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Etnográfica

versão impressa ISSN 0873-6561

Etnográfica vol.23 no.3 Lisboa out. 2019

https://doi.org/10.4000/etnografica.7247 

ARTIGO ORIGINAL

“Alimento morto” e os donos na cidade: comensalidade e alteridade em uma aldeia guarani em São Paulo

“Dead food” and the owners in the city: commensality and alterity in a ­Guarani village in São Paulo

 

Valéria Macedo*

Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Centro de Estudos Ameríndios (CEstA/USP), Centro de Pesquisa em Etnologia Indígena (CPEI/Unicamp), Brasil vvaall72@gmail.com

 

RESUMO

São Paulo conta com dois conjuntos de aldeias guarani, um deles no extremo sul da cidade (Terra Indígena Tenonde Porã) e outro na região noroeste (Terra Indígena Jaraguá). Este artigo resulta principalmente de minha interlocução com moradores da aldeia Tekoa Pyau, na TI Jaraguá, cuja exiguidade do espaço e o adensamento urbano crescente do entorno impõem desafios cotidianos ao manejo das conexões e desconexões que garantem a individuação de potências que os singularizam como guarani. Buscarei abordar essa questão por meio de práticas de conhecimento sobre alimentação e comensalidade, com ênfase para o modo como meus interlocutores distinguem o que chamam de “alimentos vivos” e “alimentos mortos”. No consumo de “alimentos vivos”, é preciso manejar relações com seus donos-espíritos. No caso dos “alimentos mortos”, a exemplo dos produtos ultraprocessados, as relações que os constituem são eclipsadas, tornando incerto (e perigoso) seu potencial agentivo. Partindo desta distinção, procuro apontar reflexões e inflexões guarani sobre alteridade, vulnerabilidade e a questão das mercadorias.

Palavras-chave: guarani, São Paulo, alimentação e comensalidade, mercadoria, indígenas em contexto urbano, vulnerabilidade

 

ABSTRACT

São Paulo has two sets of Guarani villages, one at the extreme south of the city (Tenonde Porã Indigenous Land) and another in the northwestern region (Jaraguá Indigenous Land). This article is mainly based on my conversations with residents of the Tekoa Pyau village, at Jaraguá, whose space is meager and the environment densely occupied. The daily challenges to the management of connections and disconnections that individuate them as Guarani will be addressed through knowledge practices about food and commensality. An emphasis will be placed on how my interlocutors distinguish what they call “living food” and “dead food”. In the consumption of “living food”, it is necessary to manage relations with its spirits-owners. In the case of “dead food”, such as ultra­processed products, the relationships that constitute them are eclipsed, making their agentive potential uncertain (and dangerous). Departing from this distinction, I intend to point out Guarani reflections and inflections on alterity, vulnerability and the topic of commodities.

Keywords: Guarani, São Paulo, food and commensality, commodities, indigenous peoples in urban context, vulnerability

 

Introdução com bolachas

Era uma tarde de maio de 2015 e eu conversava com Tupã Mirῖ, morador da aldeia Tekoa Pyau, na Terra Indígena (TI) Jaraguá, situada na região noroeste da cidade de São Paulo.[1] Karai Poty, o principal “líder espiritual” – como os guarani-mbya costumam traduzir karai para o português, por seu poder de cura, orientação e visão do que está distante no espaço ou no tempo – da aldeia, havia se mudado para outro local, no extremo sul da metrópole.[2] Diferentemente do que acontece em Tekoa Pyau, aquela outra área ainda conta com mata e uma grande cachoeira, razão pela qual a aldeia foi chamada Yrexakã (“Água Reluzente”).

Indaguei a Tupã Mirῖ porque tanta gente tinha ficado no Jaraguá. Ele alegou que muitos tinham cargos assalariados no CECI (Centro de Educação e Cultura Indígena), instituição municipal de educação infantil, na escola estadual e no posto de saúde da TI. Havia também a luta pelo reconhecimento de novos limites para a terra no Jaraguá, que seria enfraquecida com o esvaziamento da aldeia. Ainda, muitos preferiram não ir porque nas proximidades da aldeia Yrexakã é muito difícil o acesso ao comércio e outros serviços. Tupã Mirῖ ponderou que as crianças que cresceram no Jaraguá adoeceriam se comessem só caça e coisas plantadas, tampouco aguentariam tratarem-se apenas com remédios da mata. Ele explicou que comida é como vacina, transforma os corpos para serem afetados por umas coisas e não por outras, pegarem algumas doenças e não outras. Seus corpos haviam crescido com bolachas e outros alimentos que só se encontram na cidade, de modo que poderiam adoecer longe deles.

A esse respeito, um falecido karai em uma aldeia no litoral paulista disse que o excesso de bolachas e alimentos das fábricas faz com que muitas crianças no Jaraguá nasçam com a pele mais branca. A despeito de serem guarani, sua aparência é de jurua (não indígena) por causa da alimentação de sua mãe durante a gestação (Macedo 2009: 264). Tais elaborações não são consensuais, mas trazem à cena um universo conceitual que remete àquilo que Viveiros de Castro designou como “formas alimentares da vida religiosa” (Castro 1986: 320), alterando os ingredientes da fórmula durkheimiana para realçar a centralidade do corpo nos modos ameríndios de conceber a individuação de pessoas e coletivos.[3] A alimentação é central na constituição de corpos que se reconheçam como mutuamente humanos, bem como na incorporação de outros que os estão sempre alterando. Contudo, a potência afectiva dos alimentos não depende apenas do que (ou quem) se come, e sim de como e com quem se come.[4] Os alimentos fazem (e desfazem) parentesco, incidindo na composição dos corpos e na definição de com quem eles poderão compor-se. A exemplo das bolachas, os alimentos fazem “acostumar”. Mas são também familiarizados, ou desagenciados em sua afecção predatória/patogênica, por aqueles que comem juntos.[5]

Algumas crianças já não prescindem das bolachas, e talvez muitos guarani no Jaraguá já não se acostumem a viver longe da cidade. Mas não prescindem da vida entre parentes, cujas conexões se atualizam na vida cotidiana, desde o primeiro ka’a’u (infusão de erva-mate) e petỹgua (cachimbo com tabaco) ao amanhecer, até o último canto-reza das noites na opy (que traduzem como “casa de reza”). Como as bolachas nos corpos, São Paulo está na aldeia, em seu espaço exíguo cercado por rodovias, no esgoto a céu aberto, nas casas construídas com chapas de compensado. Mesmo assim, como ressalvou Karai Poty no processo de reivindicação pela revisão de limites da TI (apud Pimentel 2009: 360), quando os guarani “se acostumam” (-vy’a) em um lugar, é porque ali existe forte conexão com Nhanderu (“Nosso Pai”, como se referem aos imortais que habitam as aldeias celestes de modo geral ou a um deles em particular).[6] A despeito de todas as adversidades, aquele é um tekoa guarani, inserido num universo de relações singulares das quais este texto buscará aproximar-se.

