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Etnográfica

Print version ISSN 0873-6561

Etnográfica vol.20 no.1 Lisboa Feb. 2016

 

FÓRUM

 

Sobreaquecimento: pequenos lugares e grandes questões na antropologia do século XXI

 

Overheating: Small places and large issues in 21st century anthropology

 

 

Thomas Hylland EriksenI

IUniversidade de Oslo, Noruega. E-mail: th.eriksen@sai.uio.no

 

 


RESUMO

Alterações aceleradas caracterizam o tempo presente num largo número de áreas, desde o crescimento das cidades ao desenvolvimento do turismo internacional, passando pelas telecomunicações e uso da energia. Num mundo cada vez mais interconectado, este artigo defende a importância da investigação antropológica no estudo das respostas locais àquelas formas de mudança. Há algumas contradições basilares neste nosso presente, notoriamente entre sustentabilidade ecológica e crescimento económico, mas também entre valores sociais e economia neoliberal. Para melhor compreender estas tensões, é urgente o uso de métodos de investigação antropológicos – as ferramentas da etnografia devem ser aplicadas no estudo dos sistemas globais contemporâneos.

Palavras-chave: mudança, velocidade, interconexão, tensão, etnografia, local/global


ABSTRACT

Accelerated change characterizes the present world in a number of domains, ranging from the growth of cities and the development in international tourism to telecommunications and energy use. This article argues the need for anthropologists to study local responses to these forms of change in an increasingly interconnected world. There are some fundamental contradictions in the present world, notably between ecological sustainability and economic growth, but also between the neoliberal economy and social values. In order for these tensions to be fully understood, anthropological methods are necessary – the tools of ethnography must be applied to the contemporary global system.

Keywords: change, velocity, interconnection, tension, ethnography, local/global


 

 

Por todo o mundo há um sentimento de que nós – humanidade – vivemos num tempo de transição. Porém, não há um acordo geral entre cientistas, sociais ou outros, nem sobre o tipo de transição que estamos a experienciar, nem sobre quais serão as consequências. E, não menos importante, também não há um acordo geral sobre a quem atribuir responsabilidades, ou culpa, nem pelas mudanças nem pelas consequências. Isto não se aplica somente às alterações climáticas, embora estas sejam, compreensivelmente, a mais premente e consequente mudança que enfrentamos – a não ser que mudemos de rumo.

Podemos identificar alterações aceleradas num largo número de áreas. A mais notória curva de crescimento exponencial no último século foi, porventura, a do aumento da população. No princípio do século XX, a população mundial era de cerca de 1,5 mil milhões. No final, era já de 7 mil milhões. Enquanto a humanidade demorou cerca de duzentos mil anos para atingir os primeiros mil milhões, subsequentemente só precisou de dois séculos para se multiplicar sete vezes.

Contudo, as mudanças aceleradas estão por todo o lado. Somos mais, e cada um de nós está, tendencialmente, com maior mobilidade e mais ativo, e tem mais conexões com outros – está ligado a mais redes – do que alguma vez aconteceu no passado. Épocas pretéritas foram, sem exceção, tempos lentos para a maioria da humanidade.

Neste sentido, vivemos, presentemente, num planeta sobreaquecido.[1] Na física, calor (aquecimento) é simplesmente sinónimo de velocidade (aumento da velocidade). Traduzido para a linguagem das ciências sociais, sobreaquecimento (aumento da velocidade) remete-nos para alteração acelerada. Aliás, há já muito tempo estamos conscientes de que as alterações provocadas pela modernidade têm consequências rápidas e inesperadas, muitas vezes até paradoxais. E, como sabemos, quando os processos de mudança aceleram, também os efeitos secundários não intencionais aceleram.

