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Etnográfica

versão impressa ISSN 0873-6561

Etnográfica v.15 n.3 Lisboa jun. 2011

 

Tornar-se “noia”: trajetória e sofrimento social nos “usos de crack” no centro de São Paulo

Bruno Ramos Gomes* e Rubens de Camargo Ferreira Adorno*

*Programa de Pós-Graduação em Saúde Pública da Universidade de São Paulo, Brasil; brunoramosg@uol.com.br

**Programa de Pós-Graduação em Saúde Pública da Universidade de São Paulo, Laboratório Interdisciplinar de Pesquisa Social em Saúde Pública, Brasil; radorno@usp.br

 

RESUMO

Este texto reflete sobre as trajetórias de sujeitos, das mais diversas idades, que passaram a ocupar regiões específicas do centro histórico da cidade de São Paulo, no Brasil, em torno do uso do crack. A partir da observação etnográfica feita nos últimos cinco anos na “Cracolândia” e dos relatos de algumas destas pessoas em situação de rua que fazem intenso uso de crack, buscamos compreender as trajetórias dos usuários até “tornar-se noia” e os agenciamentos que utilizam para a manutenção e sobrevivência cotidiana nos espaços de uso e para lidar com o sofrimento social decorrente dessa condição.

PALAVRAS-CHAVE: territórios, crack, trajetória, sofrimento social, redução de danos.

 

Becoming “noia”: trajectory and social suffering in the “uses of crack” in the city centre of São Paulo

ABSTRACT

This text reflects on the trajectories of subjects of different ages who have come to occupy specific areas of the historic city center of São Paulo, in Brazil, around the use of crack. From the ethnographic observation made in the last five years in “Cracolândia” and from reports of some of these homeless people who make heavy use of crack, we intend to understand the trajectories of users in the process of “becoming noia” and the agency devices they use in their daily life seeking preservation and survival in the places where drug use occurs, and dealing with the social suffering resulting from this condition.

KEYWORDS: territories, crack, trajectory, social suffering, harm reduction.

 

O presente trabalho tem origem na experiência de um dos autores, Bruno Ramos Gomes, que, na condição de ator social de uma ONG, conviveu nos últimos cinco anos com usuários de crack na região conhecida como “Cracolândia”, parte do bairro da Luz, no centro de São Paulo, e decidiu aprofundar o estudo do tema em programa de mestrado em Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP), propondo-se exercitar um olhar etno­gráfico.

O estudo dessa região e dos usuários de crack da região central da cidade de São Paulo tem sido alvo de pesquisas realizadas no âmbito do Liesp (Laboratório Interdisciplinar de Pesquisa Social em Saúde) na instituição referida. Esse texto foi produzido a partir de uma experiência de inserção no campo com a contribuição de um olhar etnográfico. Buscou-se a sistematização da experiência de campo que os autores possuíam de visita e abordagem a esse ­território, no qual se produziram dissertações e teses que utilizaram a etnografia no campo da saúde pública, como se encontra apresentado também em outro artigo desse dossiê, que trata do tema das populações em situação de rua.

A partir dessa experiência inicial, os autores fizeram uma revisita ao campo, motivados por recentes investidas policiais que se assemelharam a mobilizações de guerra, com presença de cavalarias, carros blindados e inspeção policial constante durante vários dias. Tais operações não têm conseguido remover os usuários dessa área. A movimentação policial e o esforço de outras áreas do governo municipal – como agentes da assistência social, da saúde e fiscais da vigilância sanitária, funcionários das companhias de energia elétrica, de gás e saneamento – têm exercido pouca influência no controle ou encaminhamento dos “noias” (categoria nativa usada para identificar esses usuários) para tratamento; o que vem ocorrendo é um deslocamento dos usuários dentro da mesma área da cidade, como uma tática de avanço e recuo. Quando estabelecimentos são fechados em uma rua, deslocam-se para algumas quadras adiante, permanecendo na região os estabelecimentos por eles frequentados, como pequenos hoteis, pensões, bares e casas de garotas de programa.

Importante destacar que a relação com as pessoas neste local aconteceu através de idas a campo junto com agentes de redução de danos de uma organização não governamental chamada Centro de Convivência É de Lei.[1] Este serviço mantém um tipo de relação de proximidade com os usuários que não se insere no projeto governamental de requalificação da área, em que participam os outros agentes da prefeitura. O distanciamento do aparato oficial possibilita à ONG um acesso diferenciado aos usuários de crack. Este tipo de acesso e o tipo de diálogo que permite estabelecer com eles serão discutidos mais adiante no texto.

 

A Cracolândia na região central de São Paulo

De acordo com Silva, historicamente se percebe que a região hoje conhecida como Cracolândia é desde o começo do século XX “um espaço de passagem, de possibilidade de acesso a locais mais desejados” (1999: 35). A área da ­Cracolândia encontra-se entre duas estações de trem e a antiga estação ­rodoviária da cidade de São Paulo, tendo em suas redondezas um fluxo grande de pessoas que tomam trens suburbanos, além de hoteis e pensões de baixíssimo custo. O espaço, delimitado por alguns quarteirões perto das estações, se aproxima bastante do que Fernandes e Pinto (2006) chamam de território psicotrópico.

Estes são os lugares em que a vida corre em torno das drogas ilícitas: no caso da pesquisa de Fernandes e Pinto (2006), a heroína e a cocaína e sua vida nas ruas de bairros periféricos da cidade do Porto; neste caso, a cocaína nesta composição particular que possibilita que seja fumada e rapidamente absorvida – o crack. De acordo com esses autores, um território psicotrópico é reconhecido pela função que desempenha, sendo também sedutor para os indivíduos que têm interesses em torno das drogas, sejam eles consumidores ou traficantes, e apresenta regras informais que regem estes estilos de vida, além de comportamentos de defesa frente a estranhos por parte dos que ocupam este espaço. Constitui-se como interstício espacial e ponto final do longo processo de produção e distribuição das drogas.