Alguns meses depois da mudança, Karai Poty retornou ao Jaraguá por não ter se acostumado a ficar distante das pessoas no Tekoa Pyau, enquanto famílias de outras aldeias foram para Yrexakã. Posteriormente, em meados de 2018, ele deixou novamente o Jaraguá para fundar uma nova aldeia no interior de São Paulo. A circulação de pessoas e famílias em uma ampla rede de aldeias, que no caso de São Paulo se adensa nas regiões Sul e Sudeste do Brasil, é um tema pungente na etnologia guarani (Ladeira 2007; Pissolato 2007; Veiga 2013; Pierri 2018a; etc.). Informações do Mapa Guarani Continental para o ano de 2016 estimam um contingente guarani de mais de 280 mil pessoas, distribuídas em regiões da Argentina (54.825), Bolívia (83.019), Brasil (85.255) e Paraguai (61.701).[7] Os modos como essas populações se diferenciam ou foram classificadas em diferentes parcialidades não serão aqui abordados (ver Macedo 2017a), mas cabe destacar que as aldeias na cidade de São Paulo contam com uma população majoritária que se reconhece ou é reconhecida como guarani-mbya. No Brasil, os mbya somam mais de 13 mil pessoas (Salles et al. 2015), vivendo em aldeias nos estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, São Paulo, Rio de Janeiro, Espírito Santo e Pará. Também estão presentes no Paraguai e na região argentina de Misiones.

A próxima seção do texto introduz aspectos históricos e conjunturais da presença guarani em São Paulo, com foco na TI Jaraguá. Para pensar os jurua e a cidade no universo relacional guarani, a seção seguinte toma como principal mote o conceito de “alimento morto” entre moradores do Tekoa Pyau, a exemplo dos produtos ultraprocessados, em razão do eclipsamento dos vínculos e processos que os constituem. A ideia aqui é centrar foco na incorporação de mercadorias numa economia em que o consumo se efetiva como síntese disjuntiva entre dádiva e captura,[8] particularmente no que seria uma inflexão guarani do conceito marxista de “fetiche da mercadoria”, em que na coisa estão eclipsadas as relações que a constituem. Já a última parte se volta para o que é reconhecido como “alimentos vivos”, centrando foco em práticas de conhecimento sobre alimentação que circulam e engajam os moradores do Jaraguá nessa ampla rede de aldeias entrecortadas por centros urbanos, estradas, fazendas e parques. Adversidades decorrentes dessa proximidade com os não indígenas são mais intensas em regiões urbanizadas como o Jaraguá, classificadas como de alta “vulnerabilidade social” em políticas públicas e projetos. A conclusão do texto busca tensionar tal classificação a partir de concepções guarani sobre vulnerabilidade.

 

Os guarani em São Paulo e São Paulo nos guarani

Entre os jurua que passam pela Estrada Turística do Jaraguá (via principal de acesso à aldeia), o Tekoa Pyau não raro é visto como uma das diversas favelas dessa região.[9] Trata-se de um terreno íngreme, com a maioria das casas construídas com chapas de madeira e saneamento precário. A aldeia fica numa área que está em processo de reconhecimento oficial como parte da TI Jaraguá, que em 2013 foi identificada em 532 hectares pela Funai (Fundação Nacional do Índio) e declarada pelo Ministério da Justiça em 2015, mas cuja homologação não foi efetivada por decreto presidencial. Essa extensão corresponde a uma ampliação da área de 1,7 hectares homologada em 1987, que fez com que essa TI fosse conhecida como a menor do mundo, correspondente à área da aldeia Tekoa Ytu, no outro lado da rua.[10]

Como mencionado, no Tekoa Pyau vive Karai Poty, reconhecido como um dos mais importantes karai das aldeias do Sul e Sudeste do Brasil. O Tekoa Pyau é assim uma das aldeias que está mais distante do nhandereko, modo de existência que os guarani reconhecem como de sua gente, e uma das que mais se aproxima daquilo que é mais fundamental para o nhandereko, que é a força da conexão com as aldeias celestes. Entre as adversidades que enfrentam, seus moradores destacam a exiguidade da terra e a proximidade crescente dos jurua. Mas nem sempre foi assim.

A TI é vizinha ao Parque Estadual do Pico do Jaraguá, inaugurado em 1961 no âmbito de comemorações do IV centenário da cidade, já que se tratava de uma área de mata mencionada em fontes históricas desde o primeiro ano da colonização. Em data próxima à criação do parque, um terreno vizinho foi cedido para a formação de uma aldeia guarani, reforçando sua vocação “pitoresca” por remeter a uma São Paulo antiga, em que os guarani (também chamados carijó nas fontes históricas) estiveram presentes desde o período colonial. Um membro da Sociedade Geográfica Brasileira cedeu um terreno para uso dos indígenas, dada a precariedade de suas condições na cidade, em que famílias estavam vivendo debaixo de pontes ou em terrenos baldios. Ali passaram a viver Kerexu Mir (Jandira) e Joaquim, hoje falecidos, com seus filhos, posteriormente com os netos, e atualmente também bisnetos e tataranetos. Tratava-se de um bairro predominantemente rural e com muitas áreas não tituladas, cuja vegetação não estava restrita ao parque estadual, de modo que os guarani caçavam e plantavam em diferentes espaços da região (Ladeira e Azanha 1988; F. Silva 2008; Pimentel 2009; Moraes e Franco 2018).

O loteamento e a ocupação das áreas no entorno da aldeia por não indígenas só foram intensificados com a inauguração da Rodovia dos Bandeirantes, em 1978. Na década de 1980, a população do distrito praticamente dobrou e até hoje vem experimentando intensa expansão imobiliária voltada para um público classificado como de classe média e classe média-baixa, além de ocupações em favelas.[11] Não deixa de ser irônico que a rodovia tenha sido batizada em homenagem aos “bandeirantes”, personagens da história brasileira cujo ímpeto colonizador se dava às custas das terras e das vidas de milhares de indígenas. O antagonismo dos bandeirantes – e sua identificação com o atual empreendedorismo predatório de empresários e do agronegócio – vem sendo mote nas manifestações dos guarani por seus direitos fundiários. Desde 2013, tais manifestações vêm ocorrendo em locais emblemáticos, como a Rodovia dos Bandeirantes e o Monumento às Bandeiras (próximo à Assembleia Legislativa), bem como na avenida Paulista (coração empresarial da cidade) e no Pateo do Colégio (local de fundação de São Paulo e missionamento dos indígenas que ali já viviam).[12]

Igualmente significativo é o nome da outra rodovia que cerca a TI, Anhanguera, alcunha de um bandeirante paulista, cujo significado em tupi-guarani remete a espíritos maléficos (anhãkuery, no dialeto guarani-mbya). Ainda, a TI encontra-se a apenas três quilômetros do trecho oeste do Rodoanel Mário Covas. A área incidente no parque vai restando como uma das poucas alternativas de mata na região, mas ali os guarani não são autorizados a plantar e caçar. Os novos limites da TI previam a sobreposição de 308 hectares com o parque estadual, de modo que os guarani vinham estabelecendo parcerias para um etnozoneamento que subsidiasse o manejo sustentável da área; porém, tais iniciativas foram desencorajadas com a suspensão da portaria que declarava a TI e a conjuntura desfavorável da política indigenista desde a tramitação da proposta de emenda constitucional 215. Esta prevê que o processo demarcatório de terras indígenas deixe de ser uma atribuição do poder executivo, devendo ser aprovado também no legislativo, onde ficaria suscetível a interesses políticos. No caso do Jaraguá, interesses privados convergem com os da Secretaria Estadual de Meio Ambiente, que pretende privatizar boa parte dos parques paulistas.

