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Etnográfica

versão impressa ISSN 0873-6561

Etnográfica vol.16 no.3 Lisboa out. 2012

 

Ricardo Roque, Headhunting and Colonialism: Anthropology and the Circulation of Human Skulls in the Portuguese Empire, 1870-1930, s. l., Palgrave MacMillan, 2010, xiv-342 páginas, ISBN 978-0-333-91909-5.

 

Frederico Delgado Rosa

Centro em Rede de Investigação em Antropologia, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, Portugal, fdelgadorosa@fcsh.unl.pt

 

Publicado na prestigiada Cambridge Imperial and Post-Colonial Studies Series, o livro de Ricardo Roque catapulta para o debate contemporâneo da antropologia histórica a “colónia maldita” de Timor-Leste, assim apresentada recorrentemente no século XIX. E fá-lo através de uma inversão da lógica das conotações negativas, segundo a qual a presença portuguesa era residual e ineficaz, caracterizada por sobrevivências de tipo ancien régime. É-nos apresentada ao invés uma história de sucesso colonial através do idioma timorense da caça de cabeças. É por demais surpreendente a revelação de que a ocupação efetiva não teria sido possível sem que os escassos oficiais brancos autorizassem essa prática ritual dos guerreiros nativos sob o seu comando. Mas o autor vai mais longe, graças a uma leitura muito atenta das etnografias militares da época, e em especial das suas entrelinhas. Refuta a tentação de as interpretar como mero discurso “orientalista”, assente num processo de alterização que supostamente diz mais sobre o ­colonizador do que sobre o colonizado. O verdadeiro desafio consiste em ultrapassar tanto a armadilha colonial, como a pós-colonial, de forma a perceber como é que o colonizador, alegadamente civilizador, manteve uma relação não apenas de contiguidade, mas de simbiose, com a mais selvagem das práticas do colonizado. É portanto ao nível da praxis que importa ler o arquivo.

De acordo com as etnografias coloniais, havia em cada lorosa’e ou festa das cabeças “um chefe” a cujos pés elas eram alinhadas e que lhes dava o primeiro pontapé. O autor procede a uma descodificação da “ambivalência dos textos” a respeito desses personagens, que seriam na verdade os próprios militares portugueses em comando. ­Chegou mesmo a encontrar documentos onde essa delicada ação ritual portuguesa emerge à superfície, num mundo de apetência indígena pelo capital simbólico dos malai. O atavismo surge metamorfoseado em “quintessência do colonialismo em ação”, não apenas devido à participação dos oficiais, mas porque o número de cabeças cortadas era parte integrante da vitória portuguesa. Fazemos jus ao trabalho em arquivo de Ricardo Roque, ao citarmos aqui um ofício confidencial e paradigmático de Celestino da Silva, enviado para Lisboa em 1896: “[…] o inimigo, num só combate, deixou 104 cabeças em posse das nossas forças”. O sublinhado, diz-nos o autor, está no original, o que lhe permite enfim ­concluir que as decapitações não permaneciam fora do império, mas eram contabilizadas a seu favor, infundindo-lhe vitalidade – como que em réplica das leituras clássicas da prosperidade simbólica trazida para a comunidade.

Esta dialética só era possível, contudo, através da manutenção ideológica da fronteira entre civilizado e selvagem, que era também neste caso uma fronteira entre pureza e impureza. Apesar ou justamente por causa da “intimidade pragmática” entre os oficiais europeus e a soldadesca nativa, tanto as etnografias como os regulamentos exprimiam uma distância, um evitamento de contacto, de forma a que o “horrível e macabro” rito indígena, embora tolerado por necessidade, não chegasse a subverter a diferença entre as partes. Ricardo Roque não considera, pois, que seja pertinente a noção de hibridismo cultural aplicada a este contexto colonial, avançando uma perspetiva analítica alternativa, que não deixa em todo o caso de traduzir uma interpenetração histórica. Revelando uma predileção persistente pelas metáforas biológicas, em diálogo com a sua sensibilidade sociológica, diz-nos o autor estarmos perante um tipo particular de simbiose, i. e., o parasitismo mútuo, caracterizado sobretudo pelo facto de ambos os organismos em relação subsistirem através das características do outro e da respetiva manutenção, que não da sua transformação radical.

Daí que, fisicamente falando, as cabeças não fossem de facto para o império, mas permanecessem entre timorenses, num sistema circulatório finalmente distinto, ainda que parasitário e parasitado. Ora, sabemos pelo título da obra que a mesma trata da circulação de crânios humanos no império português. Em 1882, a chegada à Universidade de Coimbra de 35 crânios timorenses foi na realidade uma exceção, aliás em condições “contingentes, transitórias e quase acidentais”. Ao encerrar a metade do livro, intitulada “Encounters with ­parasites”, Ricardo Roque usa a palavra leak para ­exprimir a raridade daquela ocorrência, o que desperta a ideia de uma fuga no sistema circulatório nativo. O nosso imaginário é incendiado com as palavras de fecho da primeira parte, que deixamos em inglês: “Then, new circuits came to life”. Qual a relação entre os crânios doados à ciência e as decapitações em contexto colonial? Esta pergunta é, a bem dizer, o leitmotiv da obra. Como no Golden Bough de James Frazer, o leitor permanece suspenso desde as primeiras páginas num enigma antropológico, em torno da disputada autenticidade da coleção coimbrã de crânios timorenses.

