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Etnográfica

versão impressa ISSN 0873-6561

Etnográfica v.14 n.1 Lisboa fev. 2010

 

Entrevista a Benjamim Pereira:

“Uma aventura prodigiosa”[1]

Paulo Ferreira da Costa e Cláudia Jorge Freire (IMC)

 

O trajecto de Benjamim Pereira é indissociável da antropologia e da museologia em Portugal, não apenas pela sua pertença à equipa fundadora do Museu Nacional de Etnologia e pelo trabalho que aqui desenvolveu, mas também pela colaboração intensa que tem sido chamado a dar a inúmeros projectos museológicos por todo o país. Sendo autor de obras indispensáveis ao conhecimento da cultura material tradicional portuguesa, em particular as que resultaram das linhas de investigação do Centro de Estudos de Etnologia e do Museu Nacional de Etnologia, o seu percurso profissional é também marcado pela importância que cedo conferiu ao uso da imagem, fotográfica e em movimento, na documentação das realidades sociais, especialmente com vista ao seu uso em contexto museológico.

PAULO FERREIRA DA COSTA Nas cartas de 1959 dirigidas a Ernesto Veiga de Oliveira,[2]Jorge Dias refere: “A entrada do Benjamim [no CEE – Centro de Estudos de Etnologia] é mais uma garantia de sucesso” (15 / 11 / 1959); “Ele é um excelente moço e tenho a certeza de que havemos de fazer dele um bom etnógrafo. Eu simpatizei logo que o vi pela primeira vez, mas agora não tenho a mínima dúvida de que está ali uma pérola. […] Agora que Vocês têm o Benjamim convém pôr tudo em movimento. Com um carro é fácil estender êsse estudo a todo o país e fazer uma obra única. […] Gostei de te ver alegre e cheio de brilho e de ver o Benjamim, seguro, sereno e de olhinho vivo e sempre alerta” (5 / 12 / 1959). Como foi o seu encontro com o CEE e, a partir deste, com a antropologia e a museologia? Que aventura foi esta que teve o início no final dos anos 50?

 

BENJAMIM PEREIRA Bom, foi de facto uma aventura prodigiosa que resultou de um encontro fortuito com o Ernesto Veiga de Oliveira, que na altura estava com o Pedro Homem de Mello no largo da estação de Montedor, à espera de um comboio que os levaria para o Porto. Ao fim da tarde passei por ali por acaso e cumprimentei o Pedro Homem de Mello, que me apresentou o Ernesto. Eu ia ao Porto, estava nessa altura em demanda de uma profissão. Tinha-me desencantado da vida do campo. Isto veio a propósito e o Ernesto disse-me: “Então, Senhor Benjamim, apareça na [minha casa, na] Pena, se tiver tempo.” E eu tinha muito tempo e apareci.

O Ernesto e o Fernando Galhano tinham programado uma vinda ao Norte para estudo dos moinhos e eu prontifiquei-me para os acompanhar, porque eu conhecia muito bem os moinhos do rio Âncora, que frequentava sobretudo no Verão, altura em que os da casa não satisfaziam as necessidades. Disse-lhes que viessem e apanhei-os aqui na estação e levei-os a ver esses moinhos, e a partir dessa altura encetámos uma boa relação.

Entretanto, arranjei emprego no Porto. Eu tinha escrito as Notas Etnográficas de Caíde, que lhes mostrei, e eles interessaram-se pela publicação desse trabalho no boletim Douro Litoral.

E depois, em dado passo, o Jorge Dias teve conhecimento da minha existência, pelo Fernando e pelo Ernesto, e perguntou-me porque é que não ia para o Centro. Na altura eu estava com um lugar bem pago, mas que detestava. Abandonei essa situação a troco de uma bolsa do CEE, que dependia do Instituto de Alta Cultura [IAC]. E pronto, passei a trabalhar no Centro e a identificar-me desde logo com os seus projectos.

