Introdução
As barragens são barreiras artificiais construídas em rios ou ribeiras para represar grandes quantidades de água, tendo em vista uma ou mais finalidades, entre elas a regularização de caudais, a irrigação de terras agrícolas e o abastecimento de água às populações, bem como a produção de hidroeletricidade e, mais recentemente, o turismo. Embora remonte à era pré-cristã, a construção de barragens teve um crescimento exponencial no século XX, particularmente entre as décadas de 1930 e 1970, quando as grandes barragens estiveram associadas ao progresso e ao desenvolvimento económico.1 A título ilustrativo, refira-se que o número de grandes barragens passou de 5268 em 1950, para 36.226 na década de 1980 (McCully, 2001: 2), mais de 45.000 nos anos 90 (WCD, 2000) e 52.000 na década de 2000 (Blanchon, 2010, citado em Wateau, 2014: 28).
Apesar de tudo, para além do elevado risco potencial de rutura (Carmo, 2013), as grandes barragens têm desvantagens e impactos negativos, sobretudo em termos ambientais e socioeconómicos (ver, por exemplo, Abbink ,2012; Scudder, 2005; Schmidt, 2007; McCully, 2001; WCD, 2000).2 Daí a forte contestação organizada a que a construção de grandes barragens foi sujeita nas décadas de 1970 e 1980 por parte de organizações não governamentais (ONG), ecologistas, cientistas e personalidades mediáticas, e que conduziu à suspensão do seu financiamento pelo Banco Mundial entre 1993 e 2003 (Wateau, 2014: 26); daí também o aumento dos conflitos e sua intensidade, relacionados com barragens à escala mundial (Bethemont, 2008: 32), incluindo em Portugal (Melo e Brazão, 2016).
As grandes barragens são um terreno fértil para a investigação em antropologia e noutras ciências sociais. Especial atenção tem sido dedicada aos efeitos sociais das grandes barragens (ver, por exemplo, Blanc e Bonin, 2008; Cernea, 1997, 2000; Horowitz, 1991; Richter et al., 2010; Santos, 2003). Há também diversos estudos sobre a relação entre grandes barragens e desenvolvimento (Abbink, 2012; Campregher, 2010; Khagram, 2004; Ribeiro, 1994), e sobre o desmantelamento de barragens e o restauro de rios (Barraud e Germaine, 2017; Fox, Magilligan e Sneddon, 2016; Sneddon, Barraud e Germaine, 2017).
O nexo entre grandes barragens e turismo permanece largamente inexplorado. Este artigo aborda este tópico mediante a apresentação de um estudo de caso relacionado com a barragem de Alqueva, uma das cerca de 250 grandes barragens atualmente existentes em Portugal, segundo a Agência Portuguesa do Ambiente.3 Esta barragem já foi objeto de múltiplas pesquisas. Alguns autores (Chícharo, Chícharo e Morais, 2006; Morais, 2008; PSA, 2005) abordaram os impactos ambientais da barragem. Outros (Baptista e Santos, 2013; Collado Giraldo, 2006; Lança 2003; Silva, 1999, Silva, 2000) estudaram o património arqueológico e os moinhos hidráulicos afetados pelas albufeiras de Alqueva e Pedrógão. Arvela, (2013) examinou as modificações da paisagem. Há também literatura antropológica sobre os aspetos sociotécnicos da barragem (Bento, 2006), a mudança dos habitantes da antiga para a nova Aldeia da Luz (Saraiva, 2003, 2005; Wateau, 2008, 2014), o respetivo museu (Pereira, 2003; Saraiva, 2007), e a água e a paisagem no discurso legislativo e institucional (F. Silva, 2011).
Existem ainda estudos sobre a temática do turismo na área do Alqueva, como, por exemplo, a criação de uma reserva de astroturismo (Rodrigues, Rodrigues e Peroff, 2015), o aproveitamento turístico do património arqueológico submerso (Dias-Sardinha, Ross e Loureiro, 2014), a paisagem turística (Marujo, 2005; Marujo e Santos, 2012) e a perceção de alguns empresários acerca do impacto da barragem no turismo regional (Dias-Sardinha e Ross, 2015). Os efeitos da barragem de Alqueva sobre a atratividade e o turismo em Monsaraz continuam por analisar, lacuna que este artigo visa contribuir para colmatar.
