ser verdade. Mas hoje sabemos que a hibridez é a característica fundadora de qualquer discurso sobre o popular. O popular é – literalmente – o produto do encontro de duas culturas: a cultura que lá estava e que não sabia que era popular e a cultura de quem chega lá e a nomeia como popular. No preciso momento em que qualquer objecto é -discursado como popular – no preciso momento em que alguém diz dele “isto é popular” –, esse objecto viu serem somados novos significados aos seus significados originais, tornou-se um objecto literalmente híbrido ao qual foi acres-centada, para citar Barbara Kirshenblatt--Gimblett (1998), uma “segunda vida”, uma nova carreira, novos públicos, novas funções, novas potencialidades.

Durante muito tempo essa capacidade de criar – sem saber – objectos híbridos a partir das culturas populares foi um privilégio das elites letradas. Eram elas que decidiam que objectos de arte popular – um galo de Barcelos ou uma escultura do Franklin – mereciam figurar como objectos de colecção ou, pelo contrário, como bibelôs de gosto duvidoso. Elas é que decidiam se a dança X era verdadeiro folclore ou se pelo contrário a dança Y era “um falso”.

Mas a história da parte final do século XX é também a história da democratização do popular. Essa história foi contada para a América Latina por autores como García Canclini (1998) ou David Guss (2000). E é inseparável da assunção – pelos criadores populares – da hibridez constitutiva do popular nos termos em que García Canclini fala dela. Um popular vivido não já como “complacência melancólica para com as tradições”, mas como um projecto criativo em que os recursos tradicionais se misturam deliberadamente com novos formatos; um popular em que a experimentação e a procura de novas soluções se tornou a norma; um popular onde as velhas distinções entre tradicional e moderno, popular e erudito ou arte e artesanato são postas de parte. Redefinidas desta forma, as culturas populares passaram a integrar tanto projectos de experimentação artística individual como propostas alternativas articuladas por activistas comunitários que – quando correm bem (e nem sempre correm bem…) – operam como fonte de orgulho identitário e de prosperidade material para as comunidades.

O espaço do MAP – nascido ele próprio de uma concepção malgré soi híbrida da cultura popular – é também o espaço ideal para essas novas culturas populares. Este é o meu segundo argumento: museu de si próprio, o MAP pode também tornar-se uma plataforma contemporânea de diálogo com essas novas formas da cultura popular. Sendo um lugar de memória, o MAP pode ser simultaneamente um lugar de futuro. Não se trata só de musealizar parte do que lá está, trata-se de pôr fim à total ausência de projecto que caracterizou este museu nas últimas décadas e abri-lo aos novos discursos sobre o popular que caracterizam a contemporaneidade. Através de exposições temporárias, da consolidação de programas de trabalho com museus etnográficos locais e com outros activistas culturais, através do lançamento de oficinas e iniciativas abertas à experimentação com a matéria do popular, o MAP poderia tornar-se um lugar de convergência e confronto entre discursos sobre e a partir das culturas populares. A sua exposição de reabertura tanto poderia ser uma exposição de cartazes, websites e tee-shirts de festas de padroeiro, como um “best of” do novo artesanato criado à sombra dos programas do Instituto do Emprego e Formação Profissional. Poder-se-ia pensar em montar uma exposição em torno dos graffiti urbanos, que juntasse artistas portugueses e experiências internacionais. E porque não pôr lado a lado António DaCosta – e os seus quadros sobre as Festas do Espírito Santo nos Açores – e os vestidos exuberantes das “queens” dos Holy Ghost Festivals da Califórnia? Porque não propor a artistas e a artesãos instalações a partir de tal ou tal tema da cultura popular? Porque não pensar num “estado da art brut” em Portugal e dos seus diálogos com o imaginário popular?

A missão deste MAP visto como lugar de futuro seria em todo o caso libertar as novas formas da cultura popular de visões assentes no preconceito, afirmando-as como lugares de criatividade. Há ainda em Portugal uma solenidade na abordagem do popular que tem dificultado a inovação e a experimentação. Mas isso só torna mais necessária esta reorientação do MAP.

O Ministério da Cultura está já convertido – UNESCO oblige – aos méritos do património imaterial. É pena que o Ministro da Cultura tenha ainda dificuldades em entender que o património imaterial é tão-só a nova expressão – politicamente correcta – para designar algumas das múltiplas formas daquilo a que costumamos chamar cultura popular. Quando o entender, voltará certamente atrás na decisão de acabar com um museu – o MAP – que pode ser um ponto nevrálgico na articulação das acções a desenvolver em Portugal em torno da salvaguarda e da dinamização do património – imaterial e material – das culturas populares.

 

Bibliografia

Alves, Vera, 2007, “Camponeses Estetas” no Estado Novo: Arte Popular e Nação na Política Folclorista do Secretariado de Propaganda Nacional. Lisboa, ISCTE, tese de doutoramento.

Augé, Marc, 2006, Não-Lugares: Introdução a uma Antropologia da Sobremodernidade. Lisboa, Editora 90.º

Canclini, Nestor García, 1998, Culturas Híbridas. São Paulo, EDUSP.

Guss, David, 2000, The Festive State. Berkeley, University of California Press.

KIRSHENBLATT-GIMBLETT, Barbara, 1998, Destination Culture. Berkeley, University of California Press.

Löfgren, Orvar, 1989, “The Nationalisation of Culture”, Ethnologia Europaea, XIX: 5-24.        [ Links ]

Lowenthal, David, 1998, The Heritage Crusade and the Spoils of History. Cambridge, -Cambridge University Press.

Nora, Pierre (dir.), 1984, Les lieux de mémoire. Paris, Gallimard.

 

1  Este texto foi originalmente publicado no jornal Le Monde Diplomatique – edição portuguesa, II série, n.º 33, Julho de 2009. Agradeço à Nélia Dias, que leu uma versão prévia do texto, os comentários e sugestões.

Creative Commons License Todo o conteúdo deste periódico, exceto onde está identificado, está licenciado sob uma Licença Creative Commons