Depois foi a ida para Lisboa, em Maio de 1963, quando o Jorge Dias pensou levar mais longe o projecto do Museu e cria o Centro de Estudos de Antropologia Cultural [CEAC], que foi formado fundamentalmente pelo Jorge Dias e pela Margot, pelo Ernesto, pelo Fernando e pelo Benjamim. E assim foi, acabei por ficar seduzido pela vida dos Centros. Sempre tive uma consciência agudíssima da importância do nosso trabalho.

No programa do CEE havia uma linha que consistia na organização da Bibliografia,[3] e o Ernesto sugeriu que eu me ocupasse deste projecto. O Jorge Dias tinha já feito uma incursão nesse domínio, com o Bosquejo Histórico de Etnografia Portuguesa. Portanto, entrei nessa linha e procurei desenvolvê-la o mais amplamente possível. E a partir daí foi fantástico, porque foi a maneira de me introduzir [na antropologia] e de eu perceber desde logo o que era boa etnografia e a etnografia palavrosa, ou a etnografia nula. Foi, na verdade, uma aventura verdadeiramente fascinante. Foi um trabalho em que eu mergulhei a cem por cento, senti-me no fundo responsável por um sector de que eu medi logo a importância. Não fazia outra coisa senão ler, e ganhei uma técnica de leitura que retive durante muito tempo. Consultei centenas de obras que não estão ali referenciadas. De repente eu percebia o que era um trabalho bem conduzido, bem explícito, que abria para a compreensão das realidades, e outros que eram uma sensaboria, um estragar de palavras…

Integrei-me logo no grupo de uma forma naturalíssima. Eu era o único que não tinha curso, mas isso não significou nunca nada, e para mim os diálogos com os meus companheiros nunca foram embaraçados ou afectados por esse dado. Havia uma naturalidade relacional profunda.

PFC Das linhas de trabalho do CEE houve alguma em particular que lhe tivesse despertado mais interesse?

BP A tecnologia! Eu trouxe ao grupo um apoio muito grande, porque eu manejei todas as alfaias publicadas no livro da Alfaia Agrícola Portuguesa [1977, 1983, 1995] aqui em casa. Havia, portanto, um conhecimento por dentro, e reconheço que tenho alguma vocação para o entendimento da mecânica técnica.

PFC O CEE existia desde 1947 e tinha linhas de trabalho que desenvolvia sistematicamente. Que nova vida é que o vosso trabalho ganha com o projecto de organização do Museu Nacional de Etnologia?

BP O Museu foi um complemento muitíssimo interessante para a actividade de investigação que nós traçávamos no Centro, porque, justamente, a necessidade de organizar sistematicamente as colecções levou a um alargamento significativo do conhecimento sobre a realidade que estávamos a investigar. Eu lembro-me, por exemplo, da importância da primeira exposição que nós fizemos sobre a alfaia agrícola, em 1968, porque ela pôs a descoberto a necessidade de documentar uma série de tecnologias [até então não representadas nas colecções do Museu]. Isso levou-nos novamente para o terreno para fazer recolhas absolutamente criteriosas que completavam as séries sistemáticas que a investigação tinha elucidado.

Uma das bandeiras primaciais do grupo foi a criação de um Museu ancorado na investigação. E isso foi conseguido por um entendimento tácito, porque as pessoas que partilhavam essa esfera de acção actuavam junto das três instituições, isto é, Museu, CEE e CEAC. Portanto, a despeito de não haver nenhuma disposição legal que unificasse essas três unidades, a verdade é que elas estavam perfeitamente integradas por esse espírito unitário. Bom, na verdade, essa ambição da primazia da investigação nos museus era para nós fundamental, sempre em relação com a temática antropológica. E para isso eram precisas ferramentas específicas. Só pessoas com formação científica podiam cumprir devidamente o seu papel. Ora bem, isto revelou-se sempre para nós de uma importância capital. Isto foi um dos pilares defendidos pelo grupo.