O trabalho aqui apresentado baseia-se na literatura académica e em materiais recolhidos pelo autor entre setembro de 2003 e finais de janeiro de 2004, em abril de 2016 e em setembro de 2017, por intermédio de trabalho de campo com observação direta e entrevistas abertas. No total, entrevistámos sensivelmente 50 pessoas (empresários turísticos, residentes, autarcas e turistas/visitantes), tendo sido feitos cerca de dois terços das entrevistas na década de 2000. Tivemos muitas outras conversas informais com moradores, empresários turísticos e turistas/visitantes, e participámos em eventos locais.4
A barragem de Alqueva
A barragem de Alqueva situa-se no rio Guadiana, perto da aldeia de Alqueva, no concelho de Portel. Com 96 metros de altura e 458 metros de comprimento, a barragem de Alqueva foi primitivamente projetada para a rega agrícola, em 1957, em pleno Estado Novo, quando foi desenhado o Plano de Rega do Alentejo. Entretanto, a barragem de Alqueva acabou por ser chamada a desempenhar outras funções além da irrigação de terras agrícolas (110.000 hectares inicialmente previstos), incluindo o abastecimento regular de água às populações, o turismo e a geração de hidroeletricidade.5 A edificação da barragem foi decidida em 1968, num acordo celebrado entre os ditadores de Portugal (Salazar) e Espanha (Franco) sobre a gestão das águas partilhadas entre ambos os países. As obras de construção da barragem tiveram início em 1976, estiveram suspensas entre 1978 e 1995, e foram concluídas em 2002 (a 8 de fevereiro), quando as comportas do paredão foram encerradas e a albufeira começou a encher, criando o maior lago artificial da Europa Ocidental. Na sua cota máxima (152 metros), atingida pela primeira vez em janeiro de 2010, o lago de Alqueva (ver figura 1) armazena um volume total de 4150 hectómetros cúbicos de água e abrange uma área com 83 quilómetros de comprimento e 250 quilómetros quadrados de superfície, pertencente a nove municípios, dos quais cinco são portugueses (Alandroal, Mourão, Reguengos de Monsaraz, Portel e Moura) e quatro são espanhóis (Olivença, Cheles, Alconchel e Villanueva del Fresno).

Fonte: WikimediaCommons (https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Monsaraz_and_the_Alqueva_Reservoir.jpg
Figura 1: Monsaraz e o lago de Alqueva)
O Empreendimento de Fins Múltiplos de Alqueva foi desenvolvido pelo governo português, através da empresa de serviços públicos EDP, e é gerido por uma empresa pública criada em 1995, a EDIA - Empresa de Desenvolvimento e Infraestruturas do Alqueva, S.A. O projeto global foi considerado finalizado em 2015, com um investimento total de 2,4 milhões de euros, apoiado por fundos nacionais e da União Europeia (cerca de dois terços). Em 2017, porém, o governo português iniciou formalmente um projeto com o objetivo de aumentar a área de irrigação no Alentejo em 47.000 hectares, com um investimento estimado em cerca de 200 milhões de euros.
A barragem de Alqueva não foi objeto de uma verdadeira discussão pública, quer em Portugal quer em Bruxelas (Vergés, 2004). Mas a sua construção gerou algumas controvérsias, particularmente por causa do impacto ambiental (Daveau, 1977; Drain, 1996; Vergés 2004), das dimensões e do custo (AA.VV., 1981; Costa, 2003), de dúvidas sobre a viabilidade económica do projeto (Daveau, 1977) e do risco resultante da sua localização numa área sísmica (AA.VV., 1981). O projeto foi ainda fonte de discussão por causa da expropriação de terras - mais de 13.000 processos de desapropriação cobrindo uma área de 31.000 hectares; da demolição da fábrica da Portucel em Mourão, então com cerca de 150 postos de trabalho; da submersão de bens patrimoniais, incluindo três conjuntos de gravuras rupestres e o castelo da Lousa, classificado como monumento nacional desde 1970 (Decreto n.º 251/70, de 3 de junho de 1970); da trasladação de 112 corpos do cemitério da Estrela; do reassentamento dos habitantes (mais de 300) de uma aldeia (a da Luz) submersa pelo lago de Alqueva e da transladação de 280 corpos do respetivo cemitério.6
Contudo, a construção da barragem de Alqueva não teve “grande oposição” (Wateau, 2014: 42), por diferentes motivos. Por um lado, os habitantes do Alentejo, em geral, viam (e continuam a ver) a barragem como sendo um projeto muito bem-vindo e necessário, praticamente desde o início, por propiciar a retenção de grandes quantidades de água numa região quente e seca. A frase escrita em 1994 por um grupo de militantes da Juventude Socialista de Beja na ensecadeira de Alqueva - “Construam-me, porra!” - ilustra-o, o mesmo ocorrendo com a reação dos últimos moleiros à submersão de muitos dos tradicionais moinhos do Guadiana, para quem “o Alentejo precisa de água, não de moinhos” (Silva, 2018: 90). Por outro lado, os habitantes consideravam que “o Alentejo tinha tudo a ganhar [com a barragem]: uma nova fama, um renascimento do turismo, um interesse económico. E, sobretudo, nada a perder” (Wateau, 2004: 56). Além disso, “[a]pesar das suas reservas publicamente manifestadas, os movimentos ambientalistas nunca montaram uma campanha frontal contra Alqueva” (Melo, 2004: 330).
