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Etnográfica

Print version ISSN 0873-6561

Etnográfica vol.15 no.1 Lisboa Feb. 2011

 

Claire Auzias (Socius-UTL)

 

Obra recenseada: Maria José Casa-Nova, Etnografia e Produção de Conhecimento: Reflexões Críticas a partir de Uma Investigação com Ciganos Portugueses, Lisboa, ACIDI, 2009, 224 páginas.

 

Esta obra de Maria José Casa-Nova representa a primeira parte da sua tese de doutoramento em antropologia social, onde a autora cruza uma sociologia e uma antropologia da educação e da cultura.

A autora é professora de sociologia da educação e de imigração, minorias e interculturalidade no Departamento de Ciências Sociais da Educação do Instituto de Educação da Universidade do Minho, tendo já vários trabalhos publicados (livros, capítulos de livro, artigos) nos domínios da etnicidade, género, educação intercultural e políticas sociais.

Este livro repousa sobre uma investigação de terreno desenvolvida durante dois anos junto de uma comunidade cigana residente num bairro social inserido na periferia da cidade do Porto, mas as reflexões que realiza são também elas devedoras de quase vinte anos de investigação com o “grupo sociocultural” cigano, expressão que a autora usa para designar a população com quem trabalha.

Esta obra é constituída por duas partes ou por duas grandes temáticas. A primeira parte constitui-se num manual pedagógico e académico de sociologia e de antropologia, onde a autora desenvolve uma reflexão aprofundada sobre a metodologia da prática de terreno, a sua deontologia e teorização na matéria, a saber, a relação entre o autor e o seu terreno – em ciências humanas, precisamente os humanos.

É para aqui que aponta o subtítulo do seu livro, quando refere “investigação com ciganos portugueses”: com e não sobre. Isto indica a direção da investigação sobre a articulação e a relação com os interessados, considerados como parceiros do trabalho, como participantes e atores da sua existência, em oposição a toda a instrumentalização: “em que medida a difusão dos resultados pode prejudicar ou beneficiar a comunidade estudada” é uma das interrogações que a investigadora submete à nossa apreciação (p. 86). Preocupada com o uso não controlado pelo investigador do conhecimento produzido, nas palavras da autora, “procurei filtrar a investigação no que concerne a determinados contextos e processos de reprodução e produção cultural ciganos, mesmo com o risco inerente de ocultação de dados que permitiriam uma maior compreensão desses mesmos contextos e processos” (p. 87).

A dialética sujeito-investigador / sujeito-investigado é um tema clássico na antropologia, sobre o qual uma grande parte dos grandes autores se pronunciou, e é agora mais utilizado em sociologia, durante muito tempo presa à objetivação e distanciação em relação aos seus objetos de estudo.

Duas grandes referências sociológicas da autora são Daniel Bertaux, que consagrou o seu contributo à sociologia através das histórias de vida e a Escola de Chicago, em França; mas é igualmente Pierre Bourdieu, que nasceu para a sociologia participante e subjetiva (cf. La Misère du Monde) demasiado tarde na sua carreira, depois de defender durante décadas a arte da objetivação (cf. Le Métier de Sociologue), da distância e da exterioridade em relação às suas observações.

Maria José Casa-Nova utiliza com muita destreza a sociologia de Pierre Bourdieu, criando mesmo os seus próprios conceitos: de habitus étnico, por referência ao habitus social de Bourdieu, e de “lugares de etnia”, este último para evidenciar as diferenciações intraétnicas, dentro do que designa por habituscomposto. Como refere a autora: “Estes dois tipos de habitus (simples e composto) condicionam tanto as relações interétnicas como as relações intraétnicas, apresentando-se o que se denomina de lugares de etnia como capazes de representar a grande heterogeneidade do habitus étnico. […] Assim sendo, o habitus étnico não se apresenta como inalterável de práticas e representações, mas antes como condições socioculturais individual e / ou grupalmente reconfiguradas (lugares de etnia) dentro dos quais se dá uma grande variabilidade de configurações inter e intragrupais […]” (p. 192). Podemos discutir a necessidade de criação destes conceitos, a juntar aos já existentes na sociologia e na etnologia, mas é uma escolha da autora, uma escolha que é explicitada e fundamentada e sobre a qual a investigadora dá os seus próprios contributos.