Respostas sobreaquecidas – reações locais às alterações aceleradas – podem ser observadas em quase todo o mundo, mas em âmbitos diferentes e expressas de modos também diferenciados, tantos quantas as variações das circunstâncias locais, sejam elas materiais, sociais ou culturais. Normalmente, as pessoas percebem que alguma mudança está a ocorrer a grande velocidade algures. Contudo, elas podem pensar “ninguém pediu a minha opinião”, acrescentando: “Quem devo eu culpar, em quem devo eu confiar, e que posso eu fazer?” Numa situação de sobreaquecimento, esta é uma reação paradigmática. Neste sentido, uma tarefa óbvia para os cientistas sociais consiste em explorar como funcionam localmente os modos de atribuição de culpa, o que, manifestamente, configura um tipo de investigação com implicações políticas óbvias. Por exemplo, é muito diferente saber se as pessoas culpam / confiam num “quem” ou num “o quê”, ou seja, numa pessoa ou numa estrutura ou instituição. Também é muito diferente saber se elas podem culpar uma entidade local ou doméstica – pessoa ou instituição –, ou se a culpa dos seus problemas é exógena e distante. Nas terras altas da Serra Leoa, quando alterações inesperadas acontecem – digamos, uma enorme plantação de biofuel aparece subitamente do outro lado do rio –, as pessoas podem encolher os ombros e dizer “é a globalização”. O trabalho das ciências sociais consiste em desmontar esta expressão, descobrindo o que querem os locais dizer com “globalização”, e como isso se relaciona quer com as suas mundivisões, tanto em termos literais como figurativos, quer com as suas experiências e perspetivas de vida. Se, por exemplo, a falta de água numa aldeia dos Andes pode ser atribuída a uma companhia mineira vizinha, esta pode ser considerada responsável. Mas se a causa não pode ser atribuída ao uso de recursos pela companhia mineira, mas antes às alterações climáticas globais, é muito mais difícil para os locais saber o que fazer. Eles podem mesmo começar a procurar um bode expiatório local.

Uma característica comum do sobreaquecimento é a falta de previsibilidade. Parece não haver um guião para orientar a humanidade para a próxima etapa destes tempos modernos. Não há uma narrativa hegemónica dizendo-nos para onde caminhamos. Este é um século em que será pedido à humanidade, coletiva e localmente, para reconstruir a nave em que seguimos, de forma a evitar a destruição do mundo tal como o conhecemos. Neste enquadramento, o significante mais premente é o das alterações climáticas, mas é necessário e urgente compreendê-lo em contexto e na sua totalidade.

 

Alteração acelerada

Como notou Charles Tilly (1984), numa primeira crítica ao nacionalismo metodológico na sociologia, no período em que ele escrevia, o mundo estava mais interconectado do que em qualquer outra fase conhecida pelo homem.

“A sensible rule of thumb for connectedness might be that the actions of powerholders in one region of a network rapidly (say within a year) and visibly (say in changes actually reported by nearby observers) affect the welfare of at least a significant minority (say a tenth) of the population in another region of the network. Such a criterion indubitably makes our own world a single system; even in the absence of worldwide flows of capital, communications, and manufactured goods, shipments of grain and arms from region to region would suffice to establish the minimum connections” (Tilly 1984: 62).

Trinta anos mais tarde, podemos, indiscutivelmente, confirmar que a tendência invocada por Tilly continua. Independentemente dos métodos de medição dos graus de interconexão no mundo contemporâneo, a única conclusão possível é que cada vez mais pessoas estão cada vez mais interconectadas do que alguma vez aconteceu na história. Somos cada vez mais, e cada um de nós, em média, tem mais laços com o mundo do que os nossos antepassados, seja através de viagens de negócios, informação, comunicação, migração, férias, engajamento político, comércio, ajuda ao desenvolvimento, programas de intercâmbio ou por muitas outras formas. O número de linhas telefónicas transatlânticas cresceu desmesuradamente nas últimas décadas; mas também o número de sítios na Internet ou de ONG.

No campo da investigação antropológica, podemos referir que o mesmo aumento de interconectividade que constitui o centro da investigação sobre o transnacionalismo foi, um pouco antes, a causa da descolonização e da emergência da sensibilidade pós-colonial, o que, por sua vez, levou ao que muitos consideraram ser uma crise de representação na antropologia (Fabian 1983; Clifford e Marcus 1986). Se esta foi uma fonte de lamentos para muitos antropólogos, contudo, também pode ser considerada como uma oportunidade para novas investigações comparadas, na medida em que pessoas à volta do mundo deixam de estar meramente consociadas e passam a ser, verdadeiramente, contemporâneas umas das outras (cf. Geertz 1957), conscientes, ainda que debilmente, de cada uma e dos processos dentro dos quais a sua vida se desenrola, partilhando um mundo semelhante, não somente entre si, mas também com o antropólogo que escreve sobre os seus mundos-vida.