A barragem de Alqueva e o turismo
A barragem de Alqueva foi concebida para reter grandes quantidades de água numa região seca e em processo de desertificação física e humana (Drain, 1996), mas também para gerar hidroeletricidade e um centro atrativo passível de estimular o turismo numa zona periférica. Como refere Guichard, tal como outras barragens de última geração, a barragem de Alqueva também foi edificada tendo em vista
“a criação de novas paisagens promovidas à categoria de espaços turísticos, capazes de responder ao mesmo tempo a uma procura social crescente em matéria de lazeres e ao desejo de suscitar uma atividade económica em forte desenvolvimento, complementar ou mesmo substitutiva de uma agricultura decididamente envolvida num declínio aparentemente irremediável. […] [Pretendia-se] dotar estes espaços até agora abandonados à sua sorte de uma verdadeira alavanca de reconversão a longo prazo, destinada a permitir-lhes dar um salto do passado para o futuro, a passar praticamente sem transição de um sector primário atrasado para um sector terciário promissor” (Guichard, 2003: 241-242).
Entretanto, o desenvolvimento da atividade turística no Alqueva foi objeto de um planeamento antecipatório, através do Plano Regional de Ordenamento do Território da Zona Envolvente da Albufeira do Alqueva (Resolução do Conselho de Ministros n.º 70/2002, de 9 de abril de 2002) e do Plano de Ordenamento das Albufeiras de Alqueva e Pedrógão (Resolução do Conselho de Ministros n.º 95/2002, de 13 de maio de 2002; Resolução do Conselho de Ministros n.º 94/2006, de 4 de agosto de 2006), onde são definidas as áreas de utilização recreativa e de lazer, as novas áreas de vocação edificável e de vocação turística dentro e em redor do plano de água, bem como unidades de alojamento e atividades de animação turística.
Em 2007, o potencial turístico da albufeira e a proximidade a Évora, cidade classificada como património mundial pela UNESCO em 1986, levaram ainda à inclusão do Alqueva nos seis novos polos de desenvolvimento turístico criados pelo Plano Nacional Estratégico do Turismo. O objetivo era promover “um forte desenvolvimento económico e a melhoria da imagem de Portugal como destino”, a partir da criação de “uma oferta de qualidade de circuito turístico (touring) cultural e paisagístico, complexos turísticos (resorts) integrados e turismo residencial (incluindo golfe), gastronomia e vinhos, para além de atividades náuticas que o espelho de água proporciona” (Resolução do Conselho de Ministros n.º 53/2007: 2170, de 4 de abril de 2007), tendo como mercados prioritários Portugal e Espanha. Em 2013, este polo foi removido do novo Plano Nacional Estratégico do Turismo (Resolução do Conselho de Ministros n.º 24/2013, de 16 de abril de 2013) e acabou por ser extinto (Lei n.º 33/2013, de 16 de maio de 2013), tendo as funções da sua equipa de gestão e monotorização sido integradas na Entidade Regional de Turismo do Alentejo.
Todavia, o Plano Regional de Ordenamento do Território do Alentejo (Resolução do Conselho de Ministros n.º 53/2010, de 2 de agosto de 2010) mantém as orientações definidas para o polo turístico do Alqueva (“zona C”), particularmente no que respeita à promoção turística em Portugal e Espanha, salientando: “[a] presença de um património histórico-arqueológico significativo (com destaque para os núcleos urbanos fortificados de Monsaraz, Juromenha e Noudar)”; “a paisagem única proporcionada […] pelo plano de água [e] pelos povoamentos de sobro e azinho explorados em sistema de montado e pela manutenção das atividades agrícolas”; as aldeias em redor das albufeiras de Alqueva e de Pedrógão “com significativo património cultural e ambiental”; e o “crescente interesse de investimentos turísticos ligados a conjuntos turísticos (resorts) integrados”, incluindo “uma rede de campos de golfe”.
A atenção dada ao turismo no Alqueva no plano nacional propiciou o aparecimento de vários projetos de vocação turística. Parte deles eram projetos de grande dimensão, perspetivando o desenvolvimento do turismo de luxo nas margens do lago, através da edificação de hotéis, aldeamentos turísticos e outros equipamentos associados ao golfe e ao turismo náutico.7 Tais projetos previam um investimento total na ordem dos 2000 milhões de euros e a criação de cerca 20.000 camas turísticas e alguns milhares de postos de trabalho. A maior parte, porém, incluindo os que foram classificados como projetos de interesse nacional, acabaram por não sair do papel ou por não ser construídos na totalidade, muito por causa da crise financeira internacional de 2008, que atingiu o país em 2010, e da queda do Banco Espírito Santo em 2014.