Nestes bairros periféricos há uma mescla do público e do privado na organização do espaço que é constituído no interstício entre estas duas áreas que ao mesmo tempo se interpenetram: o espaço público é utilizado de forma privada para o consumo de drogas e sua venda, ao mesmo tempo em que o espaço privado das residências se torna público pela constante entrada e saída de usuários para compra e consumo da droga.

Alguns aspectos aproximam o bairro da Luz e a forma como a região é ocupada pelas atividades em torno do crack desta noção de território psicotrópico, enquanto outros os distanciam. A região de nosso estudo, apesar de estar no centro da cidade e de ter sua existência constantemente combatida pelo poder público, também se constitui como um local com regras informais diferentes do resto da cidade em relação ao uso de drogas. Perto de pólos comerciais especializados em diferentes setores, como a rua Santa Ifigênia (pólo comercial de eletro-eletrônicos) ou a rua Guaianazes (pólo de oficinas e venda de peças de motos), a região delimitada pelas ruas Cleveland, Mauá, Nothman, Guaianazes e a avenida Duque de Caxias se constitui como referência importante da venda e consumo de crack, e não só para quem ali habita. Pode-se ali encontrar usuários de drogas das mais diversas classes sociais, originários de diferentes bairros da região metropolitana de São Paulo e nas mais diversas situações: pessoas arrumadas com terno ou roupas de trabalho que passam ali apenas para comprar a droga ou para fumá-la em algum intervalo do trabalho; jovens de classe média ou alta; crianças em situação de rua; catadores de material reciclável.

É interessante também observar que este território se move para as regiões adjacentes, de acordo com as ações de repressão que vai sofrendo: antes das primeiras ações da prefeitura o território chamado de Cracolândia situava-se apenas algumas quadras ao lado. Esse espaço, através dos pequenos hoteis, pensões e bares e do consumo e venda de crack na rua, se constitui como espaço público quase que em toda sua extensão, excetuando-se os quartos de hotel. Grande parte das pessoas que habitam ali passa todo o seu tempo na rua, realizando todas as suas atividades exposta à população em geral, carregando a identidade de usuário nesta exposição. Não existe intimidade, todos estão homogeneizados sob esta identidade. Junto com esta dinâmica peculiar no espaço público se instauram regras de convivência diferentes do resto da cidade.

Desde o início da década de 1990, época também em que começou a incorporação do uso de crack como mais uma atividade no uso do espaço cotidiano da rua ali existente, se tem um movimento de associações comerciais em conjunto com o governo para transformar a região central em local atraente para empreendimentos imobiliários e para a circulação das pessoas de nível socio-econômico elevado. Com a implantação de uma sala de concertos de música clássica, um ateliê, um museu, além da sede da companhia de dança do estado, esse movimento se intensificou desde 2005, como uma das bandeiras da atual gestão política. A partir das atividades em campo neste período e dos relatos colhidos pode-se perceber o sentido que tem estar ali para as pessoas que por motivos diversos se estabeleceram, mesmo que temporariamente, neste espaço.

Apesar de extremamente instável e de constituir-se mais como espaço de trânsito, já que muito geralmente estes usuários não têm uma residência no local e ficam em situação de rua sem uma fonte fixa e formal de renda, pode-se perceber entre eles uma constância na ocupação da região.

Essa persistência em ficar na região, mesmo com as frequentes ações policiais, é conformada por diversas questões sociais e se dá através de ações táticas que lidam com os instrumentos de poder e com os lugares de cada um ali no local. A constante exposição pública e as investidas de todas as instituições para gerir o espaço, a ponto de organizarem verdadeiras intervenções militares, com uso de cavalaria, grandes equipes integradas de áreas tão distintas como a saúde, a assistência social e a companhia de eletricidade, armamento pesado e cobertura midiática criam uma constante tensão no local. No entanto, de alguma forma o grupo de usuários resiste, expondo seus corpos “marcados”, em uma forma de estar no espaço público que os identifica como usuários de crack, ou “noias”, vivendo um cotidiano de precariedade e sofrimento.

A partir do lugar social conferido pelo trabalho na redução de danos, buscou-se interpretar as falas como parte da expressão dessa situação, o usuário exposto e vestido como tal em um lugar público. Busca-se entender aqui esta situação de extrema precariedade e sofrimento levando-se em conta o contexto em que está inserido, compreendendo-a como sofrimento social. Entende-se o sofrimento social como algo resultante de danos infligidos pelas forças sociais na experiência humana (Kleinman, Das e Lock 1996). Dessa forma o sofrimento, numa perspectiva antropológica, seria o efeito da violência que as ordens sociais levam as pessoas a carregar (Kleinman 2000). Isso não supõe uma relação de causa-efeito entre o social e o indivíduo, mas sim que as restrições de possibilidades dadas pelo social conformam as experiências cotidianas das pessoas e que este sofrimento e esta violência são vividos no corpo, na fala e nas relações.

O modo como as forças sociais estão presentes no cotidiano dessas pessoas acaba por restringir as possibilidades de formas de viver as situações de grande sofrimento, constituindo formas de subjetividade. Assim, consideramos a maneira de se apresentarem no espaço público (roupas sujas e rasgadas, corpo sujo e descuidado, o modo de caminhar) como a expressão e o lugar do corpo dos usuários.

Estar na região na figura do agente redutor de danos possibilita uma via de acesso a essas pessoas. No entanto, ao mesmo tempo em que este lugar propicia um diálogo com o usuário, neste contato ele revela apenas uma de suas facetas. Como o redutor é visto pelo usuário na região? A partir disso, de que forma ele se revela?