A representação gráfica mais chamativa dos processos de mudança deste tempo presente é a curva de crescimento exponencial (Eriksen 2001). Na sua versão mais recorrente, representa o aumento da população mundial, tendo sido chamada a atenção dos decisores políticos para esse facto pelo neomalthusiano “Clube de Roma” e pelo seu relatório Os Limites do Crescimento (Meadows et al. 1972), se não antes. Nesse relatório, como sabemos, defendia-se o controlo da natalidade como um dos vários métodos para prevenir a escassez de recursos no futuro. Do ponto de vista ambiental, a preocupação expressa pelo Clube de Roma é facilmente aceitável. Muitos discutem que é improvável, económica e ecologicamente, poder oferecer à maioria da população – e é expectável que esta venha a ser de nove mil milhões em 2050 – férias e voos intercontinentais, carros de família e tudo o que eles desejem no reino dos “iGadgets” e afins. Também por isto, as alternativas defendidas por ativistas, políticos e planeadores incluem a aceitação da pobreza generalizada, como que confirmando e antecipando o impacto da catástrofe ecológica, promovendo “soluções” tais como a redução da população mundial ou a substituição do consumismo por uma ou mais formas do que é considerado viver bem.

Entretanto, o crescimento permanece exponencial num sem-número de âmbitos, e a população está a crescer menos rapidamente do que outros fenómenos. Obviamente, a proporção da população com acesso à Internet cresceu extrema e rapidamente desde 1990, justamente porque poucos a usavam nessa altura. Mas esse crescimento acelerou desde o virar do século. Em 2006 estimava-se que entre 1 e 2% da população subsariana (com a exceção da África do Sul) tinha acesso regular à Internet. Em 2012, essa proporção foi estimada ligeiramente acima dos 15% (Internet World Stats 2013). A explicação simples é que, agora, milhões de africanos têm smartphones com acesso fácil à Web e ao correio eletrónico.

Poderíamos também olhar para as migrações transnacionais em áreas nas quais podemos “sentir o calor”: quando, em 1990, comecei a escrever sobre diversidade cultural na Noruega, havia duzentos mil migrantes no país (que tinha uma população total de quatro milhões e meio; hoje tem cinco milhões). Nos finais de 2013, o número era de setecentos mil (incluindo os filhos dos imigrantes) e o crescimento da curva nesta última década foi, necessariamente, muito acentuado. Nesse mesmo período, processos de urbanização no sul entraram numa nova velocidade e, cidades como Nouakchott (Mauritânia) e Mogadíscio (Somália) cresceram das poucas centenas de milhares para os dois milhões de habitantes; noutras palavras, cresceram 1000% em cerca de 25 anos (Davis 2006).

Ou, ainda, podemos olhar para o turismo internacional como um indicador de alteração acelerada. Em 1970 havia turistas do Norte da Europa que falavam de partes do Sul de Espanha como estando estragadas pelo “turismo de massas”. Porém, em 1978, pouco depois do fim do fascismo, Espanha recebia um total de quinze milhões de turistas por ano. Em 2013, o número estimado é de sessenta milhões; dito doutro modo, o turismo em Espanha quadruplicou em 35 anos. A nível global, para 2013, a WTO (World Tourism Organization, da ONU) estimou o número de visitantes (chegada de turistas) em mais de mil milhões.

Sítios da Internet, organizações internacionais (bem como conferências internacionais e workshops), telemóveis e televisores, viaturas privadas e mensagens de texto: as curvas de crescimento apontam claramente para cima em todos estes domínios (e em muitos outros). Em 2003, o Facebook ainda não existia. Dez anos mais tarde, essa plataforma (vulgo, rede social) atingiu os mil e cem milhões de utilizadores. O número é tanto mais impressionante quanto consideremos o facto de os chineses – que, sozinhos, representam 17% da população mundial – estarem arredados deste grupo por razões de censura política.

Obviamente, nem tudo e nem em toda a parte acelera neste princípio do século XXI. Também nem tudo o que cresce rapidamente tem consequências profundas localmente. A desaceleração local e regional é igualmente uma consequência possível da aceleração globalizada. Aliás, apesar de fenómenos como as mensagens de texto e o turismo, o Facebook e a televisão por cabo terem transformado a vida contemporânea em moldes ainda só parcialmente compreendidos pelos investigadores, particularmente consequente para o presente e futuro próximo da humanidade é a inter-relação entre dois processos de mudança específicos: o crescimento populacional e o crescimento do uso de energia.