Houve também lugar à implementação de projetos de patrimonialização e turistificação de um conjunto de povoações em redor das novas albufeiras, tendo em vista o desenvolvimento local (cf.Wateau, 2004): os projetos ligados ao Plano Estratégico de Qualificação Urbana e Ambiental das Aldeias Ribeirinhas das Albufeiras de Alqueva e Pedrógão - promovido pelo governo nacional em 2002, com uma dotação de 67,5 milhões de euros de investimento previsto até 2007; os projetos da Associação Transfronteiriça dos Municípios das Terras do Grande Lago Alqueva, criada em 2005; e os projetos promovidos pela entidade gestora do referido plano estratégico, a Gestalqueva - Sociedade de Aproveitamento das Potencialidades das Albufeiras de Alqueva e de Pedrógão, S.A., constituída em 2002 e oficialmente extinta em 2007. A ideia era que essas aldeias viessem a funcionar “como infraestruturas de apoio à dinamização da oferta turística, […] devendo, por outro lado, ser destinatárias preferenciais do potencial de desenvolvimento do lago” (Silva e Dias, 2005: 126).8
Num relatório publicado em finais da década de 2000, Tedim, Sullivan e Estrela, (2009) reportam que os benefícios projetados ainda não eram visíveis na grande maioria das aldeias ribeirinhas situadas em território nacional, embora alguns inquiridos e entrevistados (presidentes de juntas de freguesia e residentes) mantivessem expectativas positivas e esperança nos efeitos da barragem sobre o turismo e o desenvolvimento local. Num estudo mais recente, (Dias-Sardinha e Ross, 2015) fazem saber que, na ótica dos stakeholders entrevistados, os efeitos do Alqueva no desenvolvimento da indústria turística regional também permaneciam aquém das expectativas e projeções.
Não cabe aqui atualizar o impacto da barragem e dos referidos projetos no desenvolvimento do turismo na região e no conjunto das aldeias ribeirinhas, até porque não temos dados sobre a procura turística e as dormidas. Todavia, segundo o observado no terreno e uma pesquisa recentemente feita na Internet, incluindo no portal do Registo Nacional de Turismo, na década de 2010, surgiram alojamentos turísticos na maior parte das aldeias ribeirinhas (ver quadro 1), incluindo em Monsaraz, que, no entanto, já era um destino turístico antes de ter sido feita a barragem, como veremos a seguir.9
Quadro 1: Alojamento turístico nas aldeias ribeirinhas (meados de 2019)
Povoação | N.º de unidades de alojamento | Capacidade de alojamento |
Aldeia da Luz | 5* | 34 pessoas |
Alqueva | 3 | 48 pessoas |
Amieira | 4** | 18 pessoas |
Campinho | 1* | 7 pessoas |
Estrela | 2 | 18 pessoas |
Ferreira de Capelins | 0 | - |
Granja | 2 | 27 pessoas |
Juromenha | 5* | 57 pessoas |
Marmelar | 1 | 5 pessoas |
Mina da Orada | 0 | - |
Monsaraz | 22 | 166 pessoas |
Monte do Trigo | 0 | - |
Pedrógão | 1 | 5 pessoas |
Póvoa de São Miguel | 0 | - |
São Marcos do Campo | 2 | 8 pessoas |
Telheiro | 8 | 112 pessoas |
Cheles (Badajoz) | 3* | 26 pessoas |
Villareal (Badajoz) | 0 | - |
* Incluem-se aqui estabelecimentos situados fora da povoação.
** Excluem-se daqui os sete barcos-casa, com capacidade para 25 pessoas, existentes na marina da Amieira.
A evolução do turismo em Monsaraz
Monsaraz é uma aldeia do concelho de Reguengos de Monsaraz, perto da fronteira luso-espanhola. O centro administrativo da freguesia que tem o seu nome situa-se no topo de uma elevação com cerca de 300 metros de altitude, de onde se avista um vasto panorama, abrangendo o lago de Alqueva, várias povoações e a Extremadura espanhola. Apesar de integrar alguns montes e herdades isolados, como tende a ocorrer no “Portugal mediterrânico” caracterizado por Ribeiro, (1967 [1945]), a freguesia tem um povoamento concentrado, incluindo as povoações de Monsaraz, Ferragudo, Telheiro, Outeiro, Barrada e Motrinos.
Monsaraz compreende dois espaços diferenciados: o núcleo urbano fortificado e os arredores, localmente designados, respetivamente, “vila” e “arrabalde”. A “vila” abrange cerca de 80 fogos, que maioritariamente são propriedade de forasteiros, representam a arquitetura vernacular e estão desabitados; tem ruas estreitas, três igrejas, um pelourinho, uma cisterna, o castelo e vários espaços de vocação turística, abaixo listados. O edificado é cintado por muralhas, construídas, tal como o castelo, nos séculos xiii e xiv.10 O “arrabalde” integra cerca de 40 fogos, uma capela (em ruínas) e alguns espaços turísticos, elencados mais à frente.