O grupo defendeu acerrimamente dois pilares: um, este do cientismo, e o outro foi o do universalismo. Na verdade, a Junta de Investigação do Ultramar [JIU], organismo que tutelava o Museu, queria apenas um museu virado para o território ultramarino. E o que é fantástico é que apesar dessa intenção vigorosamente assumida, o Museu, ou antes o grupo que lhe deu corpo, conseguiu romper sempre, sempre, essas condicionantes, e afirmá-lo justamente nesse plano universalizante. E por isso o Museu reuniu nesse tempo heróico as colecções de etnografia [portuguesa] mais sistemáticas que existem no país [a par de colecções representativas de grupos das antigas colónias ultramarinas, mas também de outros contextos culturais]. Portanto, a despeito dessa intenção limitativa da jiu, o Museu conseguiu sempre cumprir os objectivos que o animavam profundamente, esse universalismo e esse cientismo.

 

CLÁUDIA JORGE FREIRE Quando iam para o terreno à procura de testemunhos que constituíam lacunas nas colecções, que documentação traziam associada a esses testemunhos?

BP Em geral, havia um âmbito mais ou menos definido que importava trazer esclarecido. A verdade é que quando íamos para o terreno havia conjunturas variadas: havia a situação de ir para o terreno de olhos e ouvidos abertos, sem qualquer parti pris, sem qualquer indicativo do caminho a seguir, e portanto era nesse confronto com a realidade que as questões se iam formulando e que as respostas se iam estabelecendo. Depois, havia já situações em que se partia para o terreno com determinados objectivos. Isto é, o conhecimento de uma determinada realidade social encerrava quistos de obscuridade que era preciso esclarecer e então a investigação incidia exclusivamente sobre esses núcleos obscuros. Preocupavam-nos mais os aspectos gerais, tipológicos, sem dúvida… De certa maneira nós tínhamos consciência de que era uma antropologia de urgência, que as coisas estavam a desaparecer, com uma velocidade… duas décadas bastaram para que essa mutação se realizasse de um modo quase radical.

CJF Quando constituíram as colecções do Museu centraram-se, em grande medida, no mundo rural e nas actividades agro-marítimas…

BP Bem vês, o tempo foi curto… Eram escolhas que o Centro fazia. Essas escolhas incorporaram determinados itens e, à medida que se desenvolvia a investigação preferencial sobre alguns deles, íamos incorporando novas informações sobre outros aspectos, que por seu turno ganhavam novo corpo e se apresentavam como elementos primaciais.

CJF Benjamim, dada a actualidade da questão, não posso deixar de lhe perguntar o que pensa da notícia publicada hoje no Público[4] sobre a transferência das colecções do Museu de Arte Popular [map] para o Museu Nacional de Etnologia [MNE].

BP Na verdade, o map coloca questões muito sérias. Porque não me parece banal essa integração. Até porque o MNE seguiu percursos muitíssimo definidos: as suas colecções, sobretudo de etnografia portuguesa, foram construídas com critérios metodológicos e científicos apropriados, nomeadamente toda a alfaia agrícola. Todo esse panorama que o MNE recolhe sobre a alfaia agrícola tem consigo uma coerência, uma preocupação de documentação, uma diversidade regional…

Estou a pensar por exemplo na representação dos carros de bois. Essas escolhas que foram feitas pelo MNE repousaram num conhecimento científico desse fenómeno. E uma das grandes preocupações de então, durante muito tempo, era sentir que esses elementos estavam a desaparecer do cenário e não havia condições materiais para assegurar a sua continuidade. E, como sempre, foi apanágio daquele grupo que deu corpo e alma ao Museu de Etnologia [me] procurar por todos os meios superar essa dificuldade. E foi assim que conseguimos, junto do Instituto do Livro, um subsídio com o qual pudemos fazer a recolha da colecção dos carros de bois. Portanto, o carro de bois está perfeitamente identificado nas suas linhas fundamentais, nas suas variantes regionais mais significativas.