Em 1987, a TI Jaraguá integrou um conjunto de oito terras indígenas homologadas para uso de populações guarani no estado de São Paulo. Na capital paulista, foram também reconhecidas as TI Krukutu e Barragem, no extremo sul da cidade, cada uma com cerca de 25 hectares. A demarcação dessas áreas não seguiu o que seria estabelecido como “direitos originários” (anteriores à própria formação do Estado) no artigo 231 da Constituição Federal promulgada em 1988, pois não contemplava as áreas necessárias para a reprodução física e cultural das atuais e futuras gerações, ficando limitadas ao perímetro das aldeias. Por essa razão, processos de revisão/correção dos limites dessas TI – em que Barragem e Krukutu passariam a integrar a TI Tenonde Porã – e reconhecimento de outras não tardaram a iniciar, mas em sua maioria não foram homologados até hoje. Desde 2006, a Comissão Yvyrupa, que reúne lideranças das aldeias do Sul e Sudeste do país, vem atuando intensamente pelo reconhecimento de seus direitos fundiários.[13]

Nas lutas pela demarcação das terras nos anos 1980, Karai Poty esteve na linha de frente, assim como outros karai. Nascido no Espírito Santo, ele crescera em aldeias da Serra do Mar, vivendo a maior parte da infância na aldeia Rio Branco (Itanhaem, SP) e no Rio Silveira (São Sebastião, SP) na juventude. Após os 40 anos, ele se muda para São Paulo, onde posteriormente se tornaria cacique na Barragem (hoje mais conhecida como Tenonde Porã). No início dos anos 1990, ele passa alguns anos na aldeia Boa Vista (Ubatuba, SP) e em meados da década vai viver com sua prima Jandira no Jaraguá (F. Silva 2008).

Segundo contou-me Eunice, uma das filhas de Jandira, inicialmente, Karai Poty e sua família viviam no Tekoa Ytu, usando a área em frente à aldeia para plantio. Mas alguns anos depois resolveram construir suas casas ali, onde Eunice já morava. Nos anos seguintes, dezenas de famílias de outras localidades também foram mudando-se para essa nova aldeia para estarem próximas a Karai Poty, acompanhando-o nos cantos-rezas noturnos e contando com ele para curas, proteção e orientação.

A convivência com os jurua foi desde o início tensa, pois em 1996 já sofreram um primeiro pedido de reintegração de posse do terreno incidente no Tekoa Pyau, sendo ameaçados de expulsão pela Polícia Militar. Mas obtiveram apoio do Ministério Público Federal, que garantiu sua permanência na área sob proteção da Polícia Federal. Nesse mesmo ano, o processo de reconhecimento de novos limites para a TI Jaraguá foi iniciado, mas seguiu um caminho tortuoso em razão de disputas fundiárias com jurua, e ainda hoje a homologação não foi feita (ver F. Silva 2008, 2015; Moraes e Franco 2018).

O aumento populacional foi restringindo as possibilidades de plantio e deteriorando as condições sanitárias da aldeia. Algumas melhorias foram feitas nos últimos anos, mas os guarani ainda sofrem com problemas de esgotos, falta constante da água, coleta de lixo, entre outros. Há ainda desafios relativos aos tensionamentos constantes pela convivência num espaço exíguo para tantos núcleos familiares, em contraste com o padrão tradicional das aldeias guarani, constituídas por apenas algumas famílias vinculadas sob a liderança de um casal de karai e kunhã karai.

A busca por mais espaço está sempre no horizonte e, em 2005, algumas famílias voltaram a ocupar uma antiga área de caça e coleta na região, constituindo a aldeia Itakupe. O local estava na iminência de se tornar um conjunto habitacional e é de suposta propriedade de um empresário e político, que vem travando uma guerra jurídica e midiática com os guarani na disputa pela área. Em 2016, outra aldeia também foi constituída em uma área alguns quilômetros adiante, na Rodovia Anhanguera. Assim como Itakupe, a aldeia Itataendy fica no alto de um morro e conta com região de mata. Em 2017, outra pequena aldeia também se constituiu nas vizinhanças do Tekoa Ytu. Essas aldeias estão dentro do perímetro reivindicado na nova delimitação da TI Jaraguá. Nelas, os guarani têm se dedicado ao plantio, promovendo mutirões para roças e buscando envolver crianças e jovens nessas atividades. Na região sul da cidade o mesmo se passou, após a declaração de pouco mais de 15 mil hectares pelo Ministério da Justiça como de posse permanente dos guarani: novas aldeias vêm se formando e as comunidades seguem empenhadas em fortalecer o nhandereko por atividades cotidianas de plantio de roças e árvores frutíferas.

De modo mais intenso do que no extremo sul de São Paulo, porém, no Jaraguá a cidade segue crescendo no entorno das aldeias, adensando sua malha viária, indústrias, comércio, prédios e favelas. Esse crescente confinamento é também percebido pelos guarani na composição e transformação de seus corpos.

 

“Alimento morto”: eclipsamentos e fantasmagorias

Em parceria com Karai Ryapua, morador do Tekoa Pyau, em junho de 2015 participei de um seminário na Universidade Federal de Minas Gerais, intitulado “Comendo como Gente: Práticas de Alimentação e Comensalidade entre Povos Indígenas”. Tomando de empréstimo o título de uma obra de Aparecida Vilaça (1992), o seminário nos incitava a abordar a centralidade da alimentação na feitura de corpos que sejam mutuamente entendidos como humanos, “nossa gente”, e das cosmopolíticas implicadas na comensalidade, já que aqueles que comemos podem ser gente também, “outra gente”. Essa dupla dimensão, em que a constituição de um “nós” é também a incorporação de outros e o manejo de suas afecções, foi tematizada por Karai Ryapua com eloquência por meio dos conceitos de “alimento vivo” e “alimento morto”.

Para o povo guarani, o “alimento vivo” é o que tem espírito, explicou Karai Ryapua. É preciso estabelecer uma relação com o dono-espírito do alimento para consumi-lo, e mesmo antes, para caçá-lo, pescá-lo, coletá-lo ou cultivá-lo. Na direção do que disse Karai Ryapua, cabe destacar a preferência dos guarani por armadilhas (monde, mondepi ou nhuã) na caça. Dizem que o animal cai na armadilha quando o dono-espírito já o deu para o caçador. Usos indevidos de seus domínios podem provocar retaliações (-jepy) desses espíritos, causando doenças e outras adversidades. Entre estas, figura o -jepota, quando uma pessoa é seduzida e aparentada por um dono-espírito extra-humano, frequentemente animal (Pissolato 2007; Macedo 2013; Pierri 2018b; etc.). Por isso, o aprendizado dessas relações, muitas delas mediadas pelos karai, é fundamental para a vida nesta terra onde aquilo que se come é ou foi aquele que se come. São necessárias ações de dessubjetivação desses outros para que possam ser consumidos como alimento, entre os guarani protagonizadas por rezas e fumaça do petỹgua (cachimbo com tabaco).

Em alimentos produzidos e embalados nas fábricas, bem como na água que chega pelo cano e da qual se desconhece a fonte, tais relações encontram-se eclipsadas, sendo por isso considerados “mortos”. O mesmo ocorre com os remédios da farmácia, também chamados de “mortos”, em contraste com os remédios da mata (ka’aguy moã). Para além da fala de Karai Ryapua no seminário, moradores de aldeias nas TI Jaraguá e Tenonde Porã também reconhecem alimentos envenenados com agrotóxicos como “mortos”, pois incorporam a potência definhante e de origem desconhecida dos venenos industriais. Karai Ryapua era educador no CECI, e a enunciação de produtos ultraprocessados ou cultivados com agrotóxicos como “alimentos mortos” vem sendo mobilizada sobretudo pelos professores nas aldeias, ao reivindicarem “alimentos vivos” para as crianças nas escolas (Maymone 2017).