Monsaraz é, em vários aspetos, um exemplo da transformação socioeconómica que as áreas rurais de Portugal têm sofrido desde meados do século xx. Por um lado, segundo os censos, a freguesia perdeu 64% da população entre 1960 e 2011 (ver quadro 2), quando foi registado o menor número de residentes desde 1864 (782). De acordo com os censos e dados apurados no terreno, a povoação apresenta uma evolução demográfica similar, tendo perdido 77% de habitantes entre 1960 e 2017 (ver quadro 3), tendo neste último ano apenas 79 moradores permanentes.
Quadro 2: Evolução demográfica da freguesia de Monsaraz
Data | Habitantes |
1960 | 2161 |
1970 | 1575 |
1981 | 1324 |
1991 | 1192 |
2001 | 977 |
2011 | 782 |
Fonte: Recenseamentos Gerais da População, Instituto Nacional de Estatística.
Quadro 3: Evolução demográfica de Monsaraz
Data | Habitantes |
1960 | 347 |
1970 | 235 |
1981 | 160 |
1991 | 154 |
2001 | 126 |
2003 | 120 |
2011 | 95 |
2017 | 79 |
Fontes: Recenseamentos Gerais da População, Instituto Nacional de Estatística; Ramos (1997: 68); Silva (2007: 854.
Por outro lado, os habitantes dependeram de uma economia de subsistência precária, baseada na agricultura até às décadas de 1950-60, quando se começou a registar a desvalorização da terra e a perda de importância social e económica do sector primário (Cutileiro, 1977 [1971]). Desde os anos 1980-90, Monsaraz assistiu a um aumento das atividades económicas ligadas ao sector terciário, no qual o turismo ocupa uma posição de destaque. Esta mudança foi fortemente encorajada pelo governo português, tendo em vista o desenvolvimento e a regeneração rurais, por intermédio do aumento da atratividade turística da povoação e dos serviços prestados a um número crescente de turistas/visitantes em busca de experiências culturais.
Num primeiro momento, Monsaraz foi considerada uma das áreas prioritárias para o desenvolvimento do sector no quadro do programa Turismo de Habitação para 1983, criado através do despacho n.º 102/82, de 19 de janeiro de 1983. Nos anos 90, o Estado promoveu um conjunto de arranjos urbanísticos, no sentido de tirar partido do valor económico do património edificado: promoveu a conservação e consolidação das muralhas, a recuperação da cuba islâmica, a construção de acessibilidades e parques de estacionamento, a recuperação e adaptação da igreja de Santiago a Casa da Cultura de Monsaraz, o calcetamento integral das ruas e largos da “vila” com xisto, bem como a plantação de arvoredo nas encostas e a remoção das pocilgas aí situadas (Silva, 2007: 856).
Segundo Kirshenblatt-Gimblett (1998: 149-151), as práticas patrimoniais conferem a objetos, edifícios, tecnologias ou modos de vida que esgotaram a sua função inicial uma “segunda vida como património”, uma vida como “representações de si mesmos” dentro de uma economia do turismo, sendo o “património criado por meio de um processo de exibição (como conhecimento, como performance, como museu)”. Na mesma linha de pensamento, Dicks, (2003: 34-37) argumenta que os lugares são manipulados, modelados e até simulados para promover a economia cultural da visitabilidade. Monsaraz é um bom exemplo dessa tendência, já que o objetivo das referidas intervenções urbanísticas era exibir o património edificado para aumentar os níveis de consumo através do turismo, num processo que Urry, (1999: 220) descreveria como “desenhar para o olhar [do turista]”.11
Estas intervenções não tardaram a afetar positivamente o turismo local. Segundo Ramos, (1997: 258), juntamente com “o funeral de um idoso” e “um homem embriagado”, a presença de “um turista em calções” era um evento que já fazia parte do quotidiano de Monsaraz em meados dos anos 90. Nessa altura, o turismo tinha sido responsável por “duas mudanças” - “a rua transformara-se em avenida de forasteiros, a taberna tradicional [evoluíra] para café e restaurante” -, “a frequência turística caminha[va] para a massificação” e a antiga vila dispunha de “cinco restaurantes, três casas de artesanato e já [dava] dormida a muito[s] forasteiro[s]” (Ramos, 1997: 88, 258).
Como veremos em seguida, a construção da barragem de Alqueva produziu efeitos similares, incrementando a atratividade e a atividade turística em Monsaraz, mormente a partir de finais da década de 2000. Neste sentido, Tedim, Sullivan e Estrela, (2009: 35) referem que, então, os benefícios da construção da barragem já eram evidentes no sector do turismo na zona, onde se registava “um aumento considerável do número de visitantes e a existência de mais de metade dos hotéis e infraestruturas turísticas do concelho de Reguengos de Monsaraz”, mas sem fornecerem dados concretos que permitam perceber a extensão dos benefícios. Entretanto, os dados recolhidos pelo autor atestam os efeitos positivos da barragem no turismo na região, tanto ao nível da oferta como da procura.