É evidente que a colecção do map pode, sobretudo em relação ao churrião, trazer um elemento de uma componente qualitativa significativa, porque de facto o churrião que nós encontrámos para representar esse elemento na colecção do MNE não tem nada que ver com um dos churriões que o map integrava nas suas colecções.[5] É uma peça notabilíssima! Um churrião com rodado de eixo móvel, rodas de miúlo e cambas: portanto um modelo perfeitamente na linha mais arcaica do carro de bois em Portugal. Evidentemente, para lá dessa condição explícita de uma tipologia arcaica, ele reveste-se ainda de outros elementos muito importantes, que é a qualidade da feitura do próprio carro, perfeitamente na linha artesanal dos abegões que integravam os montes importantes do ­Alentejo. Portanto, isto para dizer que, por exemplo no caso da representação do carro de bois, o churrião que veio do map valoriza significativamente a colecção que o MNE já possui.

Por exemplo: os instrumentos musicais. Nós tivemos o apoio da Fundação Calouste Gulbenkian, que patrocinou e apoiou o projecto de recolha, muito representativa de todo o país. A gaita-de-foles trasmontana está representada na colecção que hoje está no MNE. Trouxemos duas gaitas-de-foles muitíssimo interessantes: uma do gaiteiro de Ifanes, feita por um artesão local, ainda com as marcas de uma decoração típica mirandesa; e outra feita pelo Manuel Sampedro, de Travanca, Mogadouro, que é uma peça de uma rusticidade… O Manuel Sampedro era um filósofo! Ele construía também altares e dizia que para fazer altares não podia beber vinho; para construir a gaita-de-foles era preciso beber muito, e estar já perfeitamente embriagado, para dominar os segredos da feitura e da execução de uma gaita-de-foles. Portanto, na colecção do MNE essas duas peças são muito expressivas e representativas. Mas no map está uma gaita-de-foles notabilíssima,[6] de um velho gaiteiro mirandês, que é absolutamente excepcional pela qualidade do instrumento e, sobretudo, pelas marcas que o uso do gaiteiro, no ponteiro, imprimiu no instrumento. O desgaste dos dedos na madeira é uma coisa absolutamente impressionante!

Estou a pensar, por exemplo, na contribuição do map no domínio do mobiliário. Aí estão consignadas formas de mobiliário extremamente importantes e qualificadas. Por exemplo, no domínio da pintura popular: praticamente, no MNE, esse capítulo é de uma extrema pobreza, e as colecções do map vêm valorizar, definitivamente, essa faceta.

Portanto, é preciso pensar que as colecções do map têm que ser submetidas a uma análise muito minuciosa que avaliará a sua qualidade expressiva como testemunho cultural perfeitamente legítimo da cultura portuguesa.

Enfim, eu acho que é um desafio que se coloca e que me parece extremamente sugestivo, que até eu gostaria, se estivesse noutro tempo, de partilhar.

PFC Mas tem pena que se perca como “Museu de Arte Popular”?

BP Tenho pena que se perca como instituição que, através de um diploma,[7] beneficiou da sua associação ao MNE.

CJF Conte-nos qual era a proposta subjacente à criação do Instituto-Museu Nacional de Etnologia [i-MNE], que englobava o me, o map e as colecções etnográficas do Museu Nacional de Arqueologia [mna].

BP Na altura houve um entendimento muito grande entre as direcções do Museu de Arte Popular e do Museu de Etnologia para a fusão, em torno do ME, das colecções etnográficas do mna e do map. Isto é, as colecções etnográficas do Museu de Arqueologia transitavam para o Museu de Etnologia; o map mantinha a sua presença e sofria uma revisão de fundo. Portanto, nessa revisão, o map exprimiria uma face sintética da personalidade cultural do país. Esse objectivo era para nós de um fascínio poderoso, porque teríamos, pela primeira vez, a possibilidade de realizar museologicamente um discurso com a devida coerência expressiva daquilo que eram as marcas mais interessantes da personalidade cultural do país. Por outro lado, as condições do map, que seria sujeito a outra designação, permitiriam ao MNE ter nele uma espécie de montra, que remeteria o público mais interessado para a visita ao MNE e às suas exposições temporárias. Claro que as colecções do MNE permitiriam também uma reformulação do capital que o map continha, de modo a dar-lhe outra profundidade e outra expressão de verdade mais consequente. Este era, em suma, o projecto do i-MNE. Claro que este projecto foi publicado em Diário da República, mas não foi executado.