Um terreno de observação é composto por sujeitos com os quais o outro sujeito dialoga e que modifica, sem por isso se inibir a concetualização, a explicação, mesmo a crítica e a sua própria dissonância: a relação de sujeito a sujeito não implica mais em etnologia uma submissão a esta “produção de subjetividades”, para recuperar o conceito caro a Deleuze e Guattari.

A introdução e esta primeira parte são, portanto, consagradas às questões metodológicas e teóricas.

A segunda parte desta obra, ou melhor, o segundo objeto desta obra é a restituição analisada do terreno em si: a perspetiva de Maria José Casa-Nova está imbuída dos conhecimentos anteriormente produzidos sobre a “questão cigana”, mas a sua fineza intelectual sobre certos aspetos aprofunda bastante algumas das dimensões habitualmente tratadas mais grosseiramente.

A autora estudou 55 agregados familiares nucleares, totalizando cerca de 190 indivíduos entre os 4 meses e os 86 anos, dos quais apenas 11 têm mais de 50 anos. Todo o restante grupo é maciçamente jovem, com uma média de filhos por casal que varia em função da faixa etária: 7 filhos nos casais nas faixas etárias dos 55-65 e 66-70; 5 nos casais na faixa etária 45-54; e 2,6 nos casais entre os 35 e os 44 anos (p. 37).

A estrutura das famílias ciganas deu lugar a vastas discussões entre os especialistas. Aqui, a autora escolheu, como a antropóloga americana pioneira neste domínio, Anne Sutherland, o desenho do gráfico demográfico de cada família, o que oferece um quadro visível desta configuração particular.

Uma parte notável da obra debruça-se sobre dimensões usuais em ciganologia da família, com uma descrição precisa das famílias estudadas. Os casamentos endogâmicos, os casamentos exogâmicos, a parentela, os casamentos mistos, a adoção de uma criança não cigana, as condições para uma entrada plena de novos membros não ciganos na comunidade (por absorção completa), a regra do casamento ideal (com primos em primeiro grau) – todos este pontos são minuciosamente tratados (a partir da p. 125).

No cerne das estratégias familiares encontra-se a virgindade da prometida, uma obsessão sobre a qual repousa a honra da comunidade inteira e que determina o grau de firmeza da cultura do grupo. Sobre esta dimensão, Maria José Casa-Nova faz prova de uma dialética interessante entre as formas e a circulação da dominação das mulheres pelos homens e, por outro lado, uma modalidade de resistência das mulheres expressa de forma oculta. Trata-se de uma análise largamente utilizada no que diz respeito, entre outras, às sociedades magrebinas, mas à qual a autora acrescenta uma análise de dialética pessoal mais subtil e complexa do que as habituais apresentações desta repartição de poderes: a autora considera que de modo algum um poder doméstico (feminino) significa a ausência de poder público entre homens e mulheres (p. 152 e segs.), criando dois novos conceitos, particularmente interessantes para explicitar e compreender a complexidade e dialeticidade de poder existente entre os homens e as mulheres ciganas – os conceitos de dominação subordinada e de subordinação subordinante, eles próprios, como refere a autora, aplicáveis a outros domínios, a outras esferas da vida social.

Entre os contributos inovadores da investigação de Maria José Casa-Nova, é de assinalar a sua atenção às reconfigurações dentro da cultura cigana, quer dizer, a historicidade dos processos em jogo, debaixo da tradição que cobre o rosto do seu véu identitário.

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