Porque somos agora sete vezes mais do que éramos no tempo das guerras napoleónicas, não é surpresa usarmos mais energia hoje em dia. No entanto, o uso de energia a nível global tem crescido muito mais rapidamente do que o crescimento da população. Em 1820, cada um de nós consumia, em média, 20 Gigajoules por ano. Mais ou menos dois séculos mais tarde, o valor é de 80 GJ, principalmente porque a tecnologia permitiu usar combustíveis fósseis em larga escala. Como é sabido, o uso de energia está longe de estar equitativamente distribuído entre as sociedades e dentro delas, estimando-se que aqueles que vivem em países ricos têm acesso, em média, a uma força-máquina equivalente a uma situação em que cada indivíduo tinha 25 escravos.

O crescimento quadruplicado mencionado acima é, na realidade, um crescimento multiplicado por um fator de 28, dado que somos, hoje, sete vezes mais do que no princípio do século XIX. O consumo de energia a nível mundial duplicou somente a partir de 1975. As consequências indesejadas são bem conhecidas. Aquelas que são mais visíveis, e imediatamente experienciadas, estão relacionadas com a poluição e deterioração ambiental. Aquelas outras, de longa duração e em grande escala, mais difíceis de observar e compreender, são as alterações climáticas globais.

Podemos especular sobre se poderíamos ter evitado as consequências indesejadas mais problemáticas relacionadas com a revolução nos combustíveis fósseis caso a população mundial não tivesse começado a crescer exponencialmente no século XIX. Lovelock (2006) disse um dia que, se a população mundial rondasse hoje os mil milhões, seria possível “fazermos tudo aquilo que nos apetecesse” e, mesmo assim, o planeta conseguiria recuperar. De igual modo, é possível especular, apesar da suposição irrealista, um crescimento da população mundial multiplicado por sete num cenário sem combustíveis fósseis. Nesse caso, teria sido possível evitar a crise climática, mas, em contrapartida, a grande maioria da população mundial, muito provavelmente, não conseguiria senão satisfazer as suas necessidades básicas. Porém, o planeta que partilhamos é aquele onde a modernidade entrou em roda livre, onde se avança a toda a velocidade em muitos domínios que estão interconectados. As consequências humanas desta alteração acelerada devem ser uma área prioritária da investigação antropológica.

 

Um mundo sobreaquecido

O mundo contemporâneo é um mundo sobreaquecido, acima de tudo definido por tensões e fricções. As redes que conectam pessoas são densas, mais rápidas e mais consequentes do que nunca. O movimento transnacional muçulmano, os movimentos ambientalistas e de crítica, como o ATTAC e o Occupy, são tentativas para mostrar que é possível outro mundo, outras formas de vida. A primeira regra do planeamento do tráfego urbano é aquela que diz que velocidade requer espaço, mas o tráfego está a ficar gradualmente mais denso nas autoestradas globais, aumentando assim os riscos de colisão.

Numa autoestrada parecem ser possíveis somente três tipos de tráfego: circulação livre, circulação sincronizada e engarrafamentos. Há duzentos anos, na aurora da era dos combustíveis fósseis, ou, se quisermos, do Antropoceno, a circulação era livre. Era uma época de fronteiras por descobrir, de zonas selvagens por explorar. Hoje, a circulação nas autoestradas é, claramente, sincronizada e, ocasionalmente, bloqueada por engarrafamentos; há tanto tráfego nas autoestradas que somos forçados a olhar atentamente pelo retrovisor antes de mudar de faixa – alguns lugares notoriamente sobreaquecidos (recordo, só a título de exemplo, Israel / Palestina, mas também a Síria ou a Ucrânia) parecem mesmo ter ficado bloqueados. Num mundo assim, há necessidade óbvia de regras de trânsito, tais como as defendidas, principalmente, no dealbar dos movimentos ambientalistas. Se a natureza foi sempre o Outro cultural nas sociedades agrícolas e industriais, definida como o oposto de cultura – por vezes, até como a antagonista desta –, na última metade do século passado passou a ser percecionada como estando tão fraca e vulnerável que exigia proteção, por parte da cultura, para se sustentar: a natureza deixou, portanto, de ser autossuficiente.