O redutor de danos da ONG costuma estabelecer uma relação de proximidade com os usuários, tentando evitar conflitos e estimular o autocuidado. Pela sua distribuição de materiais preventivos, como preservativos, piteira para os cachimbos de crack e manteiga de cacau, os usuários sentem-se à vontade para falar sobre seu uso de drogas. A região tem vivido nos últimos anos intensas ações repressivas sobre as pessoas ligadas ao uso de crack, usuários e pequenos traficantes. Assim, os usuários costumam ver os diferentes grupos que trabalham na região de forma polarizada: existem aqueles que estão “do lado deles”, e os que estão “contra eles”, do lado da polícia. O trabalho do redutor não é bem visto pelos policiais, e muitas vezes os redutores sofrem revistas policiais junto aos usuários. Estes geralmente veem os redutores como pessoas que estão do seu lado no conflito. Isso fica aparente nas conversas, que geralmente se iniciam com comentários sobre a tensão do lugar, a intensidade das ações policiais e a dificuldade de se ficar no local. O redutor é percebido também como alguém que está ali para interferir na existência deles, surgindo assim a ideia de cuidado.

Outros serviços, como os dos agentes comunitários de saúde e agentes da assistência social, conseguem uma aceitação diferente por parte dos usuários, que acabam recorrendo a eles para questões pontuais e concretas, como ajuda para ir ao hospital, por exemplo. Estes agentes são vistos como agentes da municipalidade que, na verdade, oferecem pouca acolhida, e muitas vezes passam a ser vistos como mais uma força que intervém para retirá-los do espaço. São vistos como aliados da polícia e em oposição aos usuários. Observa-se um movimento dos agentes de saúde buscando se distanciar das ações policiais para mudar isso, porém a constante pressão da atual gestão municipal para que retirem os usuários dali rapidamente dificulta o acolhimento e aproxima os agentes da polícia, no ponto de vista dos usuários.

Pode-se perceber assim que o contato com as pessoas que ficam na região e que fazem uso de crack se dá de forma particular com a figura do redutor de danos, quando comparada com os outros agentes que frequentam a região. Percebendo o redutor como alguém que está ali para oferecer cuidado e incentivar o autocuidado e que também sofre com as ações repressivas, os usuários costumam sentir-se livres para colocar algumas questões e acionar discursos que não têm com os outros para falar de suas vidas e da situação em que se encontram. Assim, buscou-se reproduzir as falas para os redutores e interpretá-las a partir deste lugar.

 

O que se fala com os redutores

Ao mesmo tempo em que a posição do redutor de danos se mostra como um lugar específico para ter acesso a essas pessoas e seu cotidiano, esse acesso é limitado pelas mesmas questões que o possibilitam. Ao se aproximar oferecendo cuidado, algo “bom”, os assuntos costumam geralmente girar em torno da saúde e da situação de vida. Como forma de falar de saúde e das razões por que não está se cuidando, o usuário em alguns momentos se coloca como vítima da situação, expressando a partir desta relação o que imagina que a população em geral espera de seu sofrimento. Fala de seu cotidiano como se não fosse necessário que agisse para manter esta forma de viver frente a todos os acontecimentos e as necessidades do dia a dia, como comer, dormir ou conseguir dinheiro para fumar, por exemplo. Junto a isso, dá para perceber em alguns momentos o desconforto de alguns ao falar de coisas menos “corretas”, como fazer sexo em troca de dinheiro ou roubar.

Apesar destes limites colocados pelo próprio lugar do pesquisador em campo, este se mostra como um dos que possibilita maior proximidade com o cotidiano dos usuários. Outras possibilidades seriam poder conviver de forma a ser considerado “um deles” ou a inserção no cotidiano dos que comercializam a droga. Ao mesmo tempo, as persistentes ações policiais exigem do grupo que comercializa a droga que esteja em constante mobilidade, dificultando uma inserção neste grupo do tráfico também.

Contrariamente a outras regiões e cidades em que o comércio da droga acontece em um ponto de venda específico, aqui o tráfico fica pulverizado entre as diversas pensões e os diversos quartos de pequenos hotéis da região, e ganha a rua através do pequeno comércio entre os usuários, tornando nebulosa a fronteira que distingue o usuário do traficante. O primeiro relato deste artigo traz alguém que não faz uso de crack, apenas vende-o. Mas o caso de Vejota não é o mais comum: via-se constantemente nas permanentes idas a campo pessoas identificadas como “noias”, muitas vezes sujas e com seu cachimbo, com uma ou duas dezenas de pedras na mão oferecendo-as a possíveis compradores em meio à multidão de usuários. Estes normalmente são vistos, enquanto fumam, em amontoados de mais de cem pessoas nas calçadas da região.

A partir de como os usuários aparecem nas reportagens jornalísticas sobre a região, tem-se a impressão de que todos permanecem ali por estarem reféns do crack, submissos à droga. A noção psiquiátrica de dependência, forma como os especialistas costumam compreender o tipo considerado mais “problemático” de uso de crack, não é suficiente para entender o modo de vida ali, e pode-se perguntar mesmo se seria útil neste caso. No DSM-IV-TR, última versão do catálogo de psicopatologias da Associação Americana de Psiquiatria (APA 2000), são alguns os critérios para que a pessoa seja considerada dependente de alguma substância: continuar o uso apesar de significativos problemas ligados a este; aumento da tolerância, sintomas de abstinência e um comportamento compulsivo de consumo. Por tolerância entende-se a necessidade do aumento da quantidade usada para se obter o efeito desejado. Os sintomas de abstinência consistiriam de mudanças mal-adaptativas no comportamento quando se reduz ou pára o uso, tendo-se muitas vezes que voltar a fazer uso para aliviar estes sintomas. Ao comportamento compulsivo de consumo estão ligados, por sua vez, um uso maior do que o desejado, tentativas frustradas de reduzir ou parar o uso, a utilização de muito tempo para se conseguir a substância, usá-la e recuperar de seus efeitos, o abandono ou a redução de atividades sociais e de trabalho, e a continuidade do uso apesar de o sujeito admitir algum prejuízo relacionado a este.

