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Etnográfica

versão impressa ISSN 0873-6561

Etnográfica v.15 n.3 Lisboa jun. 2011

 

Filomena Silvano

(CRIA  /  FCSH-UNL)

 

Obra recenseada: Alice Duarte, Experiência de consumo: Estudos de caso no interior da classe média, Porto, U. Porto Editorial, 2009, 226 páginas.

 

Experiências de Consumo: Estudos de Caso no Interior da Classe Média foi publicado em 2009 e corresponde a uma parte da tese de doutoramento defendida pela autora, Alice Duarte, em janeiro de 2008. O trabalho de terreno que deu origem ao estudo decorreu entre 2002 e 2004. Em 2002 Alice Duarte publicou, nesta mesma revista, um texto intitulado “Daniel Miller e a antropologia do consumo” e, em junho de 2010, um outro, também correspondente a uma parte da tese, intitulado “A antropologia e o estudo do consumo: revisão crítica das suas relações e possibilidades”. Este ­mapeamento temporal serve a tarefa de colocar a obra aqui recenseada no interior da produção antropológica nacional e internacional: no início da década de 2000 a autora faz uma aproximação teórica aos então recentes (mas já em clara fase de expansão para as academias de países periféricos) estudos do consumo em antropologia e inicia uma investigação que será publicada em livro no fim da mesma década (o segundo volume – O Consumo para os Outros – foi publicado já em maio de 2011, também pela U. Porto Editorial). Este foi, grosso modo, o arco de tempo necessário para que o novo campo de estudo – investido por vários investigadores – tomasse forma em Portugal. A produção académica é hoje muito veloz, mas não prescinde dos tempos necessários à sua boa realização e estes parecem ser mais longos que aqueles que presidem ao funcionamento do real: neste caso, estamos face a uma obra indispensável para compreender a realidade portuguesa contemporânea, mas que já nos fala de um passado (que, dadas as circunstâncias, se transformou em algo dramaticamente longínquo).

Alice Duarte coloca-se de forma clara (e explícita) no interior de uma perspetiva analítica que, no seguimento da proposta de Daniel Miller, opta por deslocar os estudos sobre cultura material do polo da produção para o polo do consumo: “eleger o consumo como campo de pesquisa efetivo tem subjacente a rejeição de o olhar como mero resultado da produção ou, mais especificamente, do modo de produção capitalista, deslocando para o próprio consumo o foco e interesse da análise” (p. 7). No interior desse posicionamento mais geral, opta por concentrar-se nas dimensões mais micro da observação etnográfica – indivíduos e respetivas famílias –, de forma a trabalhar os mecanismos de produção / negociação das identidades pessoais e familiares: “[…] a análise compartimentou a realidade empírica e elegeu o papel do consumo em termos da produção de identidades particulares e em termos da criação e manutenção de redes de sociabilidades como alvos da sua atenção, fazendo emergir a tríade ­analítica consumo-identidade-sociabilidade” (p. 8). No que diz respeito às etapas do ciclo de consumo, a investigação centra-se nos mecanismos que, após a compra, integram os objetos no trabalho de construção de si levado a cabo pelas pessoas a quem passam a pertencer: “[…] a intenção central do atual texto é tornar manifestos e dar a conhecer processos de apropriação e respetivas atribuições de significado efetivos pelas pessoas concretas que são os consumidores-informantes” (p. 10).

Para responder às opções conceptuais mencionadas, o estudo empírico foi desenhado a partir de dois critérios: o primeiro prende-se com questões de estrutura social e o segundo diz respeito às etapas do “ciclo do consumo”. As pessoas ­escolhidas ­integram o setor médio da sociedade portuguesa – são, segundo os parâmetros ­sociológicos, membros da “classe média” – e são “visitantes” do Norteshopping, um centro comercial situado na zona do Grande Porto. O primeiro critério visava criar um universo de estudo sociologicamente homogéneo, de forma a poder centrar a interpretação nas dimensões mais pessoais, fugindo assim, deliberadamente, ao estudo dos efeitos de estrutura: “[…] ou seja, em vez de se procurar uma assimilação estrita entre categorias de consumidores e categorias sociais de classe ou status, o consumo é aqui analisado enquanto meio útil – e utilizado – de expressão e comunicação de construções de valores e do sentido do que cada um é: um jovem, uma mãe de família, um amigo do peito, uma pessoa cosmopolita” (p. 8). Já o segundo homogeneizou o terreno em que se desenrola a etapa das “compras”, para centrar a interpretação nas dinâmicas da etapa seguinte, a das “apropriações”. Na prática, foram trabalhados 24 agregados familiares.

No meu entender, o desenho da pesquisa integra, de forma inteligente e eficaz, as dimensões empíricas e as dimensões conceptuais. A opção conceptual dependia, neste caso, do trabalho sobre as esferas mais delicadas de uma etnografia do consumo – aquelas que por implicarem as vidas domésticas das pessoas as colocam mais a nu. Sem penetrar nessas dimensões não é possível entender as relações que estabelecemos com os objetos, ou as razões pelas quais eles constroem as nossas existências mais profundas. A obra de Alice Duarte consegue chegar a esse território delicado – e consequentemente consegue provar cabalmente a pertinência do seu estudo – sem nunca romper a película ténue que protege a dignidade das pessoas que aceitaram trabalhar com ela. O seu livro permite-nos assim perceber o quanto são – quando vistos a partir de escalas de análise micro – delicados e frágeis os mecanismos de construção identitária de uma classe média recentemente chegada a parâmetros de consumo já solidificados em outros países. No entanto, prescindir, na interpretação dos dados, da inserção dos efeitos de estrutura – “O objetivo de ilustrar o processo de consumo como atividade prática, moral e contextual específica beneficia, portanto, deste recurso a uma noção de estilo de vida que, mais do que entendido como instrumento de diferenciação social, procura remeter para tendências familiares fornecedoras de consistência interna às apropriações concretizadas pelos informantes” (p. 119) – enfraquece, no meu entender, as possibilidades de elucidação do real. A classe média portuguesa não é, sobretudo no que diz respeito às suas origens, homogénea, e por isso os mecanismos que decorrem das posições que as pessoas ocupam na estrutura social, nomeadamente os de “distinção” social, estão nela presentes. Mas, apesar deste reparo, o trabalho consegue esclarecer questões que se prendem com as dinâmicas familiares específicas e questões de caráter mais estrutural. Fica claro que naquele tempo, o início do século XXI, a classe média portuguesa pensava que tinha chegado, finalmente – com euforia, esforço e por vezes sofrimento – à “sociedade de consumo”. Para um cientista social conhecedor dos estilos de vida de outras classes médias, era evidente que não era bem assim: a ausência dos consumos culturais – colocados no pacote das coisas dispensáveis, senão mesmo das inúteis – era o sintoma mais óbvio da falta de consistência temporal dessa nova classe média (estavam lá as mesmas coisas – carros, aparelhagens, relógios – mas não estavam lá os mesmos conteúdos – construídos nas universidades, nos museus e nos teatros). Agora que tudo foi posto em causa, a evidência da distância que nos separa dos parâmetros do consumo médio europeu obriga-nos, seguindo mais uma vez as tendências reveladas pelos trabalhos recentemente produzidos nas ­academias com maior visibilidade internacional, a reequacionar as relações complexas que se estabelecem, no interior de novos quadros macroeconómicos, entre as esferas da produção e as esferas do consumo.

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