Velocidade gera calor. Na física, os dois termos são, sintomaticamente, sinónimos. Quando hoje em dia dizemos, em linguagem comum, que uma pessoa está burnout,[2] a metáfora serve o facto de considerarmos que ela fez demasiadas coisas, demasiadamente depressa. Mas a metáfora do sobreaquecimento é usada, também, ainda que involuntariamente, noutros domínios. Quando a bolsa de valores colapsa, em Wall Street fala-se de “derretimento” do mercado e, quando os valores cotados em bolsa sobem acima de determinado valor considerado aceitável, podemos ouvir dizer que é preciso “arrefecer os mercados”. Do mesmo modo, motins e manifestações violentas são frequentemente associados a emoções de “cabeça quente”. Aliás, as alterações climáticas são associadas a sobreaquecimento de duas formas: a temperatura global está, de facto, a subir, e a causa é a alteração acelerada, particularmente no que respeita ao uso da energia.

Talvez o uso inconsciente da metáfora do sobreaquecimento possa contribuir para explicar por que a história do aquecimento global se tornou, recentemente, central na narrativa sobre a era que vivemos. Segue a mesma lógica intrínseca a outras narrativas amplamente conhecidas e confirma a opinião de que a história já não é sinónimo de progresso. Através da focalização no calor como uma consequência não intencional da modernidade, as histórias sobre o aquecimento global funcionam como uma versão das ciências da natureza sobre outras histórias conhecidas sobre fricções culturais, religiosas e étnicas, ou sobre a explosão das populações urbanas ou, ainda, sobre os rápidos, mas sem direção, avanços tecnológicos.

Diversas e genéricas tensões podem ser associadas ao sobreaquecimento. Acrescentadas a anteriores linhas de conflito, talvez universais (poderosos e desapoderados, ricos e pobres, autonomia e dependência), novos conflitos, fricções e tensões surgem no mundo. O principal é, indiscutivelmente, o dilema entre sustentabilidade ecológica e crescimento económico. Pode ser negligenciado (tal como na Austrália, onde líderes políticos são hostis a qualquer conversa sobre alterações climáticas), ou podem ser ensaiados caminhos que sirvam os dois propósitos simultaneamente, mantendo a dependência dos combustíveis fósseis e, ao mesmo tempo, plantando árvores, reciclando lixo ou prosseguindo outras práticas afins.

Este mundo está interconectado, mas não está nem igualizado, nem homogéneo, nem harmonioso. Direitos e obrigações, oportunidades e restrições estão distribuídas muito desigualmente e o sistema global é, ele mesmo, cronicamente instável e (auto)contraditório. A contradição mais básica, bem conhecida dos antropólogos, é a tensão crónica entre as forças “globalizadoras” da modernidade e outras, localmente singulares, que reclamam autonomia e são, na sua essência, não escaláveis (Tsing 2012). As tendências para a estandardização, simplificação e uniformização, característica de um regime neoliberal global, encontram, quase em todo o mundo, a resistência de valores, práticas e tipos de relacionamento locais. A globalização evidencia a típica e moderna contradição entre o sistema-mundo e o mundo-vida, entre estandardização e singularidade.

 

Neoliberalismo num mundo sobreaquecido

A irrelevância atribuída às alterações climáticas pelos políticos relaciona-se com o facto de estes terem abdicado de fazer planificações societais conscienciosas e a longo termo. Por conseguinte, a compreensão da relação de causalidade entre atividade humana e alterações climáticas deve incorporar o estudo do neoliberalismo. Este termo é usado para descrever um tipo particular de ideologia e prática económica desterritorializada, característica dos finais do século XX e princípios do século XXI. É comum acordar-se que começou, de facto, com as políticas de desregulação e privatização instigadas nos Estados Unidos e no Reino Unido por Ronald Reagan e Margareth Thatcher na década de 1980. Os programas de ajustamento estrutural implementados pelo FMI (Fundo Monetário Internacional) nos países do hemisfério sul, também nas décadas de 1980 e 1990, conformaram os mesmos princípios, cortando despesa pública e encorajando o desenvolvimento de mercados competitivos um pouco por toda a parte. Este conjunto de políticas, o “consenso de Washington”,[3] foi, então, o resultado de um acordo entre o FMI, o Banco Mundial e o Departamento do Tesouro norte-americano.

