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Etnográfica

versão impressa ISSN 0873-6561

Etnográfica v.13 n.2 Lisboa nov. 2009

 

Daniel Seabra Lopes

Deriva cigana: um estudo etnográfico sobre os ciganos de Lisboa

Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais, 2008, 410 páginas.

 

Ruy Llera Blanes

Os aleluias: ciganos evangélicos e música

Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais, 2008, 260 páginas.

 

 

As duas recém-publicadas monografias em consideração são o resultado do trabalho de investigação de dois antropólogos portugueses, Daniel Seabra Lopes e Ruy Llera Blanes, cada uma dedicada à pesquisa no âmbito de projectos de doutoramento. A razão pela qual os dois volumes estão a ser apresentados em conjunto não depende somente da simultaneidade da sua saída no mercado editorial, mas sobretudo da suposta pertença a uma área específica do domínio científico antropológico, relativa aos estudos das comunidades ciganas. Todavia, os textos distanciam-se notavelmente um do outro, quer pelos objectos e sujeitos do estudo, quer pela postura metodológica e epistemológica adoptada pelos dois autores para tematizar, discutir e desenvolver as pesquisas – diferenças que sobressaem e que se revelam estimuladoras de análise crítica.

Deriva Cigana de Daniel Seabra Lopes apresenta-se como uma monografia etnográfica de matriz clássica, se considerarmos, para além da declaração de intentos do autor, o estilo organizativo e argumentativo holista proposto ao longo do texto, que denota a vontade de abordar de forma abrangente quase todos os aspectos “culturais” característicos de uma específica comunidade cigana residente num bairro social de Lisboa. O autor estrutura o -discurso em quatro capítulos, cada um centrado na descrição daquilo a que chama “impressões etnográficas”; para cada uma destas propostas interpretativas apresenta e discute pequenos excertos da vida quotidiana de algumas famílias ciganas com as quais o investigador manteve relações ao longo de quinze meses de visitas regulares ao terreno. No primeiro capítulo, “Um passo atrás no tempo”, discutem-se conceitos como os de anacronismo, não--simultaneidade, desfasamento e extemporaneidade, aos quais os ciganos estariam associados por razões de “inserção histórica no universo camponês católico” (p.114); a “Introversão” do segundo capítulo sugere que o mundo dos ciganos seja lido como “claramente delimitado, enconchado, cerrado e, como tal, pouco permeável a certas influências inovadoras que o circundam” (p.117), assumindo-a como fenómeno performativo; em “Lassidão, -desagregação e vazio” o autor pretende esclarecer como estas impressões não são necessariamente “falhas” ou “faltas” do sistema social cigano, mas a assunção por parte deste de uma “posição oblíqua” em relação ao meio social envolvente (pp.278-280), com vista à preservação da autonomia. Finalmente, o quarto capítulo, “As derivas”, analisa criticamente a relação entre a acção “normalizadora” das instituições locais e as tácticas adaptativas dos ciganos.

Vale a pena sublinhar que o diálogo com uma ampla literatura antropológica actual (trabalhos de Paloma Gay y Blasco, Judith Okely, Caterina Pasqualino, Leonardo Piasere, Teresa San Román, Michael Stewart, Patrick Williams) é assertivo e constante, embora o teor argumentativo se revele frequentemente próximo de uma análise sociológica – curiosamente, este livro surge na colecção de sociologia. Talvez decorrente do estilo da escrita, o texto apresenta uma estruturação recorrente, na qual relatos do quotidiano, deduzidos da observação no terreno, servem de justificação à discussão teórica que, por sua vez, aponta para eixos temáticos tópicos de uma antropologia que se serve de conceitos construídos fora da comunidade: o patriarcado, o machismo, a virgindade das mulheres, a violência, a tradição e o atraso (cf. David Lagunas, Los Tres Cromosomas: Modernidade, Identidad y Parentesco entre los Gitanos Catalanes, 2005). De resto, o autor está consciente de que o terreno epistemológico no qual se desenvolve a análise é escorregadio na introdução e na conclusão é evidente a necessidade de tornar claras algumas afirmações ambíguas e que parecem querer desafiar a ideia de que, necessariamente, o antropólogo deva experimentar empatia, ou pelo menos o tente, com os seus interlocutores.