PFC Entre 1963 e 1972 conseguem recolher cerca de 20.000 peças para o MNE, parte significativa das suas colecções. Como o conseguiram?

BP Éramos cinco. Conseguimos por essa razão que já tenho acentuado: por um grupo que era um corpo. Não queiram indagar da especificidade que coube a cada um dos elementos neste concerto. O que se pode acentuar é que estas cinco figuras que compõem o grupo do Jorge Dias eram personalidades um bocadinho excepcionais, pronto! A verdade é que, no conjunto deste grupo, se destacaram duas pessoas no campo da recolha: foi o Ernesto e o Benjamim, por razões que resultaram até da circunstância de vivermos juntos, de termos possibilidade de adiantar dinheiro do nosso bolso, porque nunca tivemos orçamento, a não ser em casos excepcionais. Foi fácil, claro, porque nós tínhamos uma fé e uma tenacidade absolutamente indestrutível. Foi isso que fez o triunfo daquela casa. Era isso, era uma confiança, uma convicção…

PFC Mas também uma enorme capacidade de trabalho…

BP Nós vivíamos os três – o Fernando, o Ernesto e eu – na mesma casa, e ao lado a Margot e o Jorge Dias. Trabalhávamos juntos, mas era rara a noite em que não nos reuníamos. E era uma possibilidade de acção, de uma consistência, de uma perseverança… Quando havia um problema, até que esse problema fosse resolvido não se deitava para trás das costas. Procurava-se a sua resolução implacavelmente! Durante anos e anos, eu, que gostava tanto de cinema, não via um filme. Não havia tempo! Sábados e domingos não havia. Era um trabalho, um trabalho que era uma alegria! Não se pode descrever esse entusiasmo! Por exemplo, grande parte daquela colecção do sargaço foi reunida num ano que passávamos férias na Barca do Lago e aquela jangada enorme foi transportada no [meu Citroën] 2 Cavalos. Acampávamos muitas vezes quando percorríamos o país. Fazíamos umas sopas Knorr e assim, para comer. É uma história que não tem conta a riqueza dos seus meandros! O trabalho de campo nos Açores foi fascinante! Eu recordo que, em dado passo, inquirimos um grupo de homens que iam para mariscar, e logo nós perguntámos sobre várias coisas, e nomeadamente sobre sistemas de farinação. E um deles disse: “Eu tenho um lá em casa.” E fomos lá ver esse moinho manual de cereal, que ele usava agora para moer tabaco. Perguntámos se podíamos adquirir o moinho para as colecções do Museu, e o proprietário concordou imediatamente, mas apesar da nossa insistência, não o quis vender: “Quanto é?”; “Não é nada!”; “Não, não. Não pode ser. Quanto é?”; “Não é nada!” Em dado passo, ele diz: “Os senhores levam, os senhores estão a trabalhar para nós todos!” Vejam que consciência do testemunho cultural!

 E o Benjamim fotografava, registava em filme os contextos desses testemunhos que recolhiam… O objectivo era museológico, já na perspectiva de mostrar numa exposição… Ou era numa perspectiva de pura investigação?

BP Era uma complementaridade essencial, porque, para a investigação, o filme não tinha tanta relevância. A fotografia cumpria perfeitamente o objectivo. Agora, numa perspectiva museológica, o filme era essencial, porque introduzia esse elemento dinâmico que dá ao facto em análise uma possibilidade de recriação total.

CJF E o projecto desenvolvido com o Institut für den Wissenschaftlichen Film de Göttingen?