De forma geral, grande parte dos usuários se encaixa em alguns destes critérios, senão em todos. Porém, esta classificação de dependente não é suficiente para explicar esta forma de uso e a vida em torno dele. Por quê ser um dependente ali, com a intensa repressão policial e a violência que atravessa o cotidiano de diversos ângulos? Porque não fumar o crack a apenas algumas quadras para algum dos lados e assim não sofrer as constantes, tensas e violentas ações policiais? Ao se estabelecer contato com os usuários dessa forma, é possível perceber algumas coisas que podem nos ajudar a entender que há agenciamentos por parte dos usuários e que a trama de sentidos ali é mais complexa do que o efeito de uma substância química sobre um sujeito e seus aspectos psicodinâmicos. Em seus relatos, pode-se perceber a importância da sociabilidade naquele local para as pessoas que, por diversos caminhos, passaram a viver com possibilidades bastante restritas de fazerem escolhas em diversas partes de sua vida social. Foram selecionadas, a partir dos registros das idas a campo com a instituição, três narrativas que expressam formas diferentes de habitar a região.

O primeiro relato é de um vendedor de pedras de crack com um longo histórico de vivência de situações de rua e marginalidade, que não vê tanto sentido em estar ali entre os usuários, mas que se mistura entre eles para poder se proteger da polícia e retirar seu sustento. O segundo é de Oseias, usuário de crack que se porta como “noia”, estando nesta situação há alguns meses, desde que saiu da cadeia.[2] E o terceiro é o de Shirley, usuária de crack que faz programas para sustentar seu dia a dia, tendo o grupo de “noias” como o seu grupo de pertencimento e sociabilidade, na ausência de outras possibilidades.

 

Vender o crack: teria outra forma de se ganhar a vida?

Uma das histórias interessantes de se observar é a de Vejota, por envolver uma trajetória de vida que nos mostra a restrição de possibilidades como um fator importante para sua permanência ali. Quando “criança de rua” foi cuidado por Juca, que atualmente é agente redutor de danos da instituição, por isso se sente bastante à vontade para falar de si.

Quando o encontramos está muito bem arrumado, destoando de todos ao redor, já que em sua maioria os usuários estão com poucas roupas, rasgadas e bem sujas. Com um pequeno brinco brilhante, correntes e pulseiras de prata no pescoço e nos pulsos, um grande relógio e roupas novas, realmente se destaca dos outros. Conta que quer participar da equipe de futebol que está sendo montada pela ONG e que teria outros amigos que jogam bem para participar também. Apesar de ter me conhecido naquele dia, Vejota se sente à vontade com o outro agente redutor e passamos a conversar sobre a situação de rua ali da região, e ele aproveita para contar bastante de si.

Durante a conversa ele explica como ainda está no “movimento”[3] de venda de drogas ali, mas frisa que só porque não tem outra opção. Pessoas que conhece dali até ofereceram a ele empregos, como o de técnico de som, mas não sabia se aceitava por na verdade não conhecer nada dos equipamentos que teria que manejar. Relata que sabe como a vida ali no movimento da droga é arriscada, mas que não sobra outra opção para ganhar dinheiro suficiente para se sustentar. Já foi preso duas vezes, ficando ao todo quatro anos na cadeia. Lá aprendeu a desenhar, e afirma que queria encontrar um trabalho de desenhista industrial, pois faz isso muito bem. Conta como fazia desenhos tão detalhados na cadeia que fazia somente três por mês. Uma vez conseguiu vendê-los, mas depois o comprador descobriu que ele tinha acabado de sair da cadeia e não comprou mais. Sabe que, se continuar no movimento ali, pode acabar preso novamente, e não quer isso. Conta, então, de sua trajetória de vida e das possibilidades que tem de inserção na sociedade a partir dela.

Com certo orgulho, fala que já está na vida de rua há 19 anos, tendo atual­mente 30. Já fez de tudo na rua, e antes de ficar preso “era um noia” como os outros que compram suas pedras de crack. Durante as duas vezes em que ficou dentro da cadeia aprendeu muita coisa ruim, mas lá também aprendeu a desenhar e percebeu que não queria ficar naquela situação pra sempre. Apesar de já ter ficado na rua em uma situação completamente deteriorada e de nesta época fazer um uso intenso de crack, além de provar as diferentes drogas que lhe ofereciam, como remédios, cocaína injetável ou inalantes, afirma não querer mais isso para si. Hoje em dia diz “só usar maconha” (termo brasileiro para a canábis) e ter aprendido que “os químicos fazem mal”. Esta é uma categoria do senso comum no Brasil, em que se diferencia entre drogas menos danosas e mais danosas, sendo as primeiras de origem mais “natural”, como a maconha e o tabaco, por exemplo, e as segundas a cocaína e o crack, entre outras, que seriam mais perigosas e danosas por serem “químicas”, sendo assim mais fortes e difíceis de controlar.

 

As táticas cotidianas frente à polícia

Tendo um histórico de “ex-noia” que decidiu, a partir de sua experiência na cadeia, agenciar de outra forma sua relação com a droga, passando ao estatuto de traficante, vemos no seguinte relato como Vejota toma uma postura ativa no momento da revista policial, passando-se por usuário, uma categoria menos procurada na região do que o traficante. Em conversas com policiais da região, eles relatam como não interessa a busca de usuários, por ser ineficaz na retirada deles do local.[4] Ao mesmo tempo em que a constante exposição dos usuários infunde sofrimento pela anulação de sua intimidade, este lugar protege de outras violências.

Michel de Certeau (2001 [1980]), ao falar sobre o cotidiano, distingue duas “maneiras de fazer” as coisas no dia a dia (caminhar, produzir, falar, cozinhar, etc.): a estratégia e a tática. Os dois termos derivam do contexto militar e se distinguem na forma como aquele que age se relaciona com o meio e com os outros ao redor. Considera-se como estratégia a ação de um sujeito, uma instância de querer e poder, que lhe permitirá isolar e controlar características do ambiente buscando transformá-lo em algo idealizado. Este tipo de gesto cabe muitas vezes a instâncias como uma empresa, o governo, o exército, a prefeitura de uma cidade. Já a tática se caracteriza pela ausência da possibilidade deste isolamento e controle de características do ambiente. A ação acontece no espaço controlado pelo outro, e se aproveita, dessa forma, de momentos especiais, “ocasiões” favoráveis, utilizando as falhas que as conjunturas particulares abrem na vigilância de quem detém o poder no espaço. Segundo De Certeau, “a tática é determinada pela ausência de poder assim como a estratégia é organizada pelo postulado de um poder” (2001 [1980]: 101).