Desenvolvemos trabalho de campo pela primeira vez em Monsaraz em 2003-2004, quando a subida do nível das águas da albufeira de Alqueva ainda não se fazia sentir de modo pronunciado na povoação. Nessa altura, existiam quatro restaurantes, três cafés/pastelarias, um posto de turismo, dois museus (o do Fresco e o de Arte Sacra), seis lojas de artesanato e duas lojas de vinhos. Nos arredores da povoação, havia mais três restaurantes. A povoação contava também com oito alojamentos turísticos, três deles afetos ao turismo de habitação. Noutros pontos da freguesia, havia mais seis unidades de alojamento, incluindo quatro unidades de Turismo em Espaço Rural (TER)12 (duas casas de campo, um estabelecimento de turismo de aldeia e um hotel rural), duas delas no Telheiro.
Em 2017, além do Centro Interativo da Memória Judaica em Monsaraz, instalado na Casa da Inquisição, encontrámos mais 14 espaços comerciais de vocação turística: dois restaurantes, duas cafetarias/pastelarias, uma galeria de arte e sete alojamentos turísticos, três dentro de muralhas e quatro no “arrabalde”, todos afetos ao alojamento local. Noutros pontos da freguesia, havia mais quatro restaurantes e 19 unidades de alojamento: dois hotéis rurais, um deles de cinco estrelas, seis casas de campo e 12 alojamentos locais.13
Na povoação de Monsaraz, a oferta de alojamento passou, assim, de oito unidades em 2003 para 15 unidades em 2017, ao passo que a capacidade de acomodação aumentou de cerca de 100 para sensivelmente 140 pessoas. Na respetiva freguesia, o alojamento turístico passou de 14 unidades em 2003 para 37 em 2017, enquanto a lotação aumentou de cerca de 280 para aproximadamente 550 pessoas. Isto apesar de, entretanto, terem sido desativados quatro alojamentos turísticos, dois em Monsaraz e dois na área envolvente, entre eles o Convento da Orada.
Paralelamente, em 2017, encontrámos novas infraestruturas e serviços turísticos, maioritariamente associados ao plano de água: o centro náutico de Monsaraz (inaugurado em 2010); três pequenas embarcações (incluindo um veleiro) com uma lotação máxima de 10 a 25 pessoas, que oferecem passeios no lago de Alqueva, atividades náuticas (esqui aquático, boias de tração, paddles insufláveis) e piqueniques a partir do cais-ancoradouro; a praia fluvial (inaugurada em 2017); e o restaurante-bar panorâmico, pertencente ao município de Reguengos de Monsaraz, mas explorado, mediante concessão, por uma empresa familiar, onde também é possível alugar canoas. Perto do centro náutico, surgiu ainda o Observatório (astronómico) do Lago Alqueva (inaugurado em 2016).14
Este crescimento das infraestruturas e da oferta turísticas resultou de investimento público e privado, feito quer por empresários que tinham atividade aberta antes da criação do lago de Alqueva e que investiram em atividades paralelas, quer por novos empresários, tanto locais como forasteiros, sobretudo dos concelhos de Reguengos de Monsaraz e de Mourão, mas também de outros pontos do país e do estrangeiro. A atividade turística baseia-se muitas vezes no aproveitamento de património herdado, mas também envolve a compra ou arrendamento e adaptação/afetação de imóveis ao turismo.
A maior parte dos negócios turísticos possui uma pequena escala e um cunho familiar, como é usual no turismo rural (ver, por exemplo, Silva, 2009; Lane, 2009). Entretanto, o número de pessoas direta e indiretamente envolvidas no sector do turismo na freguesia passou de aproximadamente 100 em 2003, incluindo pouco mais de um terço (35%) dos 120 habitantes permanentes da antiga vila de Monsaraz, para sensivelmente 300 em 2017, incluindo cerca de três dezenas dos 79 residentes permanentes da povoação.
Não abundam os dados estatísticos sobre a procura turística em Monsaraz, nem dispomos de dados referentes a dormidas na povoação e na freguesia, embora os proprietários com quem falámos tenham verbalizado o predomínio de turistas portugueses e a inexistência de qualquer nacionalidade estrangeira predominante. Porém, segundo dados concedidos pela respetiva funcionária, o posto de turismo registou mais de 105.000 visitantes entre 2001 e 2004 (45% dos quais em 2002, quando foi inaugurada a barragem), 62% dos quais eram portugueses, ao passo que, de acordo com dados fornecidos pela Câmara Municipal de Reguengos de Monsaraz, este mesmo espaço teve cerca de 92.000 visitantes entre 2015 e 2018, dos quais 63% eram estrangeiros (ver figura 2).