BP Foram 14 filmes feitos em 20 dias. Alguns filmes falharam alguns aspectos. Eu fiz uma crítica bastante severa, porque na olaria [de Malhada Sorda] eles não filmaram o quadro da aldeia, porque o bairro dos oleiros era perfeitamente isolado da aldeia, numa crista erodida, esquelética, despojada de terra. O barro era extraído pelas mulheres e era uma operação muito penosa, e eles não filmaram. Por exemplo, em Celorico, na malha de Tecla, eles não filmaram a aldeia, e nós gostávamos de ter um registo da morfologia dos campos, das casas cobertas de colmo. Era importante filmar esses aspectos, porque, no processo de selecção das palhas, umas eram para os animais e outras eram para a cobertura das casas. Mas de qualquer modo foi um trabalho muito interessante.

PFC E o seu filme sobre o linho foi feito antes ou depois desse trabalho com Göttingen?

BP Foi depois. Quando eles chegaram eu decidi nunca mais pegar numa máquina, porque percebi o que era um trabalho de profissional, mas depois, quando fomos participar na montagem e vimos o resultado final, eu voltei a pegar na máquina.

CJF Nos últimos anos, o Benjamim tem tido um papel importantíssimo junto de alguns museus do país na promoção do filme, em conjunto com a Catarina Alves Costa e a Catarina Mourão. Primeiro, no Museu do Abade de Baçal, na exposição das máscaras, depois no Museu de Francisco Tavares Proença Júnior e, mais recentemente, no Museu da Luz.

 Bem vês, como eu referi há pouco, essa componente é para mim decisiva, porque nada, nada alcança a explicitação discursiva que o filme consente. Por isso, para mim é óbvio que, tendo esse recurso perfeitamente ao nosso alcance, ele seja utilizado. Eu tenho muita pena que esse método não se generalize de uma forma muito mais ampla. Não se pode mais aceitar essa indigência de métodos que continuam a proliferar de uma forma insensata.

PFC Em 1971, o Dr. Ernesto publica um trabalho fundamental – os Apontamentos sobre Museologia: Museus Etnológicos, que o Benjamim ajudou a preparar. Existe uma museologia especificamente etnológica?

BP Eu acho que cada disciplina científica tem o seu âmbito específico. Sem um corpo de trabalhadores com formação antropológica, o trabalho museológico propriamente dito irá revelar carências, não sendo possível uma abordagem especializada dos temas em questão. Em todo o sentido, deve haver uma especialização no campo museológico naquilo que concerne à disciplina antropológica, indiscutivelmente.

PFC Os museus de etnologia estão condenados a ser museus históricos?

BP A dinâmica cultural exige um tempo de auscultação. Temos que deixar [passar] tempo e vai ser esse tempo que vai permitir estabelecer noções criteriosas, selectivas. Isto é, o pulsar da sociedade vai deixar as marcas impressivas susceptíveis de serem captadas e reelaboradas como formas explicativas desse pulsar social. Nós acabámos de dar um passo gigantesco de uma técnica [arcaica] para uma tecnologia industrial, não há ainda recuo suficiente para reter as marcas distintivas desta nova mudança. Isso não me inquieta e estou seguro de que os museus de etnologia continuarão a ter um campo fecundo para a sua actividade, simplesmente lidando com novas realidades.

PFC Como seriam a antropologia e a museologia hoje em Portugal se não tivesse existido o vosso grupo?

BP O facto de termos cumprido este percurso é um dado categórico, cumpriu-se! Isto é, havia um vazio e nós cumpríamos esse vazio, mas eu não posso agora especular sobre aquilo que teria acontecido se o nosso grupo não tivesse entrado em cena.

PFC Reformulando a questão: o vosso grupo entrou em cena, ajudou a constituir a antropologia em Portugal e abriu novos rumos para a museologia. Como avalia a presente relação entre a academia e os museus de etnografia?