Podemos perceber como Vejota age de forma tática ao comercializar o crack ali na região, lidando com instâncias de poder como a polícia e as ações governamentais. Pode-se entender mesmo a sua escolha de ser traficante de crack na região como uma tática de sobrevivência por não poder encontrar outras perspectivas de ganhar a vida. Ele age na ausência de outras possibilidades e sabe-se um “peixe pequeno”, quer dizer, alguém sem poder dentro do poder paralelo de atividades ilícitas.

Empolgado, comenta sobre as dificuldades de se vender o crack ali. Fala que tanto a polícia quanto os usuários estão resistindo ali na região (esta ação começou de forma intensiva, com grande quantidade de policiais nas ruas por tempo indeterminado), mas acha que os policiais estão demonstrando sinais de cansaço. Mas, mesmo assim, considera a rua ali bem tensa, sendo muito difícil vender o crack e não ser abordado pela polícia. Horas antes foi parado pelos policiais da cavalaria da polícia militar, e nos relata, com detalhes, como agilmente conseguiu se livrar, mesmo com quatro pedras de crack na mão. Estava na Praça Coração de Jesus, a um quarteirão dali e bem no meio do movimento de venda e consumo de crack, com sete pedras de crack e fumando um “baseado” (cigarro de maconha). Vendeu três pedras para um menino em situação de rua, e logo viu que três policiais em cima dos cavalos notaram o movimento e vieram atrás dele. De certa forma vangloriando-se de sua agilidade, explicou como, enquanto passava em frente a um telefone público, colocou as pedras dentro da boca e apagou o baseado. A polícia o parou e parou também o menino. Foi revistado e os policiais acharam apenas o baseado em sua mão. Os policiais ficaram perguntando a ele o que havia vendido ao menino. Inventou que na verdade tinha vindo até ali para comprar um baseado, e que havia comprado aquele baseado do garoto. Os policiais ficaram querendo saber se não estava vendendo pedras. Explicou a eles que trabalhava roubando no farol e que vinha até a região da Cracolândia sem “flagrante” (nada que o incriminasse), só com o dinheiro para comprar o que queria. Rindo, fala como os policiais acreditaram nele e ficaram apenas rindo com a cara dele. Considera que os usuários não têm opção, e que por isso os policiais não vão conseguir tirá-los de lá. No entanto não quer ficar mais muito tempo neste movimento de venda de droga. Sabe que é “peixe pequeno”, não tem muito envolvimento e quer mudar de vida. Já acumulou alguns bens, como televisão, DVD, celular e MP4, e agora poderia ficar ganhando menos dinheiro. Considera-se jovem ainda e quer aos 60 anos ter alguns filhos e ter dado boas condições a eles. No entanto, lamenta mais uma vez que por enquanto tenha que ficar se arriscando neste trabalho ali na região.

O interessante é que, ao mesmo tempo em que dessa forma tática ele arranja meios para se sustentar, as táticas desviacionistas não obedecem às leis oficiais e colaboram para estratificar e criar um funcionamento diferente na região, com suas regras e normas paralelas às oficiais. Estas são conhecidas por um público muito específico: os comerciantes da droga e seus clientes, os usuários.

Além disso, vemos que na sua trajetória Vejota passou por diversas situações de marginalidade, como se estivesse no papel de mais alto status dentre os que já teve: mesmo sendo este ainda um tanto arriscado, o traficante é bem visto e respeitado pelas pessoas à sua volta, além de ter dinheiro para consumir e se sustentar. Tendo sido criado desde criança por instituições que cuidam da população que ocupa as ruas (os “menores abandonados”, o “povo da rua”, os “dependentes de drogas” ou os “moradores de rua”), pode-se perceber que na sua trajetória ele viveu as diversas possibilidades que se apresentam para as pessoas dentro destas instituições.

O redutor de danos que cuidou dele quando criança, Juca, comentou no dia seguinte que nos abrigos e na unidade de internação Vejota sempre se mostrou um garoto esperto e de bom contato pessoal com os educadores. Porém, por ser negro, nunca era escolhido para ser adotado ou “apadrinhado”[5] por alguém que chegava à instituição, e acabou tendo apenas as possibilidades de inserção nas escolas e no mercado de trabalho que em geral se tem a partir dali.

No caso de Vejota é possível perceber a incidência de diversas questões sociais que ajudam a conformar seu lugar como proporcionando poucas possibilidades de ação e de inserção: criança com contatos rompidos com a família; negro; vivência de rua; problemas com drogas; passagens pelo sistema carcerário; pouca escolaridade.

No relato a seguir apresentado vemos também como Oseias, saído há pouco tempo da cadeia e sem família, vive com uma grande restrição de possibilidades, e enquanto isso permanece ali fazendo uso de outras ações táticas para não ser pego pela polícia.

 

Da cadeia para a Cracolândia

Encontramos Oseias na Praça Julio Prestes (a uma quadra do encontro com Vejota), deitado. Enquanto coloca em seu cachimbo a piteira que lhe demos, ele reclama do intenso movimento dos policiais pelas ruas. Explica-nos então que está ali, naquele lugar, para poder fumar em paz: mantém o corpo todo coberto e só deixa uma abertura para acender o cachimbo no lado oposto àquele de onde vêm os carros. Assim, quando os carros de polícia estão se aproximando acham que ele está apenas dormindo e não param ali. Além disso, nos mostra um elástico que deixa preso ao corpo na altura do ombro, por baixo da camiseta esfarrapada que usa, onde prende o cachimbo para escondê-lo de uma eventual revista policial. São táticas utilizadas por ele para poder permanecer ali, de forma a não sofrer com as estratégias utilizadas pela polícia para afastar os usuários do lugar, que consistem normalmente em coerções violentas ou retenção, levando os usuários até a delegacia.