Esta experiência etnográfica revela, talvez de uma forma mais evidente, as dificuldades de imersão no contexto e de incorporação do processo de conhecimento (cf. Judith Okely, The Travellers-Gypsies, 1983; Leonardo Piasere, Un Mondo di Mondi, 1999 Patrick Williams, Nous, on n’en parle pas, 1993). Não é este o lugar para debatermos sobre etnografias bem-sucedidas ou fracassadas, embora a antropologia esteja carente de textos em que os próprios antropólogos reflictam sobre o eventual insucesso das pesquisas de terreno (cf. Piasere, acima referido). Contudo é cientificamente desejável que uma monografia etnográfica produza um conhecimento que nos aproxime das visões do mundo do grupo estudado e que nos ofereça uma análise qualitativa sobre as categorias, estruturas sociais, interpretações, cosmologias e teorias “émicas”, que se confronte com a construção interna dos significados e não tanto com uma procura, por parte do antropólogo, de uma coerência entre o seu discurso teórico e as “impressões” pessoais dispersas e logo costuradas. De facto, reflexividade e subjectividade são processos distintos da proposta de aproximação “impressionista” na construção de conhecimento etnográfico. Aliás, esta perspectiva é ambiguamente definida pelo autor (pp.35-36), deixando frequentemente desnorteado o leitor relativamente à discussão sobre certo tipo de conceitos ou inferências problemáticas, entre outras a questão do anacronismo e da não-simultaneidade temporal dos ciganos (pp. 44-45).

Sublinhe-se, entretanto, que o autor demonstra evidente honestidade intelectual ao pôr o seu percurso interpretativo constantemente em diálogo com outras etnografias sobre comunidades ciganas, mas, ao fazê-lo, sugere também uma leitura oscilante e ambígua de um ponto de vista teórico e interpretativo. Se, por um lado, se distancia de abordagens em que os sujeitos são folclorizados, cristalizados, essencializados culturalmente, ao mesmo tempo parece demorar-se a detectar eventuais “traços” – ainda que explicite não serem necessariamente negativos ou não ter ambições de generalização mas sim de comparabilidade – e a “fixar” e “forçar” dentro de categorias “éticas” pouco flexíveis, e que precisariam então ser mais discutidas, os ciganos do bairro estudado e de Lisboa, pelo que a criatividade da comunidade parece desaparecer.

De um outro modo, a abordagem teórica, o objecto de estudo e a metodologia utilizada pelo autor do livro Os Aleluias, Ruy Llera Blanes, assume outras direcções.

Tendo como enfoque específico o fenómeno do movimento evangélico cigano na Península Ibérica – nomeadamente a Igreja Evangélica de Filadélfia –, a monografia investiga os contextos em que música, religião, identidades e memória histórica se entrelaçam e onde as práticas musicais assumem relevância singular e explicativa enquanto promotoras “de sentidos de espaço e tempo, de momento e lugar” dentro de um contexto de “identidades diaspóricas” (p.59). Embora o conceito de diáspora, associado a “terrenos ciganos”, tivesse -talvez necessitado de uma análise mais crítica, do ponto de vista histórico e identitário, dada a complexidade problemática da discussão teórica sobre diáspora como “prática social” – cf., entre outros, Rogers Brubaker, “The ‘diaspora’ diaspora”, Ethnic and Racial Studies, 28(1), pp. 1-19, 2005 Martin Sökefeld, “Mobilizing in transnational space: a social movement approach to the formation of diaspora”, Global Networks, 6(3), pp. 265-284, 2006 Kachig Tölölyan, “Rethinking diaspora(s): stateless power in the transnational moment”, Diaspora, 5, pp. 3-36, 1996 –, o autor propõe uma interpretação interessante ao enfatizar a dimensão musical, no seio do contexto evangélico, como “agente de ciganidade” (p.61). Finalmente, não é por acaso que neste trabalho o antropólogo adoptou uma metodologia bissituada, de modo a tornar evidente a necessidade da complementaridade entre o terreno de investigação português (Lisboa) e o terreno espanhol (Madrid).