BP Acho que tem sido uma relação de costas voltadas. Isto é, eu creio que, indubitavelmente, nós elevámos essa problemática a uma plataforma interessante e suficientemente elevada. E era de esperar que, com o desenvolvimento que se revelou no país, sobretudo nos últimos anos do século xx, a antropologia, através das suas cátedras diversas, estabelecesse laços mais íntimos com os museus e vice-versa. Ora, isso não aconteceu e não acontece ainda. E é lamentável porque, como nós o entendíamos, o museu era um prolongamento do terreno. Que interes­sante seria projectar no museu os reflexos mais fundos da investigação da antropologia no terreno nacional. Porque eu continuo a desejar que a antropologia, para lá de outras inquietações, não deixe nunca perder de vista o país que a sustenta.

PFC Depois de se reformar, em finais de 1993, regressou a Montedor mas não parou…

BP A minha vivência no Museu incutiu-me uma consciência que me levou, a despeito de já lá não estar, a agir como se estivesse. Porque em tudo aquilo que eu fiz repercutia um sentimento que se havia formulado ao longo daqueles anos de vivência com o grupo.

CJF E no Museu da Luz? Conte-nos lá essa aventura que demorou alguns anos e que foi vivida com tanta intensidade e envolvimento.

BP Sabes, a palavra amor tem sentido. Foi um trabalho amoroso. Isto é, eu não estava muito motivado para a participação naquele trabalho. Mas lembro-me que a decisão foi imediata, a partir do primeiro contacto com os arquitectos. E depois a pequenina equipa que se formou favorecia também esse estado de espírito geral que acompanhou todo o percurso de trabalho.

Claro que desde logo para mim se revelou de primordial importância o levantamento fílmico, que iria consentir a preservação de memórias, de situações que inexoravelmente se iriam apagar com a subida das águas.

Por outro lado, o diálogo com as pessoas era muito fluido, acontecia muito naturalmente e isso foi fantástico. Claro que às vezes eu vinha ao largo, onde os homens estavam sentados, pedir ajuda para a identificação das peças, porque havia peças que eu não conhecia. Foi também o que me animou a introduzir no Museu, na Sala da Memória, aquela mesa para o encontro e discussões. Claro que nem sempre esse diálogo foi concorde com os objectivos que eu defendia. Por exemplo, não conseguimos convencer uma família a ceder alguns objectos, porque ela preferiu tê-los como forma decorativa do jardim, nomeadamente um trilho, arados, etc. Podem imaginar o que isso representou para nós: saber que aquele testemunho iria desaparecer porque não poderia resistir às intempéries…

Na verdade, eu nunca tinha feito uma abordagem daquela natureza, trabalhei sempre no MNE numa perspectiva geral e, de repente, tive ali de usar um método microscópico…

 

◊◊◊

 

Este texto resulta de uma série de conversas realizadas entre 9 e 11 de Julho de 2009 em Montedor, Viana do Castelo, na casa onde Benjamim Pereira nasceu, no dia de Natal de 1928. Para aqui regressou depois de aposentado do Museu Nacional de Etnologia, e desde então Montedor tem sido não tanto o local do repouso do guerreiro, mas antes a sua nova base de ataque para as muitas frentes em que tem estado intimamente envolvido desde Dezembro de 1993.

Para além da sua permanente colaboração com o Museu Nacional de Etnologia, até 2000, em particular assegurando a realização das exposições Escultura Angolana: Memorial de Culturas (1994), O Voo do Arado (1996) e Instrumentos Musicais Populares Portugueses (2000) e a organização das Galerias da Vida Rural (2000), as primeiras reservas visitáveis do Museu, contam-se muitos projectos desenvolvidos de norte a sul do país.

Deverão ser destacados o Centro Cultural Raiano (1997) e, muito particularmente, entre outras razões pelo papel que tem já cumprido, o Museu da Luz (2003). Mas a marca identificadora do seu trabalho encontra-se igualmente no Museu Regional de Paredes de Coura, no Museu Rural de Boticas, no Museu do Canteiro e, no âmbito de uma colaboração continuada, no Museu do Traje de Viana do Castelo e nos respectivos núcleos museológicos. São estes exemplos de uma intensa actividade de coordenação ou colaboração em exposições – como as exposições realizadas em homenagem a Marie-Louise Bastin (1999) e a Fernando Galhano (2004) –, reorganização de museus, investigação, constituição e documentação de colecções no terreno. Expressão da sua pronta disponibilidade para colaboração em projectos de valorização do património local é ainda a exposição Memórias e Saberes de Lagares da Beira, Século XX, realizada pela respectiva Junta de Freguesia em 2006.