Fonte: elaboração própria a partir de dados fornecidos pelo posto de turismo de Monsaraz e pela Câmara Municipal de Reguengos de Monsaraz
Figura 2: Visitantes do posto de turismo de Monsaraz.
Não temos dados sobre a nacionalidade dos visitantes estrangeiros do posto de turismo local. Mas o Plano de Pormenor de Salvaguarda de Monsaraz reporta que, em 2015, Espanha foi o país de origem da maior parte dos visitantes não portugueses (19%), muito por causa da proximidade geográfica, seguida de Inglaterra (12%), França (5%) e Brasil (4%) (CMRM, 2016: 28).
Já o número de visitantes dos quatro espaços geridos pela autarquia na povoação - o posto de turismo, o Museu do Fresco e as igrejas de Santa Maria da Lagoa e da Misericórdia - apresenta uma evolução crescente: aumentou de aproximadamente 106.000 visitantes em 2003, cerca de 65% dos quais eram portugueses, para mais de 111.800 visitantes anuais entre 2012 e 2018 - atingindo 145.361 visitantes em 2015 -, tendo o número de estrangeiros igualado e até superado ligeiramente o número de nacionais no último triénio (ver figura 3).15 A nacionalidade dos estrangeiros não nos foi indicada, mas é muito provável que os espanhóis ocupem uma posição de relevo, pelo motivo anteriormente avançado.

Fonte: elaboração própria a partir de dados fornecidos pela Câmara Municipal de Reguengos de Monsaraz
Figura 3: Visitantes dos espaços geridos pela autarquia em Monsaraz.
Esta leitura sobre o efeito positivo da barragem na atratividade e no turismo em Monsaraz é conforme à dos autarcas e dos empresários turísticos, bem como à da maioria da população residente, segundo os quais a criação da albufeira de Alqueva aumentou o poder de atração e a procura turísticas, estimulou o crescimento e a diversificação da oferta turística, e promoveu a recuperação de imóveis degradados para o turismo e segundas residências na povoação e, sobretudo, noutros pontos da freguesia. Nas palavras do presidente da Junta de Freguesia de Monsaraz, entrevistado em 2016,
“Monsaraz é, hoje, um dos grandes centros turísticos da região Alentejo. […] Se calhar, 80% do turismo rural que existe aqui no concelho de Reguengos de Monsaraz verifica-se em Monsaraz e na sua envolvente. […] A própria barragem, o próprio Alqueva, veio trazer aqui algumas coisas ligadas à componente água que vieram contribuir para isso. O Alqueva, na altura em que surgiu, foi a cereja no topo do bolo para o que se pretende aqui em termos de desenvolvimento económico ligado ao turismo. […] E está a haver um aumento de turismo aqui na área de Monsaraz, quer em termos de animação, quer de alojamento turístico, muito grande em relação àquilo que existia antes do lago”.
De igual modo, um empresário turístico com atividade aberta desde os anos 90 declarou em 2016 que
“- Vem mais gente a Monsaraz, temos mais visitantes, mais grupos. - E dormidas, há mais? - Eu não noto aumento no alojamento que tenho aqui em Monsaraz. É possível que existam mais dormidas em Monsaraz. Nos últimos anos, surgiram mais unidades hoteleiras. Globalmente, há mais dormidas em Monsaraz, sim. Mas, na parte que me toca a mim, nem sim, nem não; há uma continuidade. - O que mudou com a barragem? - Água era coisa que nós não tínhamos. Tínhamos apenas um rio; eu nasci aqui há 43 anos. Se olharmos para este lago e virmos o potencial que ele tem no domínio do turismo e do lazer… Já temos feito algum investimento. Neste momento, conseguimos ter uma oferta de produto bastante boa, temos oferta de embarcações com qualidade, com algum conforto, temos paddles, boias de tração, esquis… E há muito mais para semear para depois colher”.
Já os empresários da restauração que tinham atividade iniciada antes de ter sido inaugurada a barragem de Alqueva disseram ter registado um aumento do número de refeições servidas após o enchimento da albufeira, especialmente aos fins de semana, sem, no entanto, precisarem a extensão desse aumento. De resto, os empresários com negócios turísticos em Monsaraz têm “[p]reocupações acerca da estratégia de turismo massivo baseado em indicadores meramente quantitativos” e sugerem uma “[m]udança para um paradigma mais ligado ao turismo cultural, com menos ênfase na quantidade e mais na qualidade do cliente e de menor carga para a vila” (CMRM, 2016: 33-34).
Por sua vez, a maior parte dos residentes sustenta que o lago de Alqueva fez aumentar o número de visitantes de Monsaraz, povoação que, na sua ótica, “no verão e nos fins de semana prolongados, parece um arraial”, recebendo entre “2000 e 3000 visitantes por dia”, como alguns afirmaram. Mas também há quem seja de opinião que o Alqueva não beneficiou o turismo local, uma vez que a povoação já era um destino turístico com muita procura antes de existir a barragem e a albufeira.