Está na região da Cracolândia há seis meses, desde fevereiro. Passou alguns anos na cadeia e nos mostra suas tatuagens distribuídas por boa parte do corpo, e principalmente uma grande nas costas, com muitas caveiras. Sabe que se a polícia vir estas tatuagens vai saber que saiu da cadeia e vai ficar achando que ele matou policiais, e por isso tem medo do que podem fazer com ele, já que algumas das tatuagens que carrega são características de quem comete este tipo de crime. No entanto, fala que só mata um tipo de gente: estupradores. Apenas este tipo de gente merece morrer, pelo imenso sofrimento que traz às mulheres e sua família. Fazem sofrer muito as mulheres que são filhas, mulheres e até mães das pessoas. Além disso, fazem sofrer muito os pais das vítimas. Por conta de tudo isso, diz que eles que merecem morrer e que não perdoa este tipo de gente.

Mostra-nos uma tatuagem no braço esquerdo com o nome de todos de sua família: pai, mãe, uma irmã e um irmão. Fala que saiu da cadeia, mas que todos de sua família já morreram e realmente não tem para onde ir. Está desde então ali na região, mas em algum momento quer sair dali; considera, porém, que “seis meses é pouco tempo para conseguir construir alguma coisa quando se sai da cadeia”. É interessante perceber como sempre fala do sofrimento do outro, colocando-se como cuidador ou provedor e não entrando em contato com o sofrimento da sua situação.

Ao reclamar da polícia, nos mostra também um pouco do que poderíamos chamar de linha crucial para que alguém seja considerado um “noia”, um usuário descontrolado dependente do crack: a transgressão de alguns valores éticos para se conseguir a droga.

Comenta que a polícia está muito violenta, e reclama que “eles acham que todos que estão ali são noias”, enquanto na verdade “existem pessoas de vários tipos que passam ali para fumar”. Diz que é como gato e rato, os usuários passam o dia inteiro fugindo da polícia e tentando fumar nos momentos em que conseguem se distanciar deles. Pergunto sobre a diferença entre estes tipos de usuários. Ele me conta que pessoas que são mais organizadas e têm dinheiro passam ali para fumar. O “noia”, no entanto, segundo ele, é aquele que fuma descontroladamente, a qualquer custo, fazendo qualquer coisa para conseguir a droga, mas nem todos os usuários dali estão nesta condição.

Conta-nos que sustenta sua forma de viver ali praticando roubo à mão armada nos faróis ou na rua. Pergunto onde consegue a arma, se costuma alugá-la para praticar suas ações. Neste momento tira do bolso um estilete sem lâmina e nos mostra como com aquilo ali finge estar com uma arma na mão. Segundo ele, o que na verdade faz as pessoas passarem seus bens é o pânico que gera sua aproximação agitada e colocando pressão para que as pessoas deem logo o que pediu. Fala isso rindo um pouco. Relata então uma vez em que quase machucou uma mulher ao roubar, mas que ficou aliviado ao perceber que tinha se machucado a si mesmo, e não à sua vítima.

Oseias se coloca como “noia” e está vestido e em um estado que levaria qualquer um olhando de longe a considerá-lo dessa forma. No entanto, busca na sua narrativa se diferenciar dos “noias”, tentando mostrar uma ética em suas ações cotidianas, ao mesmo tempo em que faz uso da figura pública do “noia” enquanto alguém temido pela população em geral para conseguir manter seu cotidiano.

Este relato é rico por nos mostrar a extrema restrição de inserção que este sujeito vive no cotidiano. E um ex-presidiário, com marcas corporais que o identificam como alguém odiado pela principal instância de poder com quem se confronta, a polícia. Segundo ele, fez a tatuagem porque esta era bem vista dentro da cadeia pelos outros, por ser também uma forma de confrontar os carcereiros e policiais. No entanto, ao sair de lá estas marcas têm o efeito contrário, colocando-o sob o risco constante de sofrer violências por parte da polícia. Sem ter família a quem recorrer, acaba por ficar limitado à sociabilidade dos outros usuários. Apesar de ter uma vida restrita a este convívio, tenta se diferenciar do que considera ser um usuário sem controle, no sentido em que mantém alguns parâmetros éticos. Pode-se perceber assim que há uma ­construção de uma hierarquia dentro do próprio grupo que usa crack nas mesmas condições e forma de estar na rua. O “noia” é aquele que está no nível mais baixo, carregando um grande estigma de alguém sem controle e sem limites em sua busca de uso do crack, não sendo confiável nem para os outros usuários. A categoria de “noia”, extremamente estigmatizada, em muitas situações leva o usuário a um exílio, impedindo-o de retornar à sua região de pertencimento, por conta de problemas ali. Quando passam a ser vistos como “noias”, em algum momento são levados a buscar outro espaço.

Frente à vida com possibilidades restritas conformada pelas trajetórias dos que vivem ali, parece que não é apenas o crack que mantém as pessoas na região, ganhando até em alguns momentos um peso secundário nisso. Como diz Phillipe Bourgois, quando as outras relações, como as com a família, por exemplo, estão enfraquecidas ou foram rompidas, a sociabilidade de rua parece mais atraente (Bourgois 1998). Também a narrativa de Oseias mostra como o dispositivo de controle social sobre suas vidas os coloca entre a rua e instituições criminais, o que acaba cronificando esta situação, ao reduzir cada vez mais as possibilidades de inserção na sociedade.

Percebe-se neste relato e no anterior que tanto a figura do “noia” como a do traficante precisam lidar constantemente com as ações policiais. A atividade policial ali na região não visa apenas a repressão de crimes, mas é feita constantemente no intuito de organizar e normatizar a população da região. Os policiais passam dando ordens para que os usuários não fiquem ali. As contínuas batidas policiais e as passagens também constantes das viaturas acontecem para instabilizar a atividade dos usuários, na tentativa de criar um movimento de saída daqueles que não são considerados integrantes normais da sociedade, os usuários de crack em situação de rua. Ao mesmo tempo em que a segurança pública age de forma mais intensa e constante, em seu entorno existem outras forças estatais que têm também o objetivo de retirar e tratar esta população, envolvendo agentes da saúde e da assistência social. No entanto, estes serviços são ao mesmo tempo mal estruturados, com poucos recursos e ineficazes, ou muitas vezes inexistentes.