No âmbito da sua colaboração com o Instituto dos Museus e da Conservação neste período, deverá ser referido, em primeiro lugar, o apoio à Rede Portuguesa de Museus, através do acompanhamento de visitas técnicas, sobretudo a museus com colecções etnográficas. No Museu de Francisco Tavares Proença Júnior organizou, em 2003, o sector da exposição permanente dedicado às tecnologias têxteis tradicionais, a partir de trabalho no terreno, e no âmbito do qual foram realizados os filmes O Linho é um Sonho e A Seda é um Mistério, de que assegurou a orientação científica. Resultando de um projecto desenvolvido no terreno entre 1999 e 2001, realizou a exposição Rituais de Inverno com Máscaras (2006) no Museu do Abade de Baçal, depois apresentada no Museu Nacional de Soares dos Reis, no âmbito do qual foi produzido o filme homónimo, que também orientou.

Paralelamente, a sua actividade científica exprime-se em diversas publicações,[8] sendo de destacar a obra Tecnologia Tradicional do Azeite em Portugal (1998), como expressão parcial da continuidade das linhas de trabalho lançadas pelo Centro de Estudos de Etnologia, e a colaboração no livro Uma Imagem da Nação: Traje à Vianesa, publicado em Maio de 2009.

Dos muitos planos em que se tem desenvolvido o trabalho de Benjamim Pereira, muitos foram também os que, tendo sido abordados ao longo dos três dias em que decorreu esta entrevista, não foram incluídos no texto final. Alguns dos mais evidentes são o seu papel no estudo e divulgação da escultura africana em Portugal, a sua visão e experiência de vanguarda, aqui apenas aflorados, quanto ao uso dos meios audiovisuais em contexto museológico, como metodologia de investigação e documentação e como recurso museográfico, mas também as suas experiências concretas e muito diversificadas nos inúmeros projectos museológicos que tem desenvolvido pelo país.

 

 

NOTAS

[1]      A publicação desta entrevista na Etnográfica resulta de uma colaboração com a revista  editada pelo Instituto dos Museus e da Conservação, Portugal (cf. Museologia.pt, 3: 106-114, 2009).

[2]      Publicadas em 2008 com apresentação de João Leal (“A energia da antropologia: seis cartas de Jorge Dias para Ernesto Veiga de Oliveira”), Etnográfica, 12 (2): 501-521.        [ Links ]

[3]      Bibliografia Analítica de Etnografia Portuguesa, que veio a ser publicada pelo CEE e pelo IAC em 1965.

[4]      Ana Machado, “O Museu de Arte Popular mudou de casa”, Jornal Público, 9 / 07 / 2009, pp. 1, 6-7.

[5]      Vd. Fernando Galhano, O Carro de Bois em Portugal, Lisboa, Instituto de Alta Cultura, Centro de Estudos de Etnologia, 1971, p. 119.

[6]      Vd. Benjamim Pereira (coord.), Rituais de Inverno com Máscaras, Bragança, Museu do Abade de Baçal, 2006, p. 169.

[7]      Decreto-Lei n.º 535 / 79, de 31 de Dezembro.

[8]      O trajecto de Benjamim Pereira é incompreensível sem o conhecimento integral da bibliografia que produziu no âmbito do Centro de Estudos de Etnologia e do Museu Nacional de Etnologia, sendo essencial a consulta do n.º 6 de Recherches en Anthropologie au Portugal: Revue Annuelle du Groupe Anthropologie au Portugal, coordenado por Fabienne Wateau, que lhe foi inteiramente dedicado em 2000.

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