Há muito os guarani conhecem e relacionam-se com esses produtos, dada a proximidade de boa parte das aldeias com cidades e estradas. Mas no Jaraguá é mais intenso o consumo de bolachas, refrigerantes, salgadinhos, salsichas, macarrão, suco em pó e outros alimentos ultraprocessados, em razão da exiguidade da terra e da urbanização crescente do entorno. A despeito de serem comumente apreciados pelo sabor doce ou por seus condimentos, dizem os guarani que esses alimentos fazem os corpos “pesados”. Tal peso não diz respeito a um excesso de adiposidade, e sim àquilo que chamam de “sujeira” (-ky’a), vinculada a uma maior propensão à perecibilidade (marã) dos corpos. O corpo “pesado”, portanto “sujo”, diminui a capacidade de agir em conexão com os Nhanderu e Nhandexy (“Nosso Pai” e “Nossa Mãe”), deixando a pessoa suscetível a agenciamentos patogênicos. Desse modo, vinculam o aumento de doenças ao maior consumo da comida jurua. Aquilo que os brancos classificam como alimento ultraprocessado é aquele em que, justamente, não se tem acesso aos processos que o trouxeram à existência.

De acordo com a definição de pesquisadores na área de nutrição, alimentos ultraprocessados são aqueles compostos industrialmente por diversos ingredientes, dos quais poucos ou nenhum são in natura (não processados industrialmente). Costumam contar com alta presença de açúcares, sal, óleos, gorduras, estabilizantes e aditivos com a função de ocultar atributos ­sensoriais ­indesejáveis ou simular características de alimentos in natura (Monteiro et al. 2016; ver também Maymone 2017). Assim, não se sabe quais são seus vínculos, sua proveniência e, portanto, suas potências afectivas. Eles ocultam, simulam, enganam os sentidos, e ainda faz parte de sua fantasmagoria a aparente desconexão com os donos-espíritos (ija) responsáveis pelos diferentes domínios da vida nesta terra. Os ultraprocessados são por isso associados por muitos guarani aos espíritos dos mortos, ãgue, aqueles que já tiveram sombra (ã), corpo, e agora vagam pelos lugares e corpos dos vivos, adoecendo-os.

Assim como plantas, animais e demais seres com vida têm espírito, os guarani identificam como seus donos, Nhandejara (“Nosso Dono”), os imortais que vivem em aldeias celestes e são pais e mães de seus nhe’, sendo por isso mais comumente chamados de Nhanderu e Nhandexy. Os nhe’ são aqueles que habitam as pessoas na condição de sua alma, aproximando-se do corpo durante sua gestação e assentando-se nele nos primeiros anos de vida. O domínio das primeiras palavras e controle dos movimentos do corpo são indicadores da presença do nhe’. É preciso então saber seu nome, que indicará qual é a sua proveniência entre as aldeias celestes dispostas a diferentes distâncias da Terra e diferentes direções em relação ao trajeto do Sol (Ladeira 2007; Pierri 2018b; etc.). A conexão entre a pessoa e seu nhe’ é objetificada pelo nome, sem o qual a pessoa fica perdida, sujeita a toda sorte de agenciamentos nessa terra. O nome posiciona a pessoa numa cartografia cósmica, assegurando sua condição de sujeito em seus movimentos na terra. Essa condição é perdida com a desconexão do nhe’, que pode ser provisória, durante adoecimentos, ou definitiva, por ocasião da morte. O nhe’ então volta para sua morada celeste e o defunto ganha a condição de re’õgue por sua paralisia e moleza. Por sua vez, tembiu re’õgue é como a “comida morta” me foi traduzida. Mas, longe de tornar inertes os corpos, a morte reconfigura suas potências. O que é perecível transforma-se em ãgue, espírito que vaga por essa terra com potencial patogênico para os vivos.

Os alimentos, a seu turno, também são vinculados a espíritos. Assim como o nhe’ na pessoa tem a sua proveniência celeste codificada pelo nome, saber qual a proveniência/vinculação de um alimento é fundamental para conhecer seu potencial agentivo. Ocultando essas conexões, o “alimento morto” tem o caráter fantasmagórico e potencialmente patogênico dos ãgue, vagando pelos lugares e pelas pessoas, decompondo as relações que as constituem.

Por sua opacidade relacional, é possível interseccionar o conceito de “alimento morto” com a formulação marxista de “fetichismo da mercadoria”. Segundo Marx, as mercadorias transacionadas no capitalismo eclipsam as relações de trabalho e dominação de que resultam, adquirindo existência supostamente autônoma, ou a “forma fantasmagórica de uma relação entre coisas” (2013 [1867]: 206). Todavia, enquanto a acepção marxista pressupõe um mundo crivado pela divisão entre pessoas e coisas, em que estas resultam do trabalho humano ou estão dadas na natureza, as premissas guarani remetem à continuidade ou reversibilidade entre elas. Todas as criaturas estão vinculadas a donos-espíritos, sendo componentes destacáveis, mas não completamente alienáveis, de seus corpos-domínios. Como é comum nos mundos ameríndios, matéria e espírito, o que é visível e invisível, não constituem características intrínsecas, mas efeitos de perspectiva que variam a depender do que podem os corpos em relação.

Como são incertos os donos-espíritos de alimentos industrializados, os efeitos das relações que eles objetificam também são, como pondera um guarani em uma aldeia no Vale do Ribeira, SP:

“Por isso que não dá pra comer só comida do jurua. Como é que eu vou pedir para o dono dessas comidas? Eu nem sei quem eles são, são muitos. E devem morar muito longe. Quem é o dono do pão, o dono do sorvete, do danone, do arroz? Não sei. Por isso que não podemos comer só a comida jurua, a gente fica doente mesmo” (Paulo Cavanha, apud L. Silva 2018: 105).

Diferentemente dos pressupostos marxistas, para os guarani, a fantasmagoria do produto industrializado não remete à ocultação de relações que projeta um mundo ilusório, mas à ocultação de relações que produz um mundo perigoso. De sorte que, mais do que ao “fetichismo da mercadoria”, a invisibilidade e impotência produzidas pelo “alimento morto” podem ser aproximadas ao que Stengers e Pignarre (2007) reconheceram como “feitiçaria do capitalismo”. Os autores apontam a contemporaneidade da origem do capitalismo com a erradicação de práticas de feitiçaria e a opressão crescente das mulheres na Europa. O capitalismo buscou exterminar as feiticeiras, mas tornou-se um sistema feiticeiro, pela invisibilidade e impotência que produz quanto a capacidade de reagir à sua produção de verdades, conformidades e conformismos. Nesse sentido, a preocupação dos guarani com o “alimento morto” expressa a vulnerabilidade daqueles que o consomem – mas é justamente ao reconhecê-la que podem se proteger contra seus modos de captura.