David Harvey define neoliberalismo assim:

“Neoliberalism is […] a theory of political economic practices that proposes that human well-being can best be advanced by liberating individual entrepreneurial freedoms and skills within an institutional framework characterized by strong private property rights, free markets, and free trade. The role of the state is to create and preserve an institutional framework appropriate to such practices” (2005: 2).

As políticas neoliberais foram prosseguidas nas décadas subsequentes por governos da maior parte do mundo, privatizando, total ou parcialmente, empresas públicas, tais como caminhos de ferro e correios, e, pelo menos em teoria, encorajando uma economia de mercado livre (embora restrições sejam impostas a importações mediante a aplicação de taxas, e indústrias consideradas chave sejam altamente subsidiadas). A origem do pensamento neoliberal é, normalmente, atribuída a Friedrich Hayek e aos seus sucessores, nomeadamente a Milton Friedman, cujo momento mais alto terá acontecido, em princípios de 1980, com a implementação da sua ideologia económica nos Estados Unidos e no Reino Unido. Contudo, há um precursor imediato que deve ser do interesse dos antropólogos. O professor de Hayek em Viena foi Ludwig von Mises, um libertário entusiasta, inimigo do socialismo em todas as suas formas e um firme crente na desregulação dos mercados. O crítico mais importante de von Mises foi o historiador económico Karl Polanyi, cuja obra A Grande Transformação (2001 [1944]) chamou a atenção dos antropólogos, logo aquando da sua publicação. Este livro foi, de facto, a principal fonte de inspiração para o grande debate que se seguiu na antropologia económica e entre os substantivistas e os formalistas, um debate que prossegue nos dias de hoje no campo da antropologia económica, ainda que com novos contornos (Hann e Hart 2011).

A Grande Transformação começa com uma nota dramática em que o autor afirma que, de facto, “a civilização do século XIX colapsou” (Polanyi 2001 [1944]: 3). Aquilo que ele tinha em mente era a mais radical consequência da industrialização e da colonização do século XIX: a primazia do mercado torna-se predominante e omnipresente nas sociedades ocidentais. No que é virtualmente uma crítica, avant la lettre, do neoliberalismo, Polanyi defende que valores e práticas de sociabilidade baseados na reciprocidade e solidariedade são mais fundamentais à existência humana do que princípios de mercado que, no limite, desenraízam e desumanizam. Ele previu que esses princípios prevaleceriam durante muito tempo. Estávamos, assim, perante um socialista não marxista, Polanyi, que argumenta contra a mercantilização do trabalho e, mais genericamente, contra a miopia da teoria económica dominante. O seu principal alvo foi von Mises, o pai do neoliberalismo. Polanyi não se opunha ao princípio do mercado, enquanto tal, e era conhecedor da existência de mercados funcionais em sociedades não capitalistas. Aquilo que ele objetava era a difusão desses princípios em domínios sociais que deveriam ser governados por princípios de sociabilidade. Tal como Gemeinschaft precede ontologicamente Gesellschaft na análise de Tönnies da transição para sociedades urbanas e industrializadas, uma “economia humana” baseada na reciprocidade e redistribuição (Hart, Laville e Cattani 2010) é fundamental para a vida social, e pessoas vivendo em comunidades resistirão ao domínio do mercado um pouco por todo o lado.

Num nível semelhante de abstração e generalização, a tensão entre crescimento económico e sustentabilidade ecológica é também uma contradição crónica, podendo-se mesmo dizer que constitui o mais fundamental e profundo dos dilemas (Bateson et al. 1956) da civilização contemporânea. Compromissos entre crescimento económico e sustentabilidade são ubíquos, mas nem sempre de forma tal que seja o poluidor quem paga. O consenso global sobre as causas das alterações climáticas é reconhecido, porém os políticos continuam a privilegiar o crescimento, de tal modo que levam cidadãos atentos e preocupados a suspeitar que nós, humanos, estamos a impossibilitar as condições para a nossa própria sobrevivência com a cumplicidade das nossas elites políticas e económicas.