 

“No fervo com a galera”: sociabilidade entre os “noias” e a restrição de possibilidades

Neste mesmo dia encontramos Shirley, uma usuária conhecida pelos agentes redutores de danos, que frequenta de vez em quando o centro de convivência da instituição. Depois de cumprimentá-la, ela nos conta que está muito mal. Está com infecção pulmonar e com febre já há vários dias, não conseguindo nem fumar. Passou os últimos três dias inteiros dormindo na rua mesmo e acabou de acordar. Está com roupas de frio um pouco sujas e com um cobertor na mão. Diz que junto a tudo isso “sua depressão atacou novamente” e que não tem conseguido ir atrás de se cuidar e também de fazer o que precisa ser feito para conseguir dinheiro para fumar e comer. Pergunto o que ela costuma fazer para ter dinheiro. Fica um pouco desconfortável, mas logo conta que faz programas na região. O redutor oferece camisinhas, mas ela diz que está muito mal, e que realmente não está conseguindo fazer programas ou fumar. Diz que se dá um trago passa minutos tossindo, então nem tem tentado mais.

Lembramos como seria importante tentar não dormir na rua e ir ao hospital para que tratasse a infecção do pulmão. Sabe que seria importante, mas não vê possibilidade de dormir em albergues, por serem longe, lotados, e por ter que sair de lá logo cedo. Além disso, diz que já foi ao hospital ali perto e não deram remédios a ela, dando alta algumas horas depois, decidindo então não tentar novamente. Além disso, conta que o médico deu-lhe um sermão, falando que é mesmo com problemas de saúde como estes que fica quem fuma crack. O redutor se oferece para acompanhá-la novamente, caso queira. Ela diz então que não consegue no momento ir atrás do que precisa por conta de sua “depressão”, e lamentamos com ela sua situação. Despede-se de nós e fala que, enquanto não consegue fazer nada, vai se juntar aos outros, ficar ali “no fervo com a galera”.[6] Perguntamos se seria para fumar, e ela diz que não, que estava indo mesmo só para ficar com as pessoas, pois realmente não estava conseguindo fumar.

Fica clara neste relato a situação precária de saúde que Shirley está vivendo. Está gravemente incapacitada, não conseguindo dar conta de suas atividades diárias para sobreviver e sustentar seu uso de crack e sua rotina. No entanto, fica claro também como as instituições disponibilizadas pelo Estado para lidar com as questões que está vivendo, como o hospital e o albergue, não são vistas por ela como possibilidades concretas. Por conta das ações da prefeitura para a requalificação da região, os albergues estão sendo realocados em bairros distantes do centro da cidade. Além disso, os que ali dormem são obrigados a sair dali logo cedo, ficando em um bairro distante com poucas possibilidades de conseguir dinheiro. Isso significa para ela ter que andar de onde está o albergue até o centro, local onde boa parte da população de rua vive e que é também onde se consegue ganhar dinheiro dos transeuntes mais facilmente. Esses detalhes inviabilizam a ida dela ao serviço de saúde.

Em relação ao serviço de saúde, são constantes os relatos dos usuários de como, quando são identificados como usuários de crack, normalmente não são atendidos, por conta do estigma que carregam. Foi isso que aconteceu a Shirley, e dessa forma acaba tendo que suportar o sofrimento de sua doença ali na rua. Com as possibilidades restritas pela precariedade das políticas públicas voltadas à população em situação de rua e pelo estigma que carrega ao ser identificada como usuária de crack, resta-lhe então ficar junto aos outros na movimentação em torno da venda e do consumo do crack, apesar de não conseguir fumar.

Ao se compreender a aceitação de sua situação e seu estado de saúde, que convive com a precariedade de existência, percebemos que esta condição não é simplesmente o resultado da ação de uma substância sobre um organismo, mas depende também de elementos que dizem do lugar ocupado na sociedade.

 

O lugar como símbolo de classificação e identidade e a produção dos intratáveis

A despeito do intenso movimento do governo para que os usuários de crack não mais fiquem na região, os agentes de saúde, da assistência social e os policiais enfrentam essa resistência no dia a dia. Porém, essa resistência não se dá de forma calculada e organizada. Como diz Carvalho, ao comentar um livro da antropóloga Veena Das, não quer dizer “que há alguém que resiste no cotidiano, pois não há, necessariamente e sempre, este agente da resistência: ao menos não se deve falar de uma resistência calculada; mas de uma existência possível” (2008: 13)

Apesar de ser tida como uma droga da qual, diferentemente da maconha, se faz uso sozinho e que é disruptiva socialmente, percebemos que o crack funciona como elemento importante na sociabilidade destas pessoas, que buscam fumá-la cada um com seu cachimbo, mas identificando-se entre si como “noias”. A falta de perspectiva de inserção em outros contextos fortalece este contexto de sociabilidade como importante para elas. Esta situação, juntamente com as ações governamentais, tem tido como resultado a cronificação destas pessoas neste circuito e lugar. Entende-se que estas pessoas vivem em uma condição de restrição de possibilidades de inserção na sociedade, e pode-se perceber que as ações que teriam como objetivo tirá-los dessa condição acabam por reforçar o estigma ligado ao “noia” e restringir ainda mais as possibilidades de vida destas pessoas.

O “noia”, percebido como aquele que desrespeita as normas sociais e os ­parâmetros éticos em busca da pedra de crack, é visto com desconfiança e não ­consegue estabelecer relações de outra forma com as pessoas. Ao mesmo tempo, percebe-se que, frente a essa grande restrição de possibilidades, os ­usuários identificam-se com o lugar de “noia”, portando-se dessa forma no espaço público e mantendo relações cotidianas com pessoas assim caracterizadas. As “racionalidades” de especialistas e da lei, separando usuários e traficantes, não dão conta desta realidade.