Mesmo longe das cidades e das mercadorias, a vulnerabilidade é uma condição inescapável daqueles que vivem nesta terra marcada pela perecibilidade. Tekoaxy é como os guarani designam essa condição, vinculando “modo de viver” (teko) e “sofrimento” (axy). Os seres são compostos e alterados por outros, de modo que seu sofrimento ou vulnerabilidade depende do manejo dessas composições, que podem aumentar ou diminuir sua potência de agir.[14] Nesse sentido, nas falas em guarani é comum referirem-se aos alimentos cuja potência é definhante como tembiu rekoaxy, a comida que adoece ou enfraquece os corpos. Mesmo que eclipsados em produtos industrializados e em contextos urbanos, os guarani não deixam de ponderar sobre os “quem” das coisas e relações.

O fetichismo ou fantasmagoria das mercadorias entre os guarani remete assim menos à falsidade do que à eficácia metamórfica das coisas, que podem se animar ou se tornarem inertes, a depender da forma de participação. Não há exterioridade possível em relação aos agenciamentos, de modo que a condição tekoaxy dos viventes nessa terra demanda aquilo que Stengers (2007, 2011), em sua proposição cosmopolítica, chamou de uma “arte das consequências”, em que nada é inócuo, exigindo cuidado, proteção, experiência.

Daí a busca, entre os guarani, de relações pautadas pela dádiva, seja na comensalidade entre parentes e afins, seja na diplomacia com os donos-espíritos que doam suas criaturas, ou mesmo em intercâmbios com os jurua, importantes provedores no mundo de hoje. Mas diferenças potenciais e suas implicações transformacionais estão sempre em jogo, havendo uma reversibilidade intrínseca entre e dádiva e predação.[15] “Existências autônomas” (como a fetichização das mercadorias) são impensáveis nesse universo relacional, de modo que o potencial alienante do “alimento morto” são os desaparentamentos que ele pode engendrar, incorrendo em novos e desconhecidos parentescos.

Como destacou Ramo y Affonso (2018), no jogo do parentesco é preciso criar aproximações a uns (constituindo e atualizando um corpo de parentes) para efetuar por implicação o afastamento de outros (pertencentes a outro corpo de parentes possível). De modo que o potencial predatório do “alimento morto” pode ser amenizado pela comensalidade entre os parentes. Mesmo que os ingredientes sejam jurua, não se come como nem com os jurua. Nesse sentido, Karai Ryapua destaca que ingredientes “mortos” podem não fazer tão mal se forem preparados pelos parentes. Na mesma chave, mesmo que os ingredientes sejam “vivos”, se forem preparados por uma mulher menstruada, por exemplo, poderão fazer mal, vertendo-se em tembiu rekoaxy, já que o sangue aciona a potência predatória de espíritos. O mesmo acontece se não forem devidamente solicitados e posteriormente desconectados de seus donos. No caso do “alimento morto”, essa desconexão não se efetua plenamente, justamente porque se desconhece as conexões.

A questão, portanto, são as implicações entre pessoas (visíveis e invisíveis, conhecidas e irreconhecíveis) produzidas pela comensalidade, tanto na produção do parentesco quanto na atualização de diferenças. Tais vetores podem operar concomitantemente, já que as alterações promovidas pelo “alimento morto” são experimentadas coletivamente por aqueles que comem juntos, e que, portanto, se alteram juntos, não se desaparentando. Assim compreendo a ponderação de Tupã Mirῖ que inicia este texto, em que as crianças no Jaraguá já não prescindem de produtos industrializados, mas tampouco prescindem da vida entre os parentes.

Assim como alimentos em suas embalagens industriais, circula no Tekoa Pyau uma imensa quantidade e variedade de pessoas e instituições cujas proveniências e intenções não são fáceis de captar. Missionários de diferentes religiões e igrejas, comerciantes, políticos, antropólogos, filantropos, doentes, pessoas em busca de razões para viver, outras em busca de vidas para suas razões… Os moradores do Jaraguá são assim desafiados a lidar com múltiplos jurua, manejando a criação de vínculos e desconexões. Os guarani raramente rejeitam ou impedem visitas, doações, projetos e demandas das mais diversas, mas manejam essas relações de modo a posicionar os jurua como provedores, mas não controladores ou patrões que imponham regras e procedimentos (Macedo 2018). Também se evita comer com eles e, mesmo em eventos em que os jurua fornecem a comida, os guarani costumam orientar os visitantes a comerem primeiro e só depois eles comem.

No âmbito do parentesco, os casamentos com jurua são sempre controversos, sobretudo a produção de filhos, pois os sangues não misturam, o nhe’ não se acostuma e o sujeito, ou pessoa próxima a ele, definha (Macedo 2017a). Nesse aspecto, o Tekoa Ytu tem uma configuração singular, por ser uma das raras aldeias de maioria mbya em que se tem uma alta incidência de casamentos com brancos. De acordo com Fabio Silva (2008), Joaquim, fundador da aldeia, adoeceu quando criança e foi separado de seus parentes, tendo sido criado por um casal de alemães protestantes. Já com 18 anos, ele reaproximou-se dos guarani nas aldeias do litoral e posteriormente casou-se com Jandira. Mesmo participando da rede de aldeias mbya, a maioria de seus filhos e muitos netos acabaram casando-se com não indígenas. Mas, de modo análogo aos alimentos jurua, cuja potência patogênica é amenizada pela comensalidade entre os parentes, os cônjuges jurua foram sendo familiarizados pela convivência, o uso do petỹgua, o aprendizado dos cantos-reza, da dança xondaro e outras práticas na opy. Ainda assim, sua presença no Tekoa Pyau é bastante controversa, sendo o principal mote de tensões entre moradores das aldeias do Jaraguá.

Para a maioria dos guarani, assim como não se come com os jurua, também não se come como os jurua. A refeição sobre mesas geralmente só ocorre na escola e no CECI e não há horário fixo para as refeições, com exceção daquelas oferecidas nas instituições escolares. Muitos possuem fogões a gás, mas é difícil que uma família ou um conjunto de famílias aparentadas não mantenham seu fogo de chão, onde podem cozinhar, esquentar a água para o chimarrão e o café, acender os petỹgua e se aquecer. A população do Tekoa Pyau é muito maior do que a média nas aldeias guarani e há ali muitos adensamentos familiares que buscam constituir seu espaço de convivência mais próxima, por vezes estabelecendo uma área comum a um conjunto de casas, onde realizam atividades como cozinhar e comer juntos, lavar roupa, cuidar das crianças, fazer artesanato, fumar petỹgua, tomar chimarrão e conversar.

Na Pyau, como nas aldeias guarani em geral, ao acordar, o espírito costuma ser alimentado pelo petỹgua e ka’a (“chimarrão” com erva-mate), sendo ocasião para comentarem experiências que viveram em sonho durante a noite. Mais adiante pode ser preparado o xipa, massa frita de farinha de trigo achatada e em formato circular, acompanhado de café adoçado e diluído. A refeição principal, que não possui horário fixo (a não ser na escola), costuma incluir arroz, feijão e por vezes macarrão, que podem ser misturados à farofa de milho (rora) ou trigo (reviro). Essa mistura pode ser comida com colher ou moldada em bolinhos comidos com a mão. A carne de frango é a mais recorrente, seguida de salsichas ou linguiças. Por seu custo maior, carne bovina e peixe geralmente são mais consumidos na escola.