Outra distinção conceptual importante é descrita, por vezes, em termos de formal e informal, ou, noutras palavras, de sistema-mundo e mundo-vida, o universal e o particular, ou, simplesmente, o abstrato e o tangível. (Estrutura e processo, ou langue e parole, são dicotomias relacionadas com as acima ­mencionadas.) Na medida em que a globalização implica estandardização e homogeneização [4] – tal como o capitalismo implica a integração de uma larga variedade de atividades económicas dentro de um sistema uniforme em que tudo é comparável com tudo, ou ainda, tal como falar de “etnicidade” permite tornar comparáveis diferenças culturais através da criação duma linguagem comum para se falar de diferença –, reações que enfatizam as virtudes da autonomia, da tradição, da autossuficiência ou da independência são inevitáveis. Por conseguinte, o direito à autoafirmação, à (re)construção do passado, do presente e do futuro ou, ainda, às formas de vida e de relação com os outros e com a natureza torna-se simultaneamente um recurso escasso e favorece um largo espectro de querelas políticas nesta era de globalização sobreaquecida. Isto implica que, embora a alteração possa ser aceite, somente as mudanças que não desafiam ou perturbam as já estabelecidas noções de pessoa, socialidade e continuidade são bem-vindas. O equilíbrio entre mudança e continuidade é sempre visto na sua especificidade local. No seu sentido mais fundamental, a dialética da globalização reporta-se à tensão, não entre “o global e o local”, mas entre o abstrato e o formal, o tangível e o informal, o universal e o específico, o desterritorializado e o territorializado.

Estas contradições evocam um mundo de promessas por cumprir.

 

A necessidade de antropologia

Mas nem tudo é o mesmo. Não só os lugares permanecem diferentes, como as pessoas em lugares determinados não se parecem, ou sequer partilham entendimentos comuns sobres as suas condições locais de vida. As pessoas percecionam, compreendem e agem sobre as mudanças de maneiras muito diferenciadas, dependendo das posições que ocupam no lugar de pertença (classe, género, idade, etc.), das características do lugar, bem como da posição deste nos sistemas regionais, nacionais e transnacionais. Para compreendermos a globalização, é necessário explorar como as suas crises e contradições têm sido tratadas em contextos locais – como as pessoas resistem a mudanças impostas, negoceiam a sua relação com forças transnacionais e globais e que estratégias para a sobrevivência, autonomia e resistência estão a ser desenvolvidas. Estas aproximações exploratórias devem prestar a devida atenção ao genius loci da localidade, situando-a historicamente e conectando-a a uma análise dos processos globais. Finalmente, a fim de demonstrar a ubiquidade dos efeitos do sobreaquecimento, são necessárias comparações sistemáticas entre locais muito diferentes. Por conseguinte, a antropologia dos pequenos lugares e das grandes questões deve encarar as mudanças radicais que o planeta enfrenta, permanecendo, contudo, e como sempre, sensível aos mundo-vida locais e consciente do facto de que, apesar da globalização acelerada, os lugares permanecem singulares e devem, por isso, ser estudados etnograficamente. Prosseguindo este propósito, a antropologia pode fazer a diferença, tal como quando batalhou contra o racismo e o preconceito cultural, com sucesso, diga-se, no passado. Hoje, para mais, a diferença é tão mais relevante e importante quanto sabemos estar num mundo ameaçado, na sua radicalidade, pelos perigos das alterações climáticas.

Tradutor: Paulo Mendes

 

Bibliografia

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NOTAS

[1]     Ver www.uio.no/overheating.

[2]     Burnout poderá, numa tradução livre, encontrar em “queimado” um correspondente em português. De facto, é vulgar ouvirmos dizer que alguém está “queimado” quando, por exemplo, se refere a um indivíduo que está com a saúde em perigo porque bebeu demasiado álcool num curto espaço de tempo. Dado a expressão inglesa, burnout, ser usada amiúde pelos falantes de português e, entre estes, especificamente pelos psicólogos, optou-se pela manutenção do vocábulo inglês. [N. T.]

[3]     A expressão “consenso de Washington” foi cunhada em 1989 pelo economista inglês John ­Williamson para descrever um conjunto de dez medidas definidas pelo FMI, pelo Banco Mundial e pelos Estados Unidos da América e entendidas como receita estandardizada para revitalizar economias em crise – cf. John Williamson (org.), 1989, Latin American Readjustment: How Much Has Happened, Washington, Institute for International Economics. [N. T.]

[4]     O que não significa “ocidentalização”; notem-se, por exemplo, os processos de “niponização” no Extremo Oriente ou a popularidade dos filmes de Bollywood no Norte da Nigéria.

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