É que as caveiras não chegaram incólumes ao seu destino, mas antes desconectadas de quaisquer palavras originais que lhes dessem contexto histórico. Tomando de empréstimo o conceito de trajetória da doença, Ricardo Roque aplica-o a estes objetos de museu, que logo em Macau terão perdido a legenda. O seu indisfarçável gosto pela parafernália da antropologia física da linhagem de Oitocentos, algures entre o macabro e o asséptico, habilita-o a promover estudos coloniais da materialidade, da vida social dos objetos. Assim, é o próprio arquivo colonial que ganha vida, como uma entidade também ela em circulação, onde os crânios e as palavras se buscam, se interligam, se transformam, numa tentativa prolongada e dramática – a que somente Ricardo Roque dará desfecho no fim do livro – de restituição dos acontecimentos históricos que tudo causaram no século XIX, em Timor.

Feito embora à imagem do Laboratoire d’anthropologie de Paul Broca, paradigma de uma ciência que fazia luxo em ser craniológica acima de tudo, o Museu e Laboratório de Antropologia de Coimbra não tinha, à época, pretensões a estudar as diferentes “raças”, focalizando-se ao invés no caso português, em parte por limitações de ordem prática. A Universidade não solicitou os crânios de Timor. Mas dada a proveniência dos mesmos, única informação disponível nessa trajetória, a investigação a que deram origem tirou inspiração de uma das mais conceituadas teorias da época a respeito da linha divisória entre malaios e papuas. Segundo Alfred Russell Wallace, que visitou as montanhas da ilha, os timorenses pertenciam essencialmente à segunda categoria, associada a uma imagem persistente de negritude recôndita e primitiva. Embora não houvesse em toda a Europa uma coleção de crânios de Timor equiparável à de Coimbra, o seu estudo antropológico, publicado em 1894 por João de Barros e Cunha, não teve grande impacte no seu tempo. Até que um golpe de teatro, já no século XX, despoletou uma acesa polémica em torno do mesmo.

Foi Mendes Correia, promotor duma nova antropologia física in vivo, e para mais colonial, em detrimento da craniometria, quem primeiro pôs em dúvida as conclusões de Barros e Cunha, chamando ao mesmo tempo a atenção para a incerteza histórica da origem da coleção. Um militar com anos de serviço em Timor, o major Leite de Magalhães, seguiu-lhe a peugada e procurou demolir publicamente, nas páginas do Diário de Notícias, a tese coimbrã de que os timorenses eram papuas. E, como arma de arremesso, afirmava que os 35 crânios eram trágicos restos mortais da coluna do capitão Eduardo da Câmara, massacrada em Cová no ano de 1895. Ora, dizia o major, essa tropa não era composta exclusivamente de soldados timorenses, mas também de africanos e indianos, além dos oficiais portugueses. Como entrassem outros participantes no debate, que se prolongou aos anos 30 e 40, Barros e Cunha acabou por reagir não apenas no Diário de Notícias, onde demonstrou a incoerência cronológica da teoria de Cová, mas também numa monografia dedicada ao tema da autenticidade dos crânios, independentemente da ausência de história dos mesmos. Outros desenvolvimentos houve neste folhetim, mas o mais ­importante, na ótica de Ricardo Roque, é que a trajetória dos crânios foi indissociável de uma disputa sobre os acontecimentos coloniais na sua génese. Com grande arrojo teórico, o autor vai ao ponto de pôr em causa a perspetiva foucaultiana sobre “a ordem das coisas”. As coleções antropológicas, nomeadamente, não constituíam universos de pura materialidade sobre os quais era imposta uma visão classificatória europeia, mas, sim, objetos numa trajetória de conhecimento indissociável das suas respetivas micro-histórias, umas vezes perdidas, outras vezes achadas, mas em todos os casos debatidas e postas em movimento, por escrito ou na oralidade. Essa “historiografia em miniatura”, como lhe chama o autor, é necessária à boa compreensão do plano macroscópico de catalogação ocidental do mundo.

No último capítulo, Ricardo Roque desvenda o mistério das cabeças cortadas da Universidade de Coimbra, em resultado de uma espetacular descoberta documental. É evidente, porém, que não anunciaremos aqui o desfecho desse plot quase policial. Limitar-nos-emos a dizer que relaciona de facto, embora numa direção imprevista, a segunda parte do livro, “Skulls and histories”, e a primeira. Pela originalidade das articulações temáticas e pela fecundidade teórica, quase estonteante, Headhunting and Colonialism é uma obra profundamente inspiradora e de que a comunidade científica portuguesa se deve orgulhar, pois demonstra à saciedade, na arena global, as potencialidades da caixinha de surpresas que é o arquivo colonial português, bem como o gabarito dos jovens investigadores portugueses da atualidade.

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