São poucos os guarani que fazem refeições após anoitecer, pois o corpo deve estar leve para as rezas na opy, que são mais frequentes e intensas durante o ara pyau (“tempo novo”), ciclo sazonal de correspondência aproximada com a primavera e o verão, quando os espíritos estão mais fortalecidos e renovados nas aldeias celestes e nesse plano terrestre, yvyrupa. Durante a noite, em casa ou na opy, costumam tomar ka’a e fumar petỹgua, podendo consumir xipa e café nas ocasiões de rezas mais longas.

Como ocorre em diversas aldeias em que a escola oferece refeições, no Jaraguá há adultos que almoçam com os filhos nesses espaços. Os guarani buscam pleitear ingredientes frescos junto aos órgãos públicos, mas, segundo levantamento de Maymone (2017), diversos produtos ultraprocessados são enviados, principalmente à escola estadual, localizada no Tekoa Ytu, mas também ao CECI, na Tekoa Pyau. De todo modo, foram atendidos em sua reivindicação de que os cozinheiros e assistentes fossem guarani. O CECI também mantém uma horta e desenvolve atividades de plantio de árvores frutíferas com as crianças. Há ainda uma área externa em que costumam assar milho, batata-doce e peixe. Para além do ambiente escolar, há famílias que buscam plantar em seus quintais, mesmo que o espaço seja exíguo. Esse, aliás, é um modo preferencial de plantio em muitas aldeias guarani, em alternativa a roças grandes e coletivas (Felipim 2004). Como mencionado, as novas aldeias Itakupe e Itaendy possuem terras boas para plantio e os moradores da Pyau e da Ytu também participam de mutirões de roças nesses espaços, inclusive como atividades escolares.

Há assim a busca de fortalecer relações e corpos com tembiu porã, “alimentos bons”, que em suas reivindicações junto às secretarias de educação e órgãos públicos enunciam como “alimentos vivos”. Contudo, os moradores do Jaraguá vivem hoje desafios comuns aos moradores das periferias urbanas, como o acesso ampliado a bebidas alcoólicas, às chamadas drogas ilícitas e a situações de violência. Há também conexões potentes com formas expressivas da ­periferia, como a formação de grupos de rap que vêm ganhando projeção para além das aldeias.

A vida no Jaraguá, bem como em outras aldeias, ao tempo que se afasta da vida dos antigos, atualiza de modo ainda mais incisivo questões postas desde os tempos primordiais, quando os guarani passaram a compartilhar com outros viventes nesta terra a condição tekoaxy dos corpos, por sua perecibilidade. É pelos efeitos de outros que os corpos tekoaxy experimentam o mundo, alternando fortalecimento e definhamento. A suscetibilidade da condição de vivente é, portanto, também sua força, ensejando conexões que maximizem a potência de existir, mesmo em meio às maiores adversidades (Macedo 2017a).

 

“Alimento verdadeiro” e suas afecções

Entre os guarani, a leveza do corpo remete ao despojamento de sua perecibilidade. Dizem que antigamente, quando não se comia tanto sal, óleo e açúcar, alguns conseguiam ficar tão leves que alcançavam as moradas celestes dos imortais com seus próprios corpos, que não se apartavam do nhe’ nem encontravam a morte. Os karai que conseguiram ir com seus corpos atingiram esse estado de leveza por meio de danças e cantos, fumaça de tabaco e um regime alimentar constituído apenas por tembiu ete’i, “alimento verdadeiro”. Esses que alcançaram a imortalidade vivem num patamar celeste mais próximo da Terra do que de outros Nhanderu e são chamados Nhanderu Mirῖ.

O sentido de “verdadeiro” na expressão tembiu ete’i pode ser aproximado do sentido de “verdadeiros humanos” que constitui as autodesignações de tantos povos indígenas. Como destacou Viveiros de Castro (1996), trata-se de uma acepção perspectivista de verdade, em que se é verdadeiro/humano para uns e não para outros, a depender dos corpos e suas potências diferenciais. Tembiu ete’i são os alimentos das aldeias celestes que foram destinados aos guarani nas aldeias terrestres, porém em versões perecíveis. Como abordado por Pierri (2018b), a busca de imitação das divindades pelos guarani constitui o nexo diferenciante dos mundos terrestre e celeste, respectivamente marcados pelas categorias sensíveis do perecível e do imperecível. Mesmo sendo cópias perecíveis da comida dos imortais, os tembiu ete’i diminuem a perecibilidade dos corpos, cujo efeito transformacional foi experimentado pelos Nhanderu Mirῖ alcançando a imortalidade. Mas comer como os deuses e assim alcançar sua condição é hoje muito difícil, devido ao consumo da comida jurua.

Entre os cultivos que os guarani reconhecem como tembiu ete’i, a melancia (xanjau), por exemplo, é pequena e mais doce do que a jurua. Feijão (kumanda), amendoim (manduvi), abóbora (andai) e batata-doce (jety) também são diferentes dos que se encontram nos mercados. E, particularmente, as variedades de milho se distinguem do milho consumido pelos não indígenas, que chamam de avaxi tupi. Já o milho que Nhanderu deixou para os guarani é chamado de avaxi ete, “milho verdadeiro”. Entre as variedades de avaxi ete, estão o avaxi-ju (milho-amarelo), avaxi-para’i (milho-criança), avaxi-takua’i (milho-taquara), avaxi paraguaxu (milho-grande-mesclado), avaxi-ovy (milho-azul), avaxi’ũ (milho-preto), avaxi-x͂ (milho-branco), entre outras que se distinguem sobretudo pelas cores, mas também por tamanhos, formatos e maciez dos grãos e espigas.

Ao voltar-se para a culinária guarani, Tempass (2010) destaca o doce (-e’) como qualidade distintiva do tembiu ete’i. Tal doçura, contudo, não está necessariamente associada à proporção de açúcar no alimento, e sim aos afetos no corpo, produzindo leveza. Os Nhanderu Mirῖ são donos do koxi (queixada), fazendo sua carne doce. O avaxi ete e outros cultivos guarani também são doces, além das frutas e do mel. O autor aponta que a preferência por assar os alimentos e manter a casca durante o preparo são formas de acentuar sua doçura, e que a maciez e pequenez dos alimentos também estão associadas a seu caráter doce.

Entre os preparos recorrentes com milho, está o mbyta, espécie de pamonha que se faz com pasta de milho verde ralado e embrulhado em folha de uma palmeira para ser assado sob as brasas do fogo de chão. Uma variedade desse preparo é chamada ka’i repoxy (que traduzem como “bosta de macaco”), em que a massa de milho é posta dentro de uma taquara e assada sob o fogo. Também se prepara o mbojape, em que o milho duro é socado no pilão, moldado em formas arredondadas e assado diretamente nas cinzas do fogo de chão. Já o mbeju se faz sobre o fogo, assando uma massa circular e achatada de milho. Muito comuns também são as farinhas, que podem ser misturadas a outros produtos socados no pilão, como mandui kui (farinha de amendoim com milho). O milho fresco ou seco (ou mesmo na forma de fubá) ainda pode ser cozido na panela, no preparo de mbaipy, um ensopado que pode feito com o caldo de algum animal, como jacu, ou com outro vegetal, como batata-doce também socada e cozida. Há ainda o kaguijy, mingau que pode ser doce ou fermentado pela mastigação de meninas pré-púberes. Essas são apenas algumas entre inúmeras variações no preparo de alimentos com milho (Silveira 2011). A despeito de não serem consumidas cotidianamente no Jaraguá, tampouco em boa parte das aldeias atualmente, são poucos aqueles que nunca ouviram falar dessas comidas ou não as provaram em alguma ocasião.