Numa das últimas investidas a campo, no verão de 2010, um especialista apontava, por exemplo, que o papel da polícia seria o de reprimir o tráfico, para acabar com a oferta de crack na região, ao mesmo tempo em que comentava a falta de ações de saúde pública. O que se mostra na prática é a repressão policial aos usuários e também aos agentes de saúde que, na verdade, atuam no mesmo sentido de combater a permanência dos usuários ali, dada a inexistência de estruturas de acolhimento.

É essa forma possível de existência que percebemos nas respostas que dão Shirley e Vejota para agenciar ou simplesmente resolver suas questões para viver seu cotidiano. O relato de Oseias, o segundo usuário com quem conversamos, mostra isso também. Marcado em seu corpo por tatuagens que o definem como alguém saído da cadeia, não consegue vislumbrar outra perspectiva desde que saiu de lá, seis meses antes. Símbolos inscritos no corpo para ganhar um lugar dentro da cadeia, as marcas de ex-detento restringem o seu circuito de sociabilidade ao ganhar a liberdade e a rua. Segundo ele, seis meses é pouco para poder se inserir em outro lugar ou outra ocupação. Não tem mais familiar ou outra rede a que possa recorrer nem para onde ir desde que saiu da cadeia, e fica então na região convivendo com os outros usuários e fumando crack. No entanto, não considera que está no nível mais baixo na hierarquia de uso, mostrando que fuma de forma organizada, protegendo-se da maneira que pode da violência ao redor e não querendo desrespeitar sua própria ética para conseguir sustentar sua forma de vida.

O que seria afinal uma hierarquia de uso, senão uma classificação externa desligada de lugares e contextos? No espaço da Cracolândia fica expressa uma relação entre o lugar social, ou o lugar por onde passaram as trajetórias dos sujeitos apresentados, e o uso de uma droga. Predomina no cenário mais conservador da sociedade a perspectiva da retirada e do internamento compulsório desses usuários. Essa ação busca enquadrá-los como os intratáveis que devem ser submetidos à força ao tratamento psiquiátrico, o que contraria o movimento da reforma psiquiátrica ocorrido no Brasil. Por outro lado, a ação de redução de danos, que é apoiada pelo Ministério da Saúde, necessita de um maior fortalecimento e de maior articulação institucional para poder se legitimar como uma ação de atenção e de garantia de direitos.

O que podemos concluir de nossa inserção na Cracolândia é que, na abordagem de campo, tanto na etnografia como no trabalho da redução de danos, exercemos a intersubjetividade através de uma escuta e do respeito das falas dos “noias”, que por sua vez têm respondido a essas trocas; não seria então o fortalecimento dessas estratégias a condição para retirá-los do lugar de intratáveis?

 

BIBLIOGRAFIA

APA, 2000, Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders: DSM-IV-TR. Arlington, American Psychiatric Association.        [ Links ]

BOURGOIS, Philippe, 1998, “Families and children in pain in the US inner city”, em Nancy Scheper-Hughes e Carolyn Sargent (orgs.), Small Wars: The Cultural Politics of Childhood. Berkeley, University of California Press, pp. 331-351.        [ Links ]

CARVALHO, João Eduardo Coin, 2008, “Violência e sofrimento social: a resistência feminina na obra de Veena Das”, Saúde e Sociedade, 17 (3): 9-18.        [ Links ]

DE CERTEAU, Michel, 2001 [1980], A Invenção do Cotidiano, 1. Artes de Fazer. Petrópolis, Editora Vozes, 6.ª edição.        [ Links ]

FERNANDES, Luis, e Marta PINTO, 2006, El Espacio Urbano como Dispositivo de Control Social: Territorios Psicotrópicos y Políticas de la Ciudad, Monografías Humanitas, disponível em <http://www.fundacionmhm.org/pdf/Mono5/Articulos/articulo10.pdf> (acesso a 17/02/2010).        [ Links ]

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KLEINMAN, Arthur, Veena DAS, e Margareth LOCK (orgs.), 1996, “Introduction”, Daedalus, 125 (1): xi-xx.        [ Links ]

SILVA, Selma Lima, 1999, Mulheres da Luz: Uma Etnografia dos Usos e Preservação no Uso do Crack. São Paulo, Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo, dissertação de mestrado.        [ Links ]

 

NOTAS

[1]       O Centro de Convivência É de Lei surgiu no final da década de 1990 com o objetivo de desenvolver estratégias de redução de danos sociais e à saúde relacionados ao uso de drogas. Caracteriza-se como um espaço de sociabilidade e acolhimento para pessoas que usam drogas e por ações nas regiões de uso de drogas na cidade de São Paulo.

[2]      Todos os nomes usados aqui são fictícios, para proteger as identidades dos visados.

[3]      Categoria nativa para quem está trabalhando na distribuição e comércio de drogas ilícitas.

[4]      Em 2006 houve uma mudança na lei brasileira sobre drogas. A partir de então, quando a pessoa que porta a substância ilegal é enquadrada na categoria de usuário, não é mais passível de prisão, tendo apenas que prestar serviços à comunidade ou fazer alguma doação de cestas de alimentos. No entanto, se aumentou a pena para os que são enquadrados na categoria dos traficantes. É interessante perceber que, ao contrário do que acontece na lei, ao ir a campo fica difícil perceber uma distinção clara entre o traficante e o usuário: muitos do que estão ali fumando acabam também participando do movimento de venda da droga.

[5]      O agente contou que muitas vezes chegavam nestas instituições empresários ou políticos que se comprometiam a pagar cursos ou roupas para algumas crianças, algo que não aconteceu com Vejota.

[6]      Termo utilizado por ela, que significa ficar junto com o grupo, apenas participando dos acontecimentos, sem grandes objetivos.

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