Trata-se de uma pesquisa que se insere na linha de intersecção entre as abordagens teóricas da antropologia de comunidades ciganas e da antropologia das religiões, embora a argumentação seja definitivamente mais centrada na análise dos cultos religiosos. De resto, os conteúdos dos últimos três capítulos demonstram a centralidade da “vertente experiencial, performativa e participativa” (p.137) do culto, descrita através de práticas e ideologias que se destacam por colocarem o acento em questões fundamentais às quais o autor procura dar resposta ao longo do texto – entre elas, as da marginalidade, da mobilidade/diáspora, da modernidade cigana, da reivindicação identitária, do reconhecimento político e social.

Patrick Williams, num artigo de 1995 (“Quesiti per lo studio del movimento pentecostale tra gli Zingari”, La Ricerca Folklorica, 31, pp.133-138), interrogava-se relativamente aos “quesitos” que o nascimento e o crescimento do próprio movimento pentecostal cigano colocam aos comentadores ou aos investigadores de facto, o fenómeno obriga a ampliar o olhar explicativo para moldar leituras fechadas, dirigidas, por exemplo, à análise de uma eventual crise que a sociedade cigana estaria a enfrentar e que justificaria o sucesso do movimento (p.133).

Com efeito, o autor do presente livro oferece uma leitura que lida com as transformações estruturais que, ao longo do século XX, os ciganos da Península Ibérica experienciaram, passando “de um nomadismo rural a uma vida nos subúrbios multiculturais das principais urbes” (p.18) – um argumento entre outros possíveis. O conceito da “marginalidade” social que perpassa os capítulos do livro, explícita ou implicitamente, é explorado de tal forma que, embora permanecendo “na sua essência o mesmo” (p.32), se reconfigura a partir de um novo contexto histórico, social, cultural, experiencial. A proposta é de interpretá-lo como uma “estratégia” relacional e identitária, no sentido da reinvenção de uma nova “ciganidade” através do uso da própria marginalidade, a qual se tornaria um instrumento que inverte a polaridade entre a vitimização do sujeito e a reivindicação étnica activa.

“O ‘Senhor’ tem substituído os ‘Gadj钔, dizia Patrick Williams (no artigo referido, p.135, tradução minha) para colocar o processo de “transformação”, vindo da adesão ao movimento pentecostal, na análise do cruzamento entre as dimensões relacionais internas e externas aos próprios grupos ciganos isto é, perguntamo-nos se as dinâmicas do evangelismo cigano se colocam nas relações entre ciganos ou naquelas entre ciganos e não-ciganos, ou eventualmente nas duas, e com que características, inclusive a reivindicação, ou não, de visibilidade e “emergência” social, religiosa e até política.

Talvez seja neste ponto que a proposta etnográfica de Os Aleluias resulte, de certa forma, carenciada de uma análise mais dialéctica, que seja capaz de actualizar o diálogo relacional, justamente entre as famílias ciganas com as quais o antropólogo trabalhou e os espaços experienciais por elas vivenciados e construídos na contínua “negociação” social e cultural com o “mundo” dos não-ciganos. Embora relativa a um contexto histórico e cultural específico, o das famílias francesas manouches, a etnografia Nous, on n’en parle pas, de Patrick Williams (Ministère de la Culture et de la Francophonie/Maison des sciences de l’homme, 1993), ao analisar a dimensão do “silêncio” e do “rumor”, e ao perguntar-se se o advento e a adesão consistente dos manouches ao movimento pentecostal não terá intervindo na relação “silenciosa” entre manouches, oferece um ponto de vista interessante para a exploração de aspectos que talvez tenham sido menos aprofundados por Ruy Llera Blanes, como o da construção social do movimento religioso da Igreja de Filadélfia, que nos indica quão constitutivas do mesmo são as redes ciganas de pertença e sociabilidade familiar e parental.

 

Micol Brazzabeni

CRIA, bolseira FCT

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