Para além dos tembiu ete’i, muitos outros alimentos são “vivos”, como animais e plantas que, a depender da diplomacia com seus donos-espíritos, podem converter-se em tembiu porã, “alimentos bons”, ou ter efeito patogênico, convertendo-se em tembiu rekoaxy. No Jaraguá o acesso cotidiano ao tembiu porã é mais difícil pela exiguidade de terras e águas, a inacessibilidade da mata e a proximidade da cidade. Mas os corpos ali experimentam afecções de uma rede de parentes que se encontra dispersa num vasto território e diferentes patamares cósmicos.

Conhecimentos, afetos, histórias, pessoas, sementes, sonhos e outros materiais de diferentes aldeias circulam intensamente no Jaraguá. Muitos de seus moradores nasceram ou tiveram pais ou avós nascidos em aldeias do Paraná, sobretudo da TI Rio das Cobras. Muitos também nasceram ou viveram em aldeias na Serra do Mar, na costa sudeste. Há também conexões com aldeias em Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Espírito Santo e, particularmente, com as aldeias do extremo sul da capital paulista, onde boa parte dos moradores já morou. Sempre que podem, visitam parentes nessas aldeias, tanto individualmente como em família ou mesmo em grupos maiores, alugando vans ou ônibus, ou então financiados por projetos com ONG e instituições públicas. Em tais visitas podem passar um período com os parentes ou buscar novos parentescos, participar de rituais, tratamentos xamânicos, encontros políticos, jogos de futebol e forrós. A Internet, com destaque para o Facebook e o WhatsApp, tem maximizado essas conexões, por meio da troca de mensagens, músicas, filmes, mobilizações políticas, amizades, namoros, etc.

Karai Ryapua é um dos que destaca que não se deve falar de uma localidade guarani, e sim de um povo, pois as aldeias estão ligadas pela circulação de seres e conhecimentos. Entre estes, ele enfatiza cuidados com a alimentação em algumas passagens no ciclo da vida. Quando as meninas menstruam e os rapazes engrossam a voz, por exemplo, não devem comer muito sal, açúcar e gordura, pois podem vir a adoecer mais tarde. Também em adoecimentos, luto, gestação e couvade é preciso comer “coisas plantadas”, evitando alimentos amargos e itens muito condimentados. Mel e frutas também podem ser consumidos, assim como caça ou peixe de pequeno porte. Tupã Mirῖ comenta que o pai e a mãe de um recém-nascido não podem comer porco, boi, peixe, tampouco caça como paca e tatu. Apenas carne de jacu e cotia são aconselhados (apud Pimentel 2009: 364).

Durante o crescimento das crianças, também se ouve no Jaraguá sobre muitas práticas que remetem à ativação de capacidades em seus corpos (como coragem, agilidade, oratória, etc.), envolvendo gorduras, venenos e outras substâncias de animais e plantas. Mesmo que muitas dessas práticas não se efetivem, tais conhecimentos estão sempre ampliando o horizonte de possibilidades na composição dos corpos. O tabaco e a erva-mate talvez sejam as substâncias mais imprescindíveis, mas podem ser adquiridas no comércio na cidade. Ambas as plantas são fundamentais nas relações inter e intracorpos. A erva-mate é filha de Kuaray (Sol), o qual transformou seu corpo em planta para que ficasse na superfície da Terra com os guarani, enquanto ele e seu irmão Jaxy (Lua) foram habitar outro patamar celeste (Macedo 2017c). Associada à neblina de Nhanderu Jakaira, a fumaça do tabaco produzida pelo petỹgua conecta a pessoa com os Nhanderu e Nhandexy nas aldeias celestes, e também com parentes ou seres e acontecimentos em outros lugares e tempos. Ao passo que fortalece os corpos guarani, essa fumaça é insuportável a agentes patogênicos que estejam adoecendo as pessoas. Daí a centralidade do sopro da fumaça nas regiões atingidas do corpo para expulsão daquilo/daquele que está fazendo o corpo definhar ou se transformar de modo indevido.

Os alimentos também devem receber a fumaça dos petỹgua para que possam ser consumidos sem o perigo de agenciamentos patogênicos. Qualquer caça deve receber a fumaça do tabaco para que se transforme em alimento, desconectando-se de seu dono-espírito. Também as primeiras colheitas de plantios considerados dádivas de Nhanderu e Nhandexy aos guarani devem ser esfumaçadas. Espécimes dessas plantas são levados à opy e recebem a fumaça dos petỹgua e o sopro dos cantos-reza dos presentes. Não há espaço aqui para detalhar esses rituais, os nhemongarai, que guardam variações entre si e nas regiões em que ocorrem. Mas é significativo que os guarani os traduzam por “batismos”, já que ativam a conexão dos seres dessa terra com Nhanderu e Nhandexy, reforçando a implicação mútua de seus corpos. Também é significativo que esses rituais possam ser feitos para a nominação das crianças, já que o nome objetifica essa conexão da pessoa com o nhe’ proveniente das aldeias celestes.

Karai Tataendy passou a infância na TI Rio das Cobras (PR), para onde busca voltar todos os anos para plantar, rever os parentes e participar do nhemongarai. Karai Poty também já viveu em Rio das Cobras e em aldeias de Santa Catarina, onde sempre busca retornar. Ambos são karai no Jaraguá, onde têm acesso restrito ao tembiu ete’i, mas ambos são chamados com frequência para nomear as crianças em aldeias no Paraná e em Santa Catarina. Muitas dessas aldeias possuem terras e plantios, mas não contam com karai com a capacidade de mitã renõi, chamando os nhe’ das crianças no nhemongarai para revelarem seus nomes. Essa demanda me parece bastante significativa da posição do Jaraguá na rede de aldeias guarani-mbya, em que a exiguidade da terra contrasta com a amplitude da força xamânica.

Pouco se caça hoje em dia no Jaraguá, mas as relações com donos-espíritos se efetivam em diferentes circunstâncias, por exemplo na neblina que se forma em certos períodos do dia e do ano na montanha vizinha cercada pelo parque estadual, que os guarani reconhecem como a fumaça dos petỹgua dos ija dos animais e demais seres da mata (Pimentel 2009: 290). Assim como a cidade está na aldeia, os donos e outros espíritos estão na cidade.

 

Canos de água e pilares da terra

Iniciei esse texto com um episódio recente e concluo com outro que remete a uma lembrança da infância de um guarani quando morava na região sul da cidade de São Paulo, nos anos de 1970. Papa Mir Poty e seus amigos souberam que haveria uma corrida de Fórmula 1 na cidade, com a participação de Emerson Fittipaldi. Os garotos juntaram o máximo de moedas que conseguiram e foram ao autódromo de Interlagos tentar assistir à corrida. Chegando na bilheteria, disseram-lhes que a quantia não era suficiente para comprarem as entradas. Ficaram perambulando do lado de fora, vendo a juruazada entrar. Viram então uma tubulação para escoamento de água pluvial e seguiram por esse cano, conseguindo chegar até o interior do autódromo, onde puderam assistir à corrida de um ângulo privilegiado, segundo Papa.

Essas e outras histórias que se ouve nas aldeias contam de caminhos inesperados e perspectivas singulares com que os guarani há muito acessam a cidade. Elas nos apresentam outros ângulos, penso que privilegiados, para a questão da vulnerabilidade social. É assim que tendemos a conceber os indígenas na cidade, como supostamente alheios a seu próprio mundo (Nunes 2010). Projetamos nosso universo conceitual na avaliação daquilo de que estão privados ou do que precisam ser providos, a partir de nossos indicadores de desnutrição, mortalidade, salubridade e outros que associamos à vulnerabilidade social.

A maioria dos moradores do Jaraguá poderia estar (ou já esteve) vivendo em outras aldeias mais próximas de matas e distantes de centros urbanos. Mas eles querem estar lá e vêm lutando por esse direito e pela ampliação de suas terras. Estar na cidade não implica o rompimento com as relações que fazem a vida entre os guarani. As relações não são inerentes ou determinadas por ambientes ou lugares, sejam cidades, aldeias ou florestas. Mas tais lugares habitam essas relações, de modo que o confinamento crescente das aldeias do Jaraguá, em meio ao crescimento da cidade em seu entorno, às ameaças e disputas fundiárias, à interdição do uso do parque estadual e outros aspectos da conjuntura em que vivem são experimentados e conceituados a partir da condição tekoaxy, em que ser sujeito nesta terra é estar sujeito às afecções de outros. Daí a vulnerabilidade ser uma condição intrínseca a todos aqueles que aqui vivem, em diferentes matizes. Talvez no Jaraguá experimentem de modo mais intenso algo não muito diferente do que vivem os guarani que moram ou moraram nas regiões mais remotas do mundo jurua. A escolha de viver onde sonham, ou onde são sonhados por Nhanderu, faz parte da busca, sempre em curso, de não se deixar definhar, sendo essa a sua luta contra a “vulnerabilidade social”.

Cada vez mais, os guarani vêm reivindicando seu direito à terra e à vida entre os parentes como receita de resistência às “alternativas infernais” (Stengers e Pignarre 2007) postas pelo capitalismo, responsável pela ampliação sem precedentes da vulnerabilidade de todos os viventes. Privando-os da terra, os jurua têm preferido prover os guarani com produtos e serviços não raro percebidos por estes como formas de captura. Ganha assim uma força sem igual a afirmação de Karai Ryapua, morador do Jaraguá, diante de uma plateia de jurua e outros indígenas no mencionado encontro na universidade: que os guarani foram enviados para serem os pilares que seguram esta terra. Enquanto estiverem aqui, ela continuará a existir. A assertiva nos remete para um ângulo imprevisto (como Papa na corrida de Fórmula 1) de nossa vulnerabilidade em conceituar a vulnerabilidade social guarani.

 

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Receção da versão original / Original version         2018 / 04 / 16 Aceitação / Accepted           2018 / 09 / 25

 

Notas

[1]             Este artigo tem como fonte principal de conhecimento relações de amizade e aprendizado com alguns moradores da TI Jaraguá, que costumava visitar semanalmente entre 2014 e 2016. Agradeço a Tatiane Klein por comentários e sugestões sobre uma versão anterior deste texto. As palavras na língua guarani são em sua maioria oxítonas, razão pela qual a sílaba tônica não costuma ser grafada, convenção que adoto aqui. A designação Tekoa Pyau pode ser traduzida por “Aldeia Nova” (teko: modo de existência; a: partícula de espacialização; pyau: nova).

[2]             Karai é uma das designações para xamã ou líder espiritual, como preferem os guarani. Mas é também o nome daqueles cuja alma vem da morada celeste da divindade Karai. Nem todos que se chamam Karai são líderes espirituais (karai).

[3]             De encontro a uma concepção substantivada de corpo e de sociedade, tal individuação é pensada no sentido de Deleuze e Guattari (1980), como composição de diferenças que se individua por modos singulares de afetar e ser afetado, ou potências afectivas.

[4]             Não terei espaço para dialogar com a literatura etnológica que aborda a centralidade da comensalidade para a produção de corpos-pessoas que sejam mutuamente humanos e o potencial transformativo de certos alimentos. Me valho aqui da síntese de Fausto: “há dois modos de produzir identidade e diferença por meio do comer: de um lado, come-se com e como alguém para identificar-se com esse alguém e produzir-se mutuamente como parente; de outro, come-se alguém para capturar algo deste alguém, sem no entanto se tornar inteiramente outro. […] a captura de algo de alguém abre caminho à familiarização, que se processa, entre outras coisas, pela comensalidade” (Fausto 2002: 27).

[5]             Tomo afecção no sentido de Spinoza (2013 [1677]), como aquilo que experimenta um corpo sob efeito de outro(s), investindo-o de modos singulares de afetar e ser afetado, ou potências.

[6]             A expressão -vy’a faz convergir o sentido de “acostumar” e “alegrar”, remetendo a relações que aumentam a potência de existir (Pissolato 2007; Macedo 2017a).

[7]             O Mapa Guarani Continental resulta do trabalho conjunto de instituições em diferentes países, vinculados à Campanha Guarani (ver http://campanhaguarani.org/guaranicontinental/# (última consulta em outubro de 2019).

[8]             Como pontua Viveiros de Castro, a troca de dons constitui um movimento duplo de captura: “o propósito do ato de donação é forçar o parceiro a agir, extrair um gesto do outro, provocar uma resposta: roubar sua alma” (Castro 2007: 121).

[9]             O relatório de identificação da TI Jaraguá cita dados da Secretaria Municipal de Habitação de 2008, segundo os quais o distrito do Jaraguá possui 27,47% dos domicílios em favelas (Pimentel 2009: 322).

[10]           A portaria que define novos limites da TI foi anulada pelo Ministério da Justiça em agosto de 2017. Após muita pressão dos guarani e seus aliados, a medida foi suspensa em dezembro desse mesmo ano; contudo, a TI segue contestada por processos judiciais (sobre o processo de reconhecimento da TI Jaraguá, ver F. Silva 2008, 2015; Moraes e Franco 2018).

[11]           Segundo o relatório de identificação da TI, o distrito do Jaraguá contava, em 2008, com 190.974 habitantes, em uma área de 27,6 km2, com densidade populacional de 6919 habitantes/km2. Já no início da década de 1960, quando a família de Joaquim e Jandira se estabeleceu na região, a população fora contabilizada em 12.970 pessoas (Pimentel 2009: 321).

[12]           Sobre a conjuntura recente de manifestações e atuação política dos guarani em São Paulo, ver ­Santos (2016), Macedo (2017b) e a página da Comissão Guarani Yvyrupa (http://www.yvyrupa.org.br, última consulta em outubro de 2019).

[13]           Sobre aspectos históricos das terras guarani no estado de São Paulo, ver Ladeira e Azanha (1988), Macedo (2009) e Veiga (2013).

[14]           Em outro artigo (Macedo 2017a), busco aproximar a concepção de tekoaxy do universo conceitual de Spinoza (2013 [1677]), em diálogo com a abordagem de Pierri (2018b).

[15]           Tomo “predação” no sentido de Viveiros de Castro (1996), como estética ameríndia no agenciamento da diferença, em que a incorporação de potências exteriores a um só tempo constitui e desestabiliza a posição de sujeito, dada a implicação entre alteridade e alteração. Sobre a implicação entre dádiva e predação, ver referência ao autor na nota 8.

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