Como em 2003-2004 (Silva, 2007: 862-863), atualmente, segundo as nossas observações e as perceções dos empresários turísticos e dos moradores, para além de sazonal, a procura turística de Monsaraz é muito diversificada, compreendendo pessoas de distintas nacionalidades, escalões etários e estratos socioeconómicos, assim como pequenos e grandes grupos (casais, pequenos grupos de familiares e amigos, excursões em autocarro), ou seja, representantes tanto da versão “romântica” como da versão “coletiva” do “olhar turístico” (Urry, 2002 [1990]), oriundos de centros urbanos, sobretudo, mas também de meios rurais.
O romper do quotidiano, a busca de descanso e tranquilidade em contacto com a natureza, o património edificado e o megalítico, bem como a paisagem e a gastronomia continuam a ser os principais motivos explicitados pela maioria dos turistas/visitantes na hora de justificar a sua afluência a Monsaraz (cf.Silva, 2009).16 A diferença é que, na atualidade, a paisagem que atrai os turistas/visitantes a Monsaraz contém um novo elemento: o plano de água, isto é, a paisagem turística visada pela construção da barragem, na perspetiva de Guichard (2003). Como disse um empresário da restauração em 2016, um dos novos investidores no turismo local,
“[o que atrai os turistas a Monsaraz e o que mais lhes agrada é] o monumento em si mesmo que é Monsaraz. Monsaraz é um monumento vivo, que transporta [os turistas] para a época medieval, não para a época moderna. A calçada, a brancura das casas, as muralhas e o castelo transportam para o imaginário medieval das pessoas. Isto é um aspeto. Outro aspeto é a limpeza de Monsaraz; Monsaraz é uma terra limpa, caiada de branco. Isto desperta nos turistas um sentimento de bem-estar. O terceiro aspeto é a aguarela natural que está à volta de Monsaraz, tanto de um lado, que é a barragem, como do outro lado, que é um mosaico, uma manta de retalhos. De um lado, temos a água; do outro, temos a natureza enquanto cultivo do homem; uns cultivam uma aveia, outros lavram para semear meloal, outros cultivam vinha… Isto é um retalho paisagístico que é belo”.
O que o trabalho de campo nos permitiu verificar é que, embora “não exist[a] um único olhar do turista enquanto tal” (Urry, 2002 [1990]: 1), os turistas e os visitantes de Monsaraz, quer os que aí se deslocam pela primeira vez, quer os repetentes, apreciam muito positivamente a nova paisagem vista da povoação, definindo-a como “indescritível por palavras”, “espetacular”, “magnífica” e “bela”. Não raramente, a sua atitude à chegada à antiga vila consiste em olhar primeiramente para essa paisagem lacustre e em procurar os melhores locais para a fotografarem ou filmarem e/ou para tirarem fotografias com os seus acompanhantes tendo essa paisagem como pano de fundo, relegando para “segundo plano” a povoação fortificada propriamente dita (cf.Marujo e Santos, 2012).
Mas o consumo turístico da povoação e da paisagem envolvente de Monsaraz também é feito através de outros sentidos que não a visão, nomeadamente, o olfato e o tacto, por intermédio de atividades terrestres (passeios pedestres, a cavalo, em veículos motorizados e de bicicleta), atividades aquáticas no lago de Alqueva e atividades aéreas (passeios em balões de ar quente), mas também o paladar, mediante a ingestão de comidas e bebidas em restaurantes, bem como através de provas de vinhos e azeites em lojas, adegas, montes e herdades. Tal concorda com o cariz multissensorial do consumo turístico do rural sublinhado por outros autores (ver, por exemplo, Woods, 2011: 110-119).
Em geral, os residentes são de opinião que a barragem de Alqueva “veio dar brilho a Monsaraz”, na medida em que “melhorou a vista e a paisagem em roda” da povoação, concretamente ao criar um vasto reservatório de água numa planície historicamente seca.17 O facto de a população ter adotado para Monsaraz a designação de “varanda do Alqueva” ilustra-o, mostrando que a nova paisagem com o Grande Lago de Alqueva foi incorporada na produção de novos sentidos de “localidade” (Appadurai, 1996). Junto à povoação, foi construído um miradouro com uns bancos onde as pessoas podem sentar-se a observar a paisagem com o lago. Contudo, e elucidativo do cunho multivocal da paisagem (Bender, 2002), entre a população de Monsaraz e da freguesia também há quem associe a nova paisagem à submersão de terras que eram usadas para a produção material e de muitos pontos da memória pessoal e coletiva, bem como à fragmentação das grandes herdades previamente existentes na zona.
Note-se que o crescimento do número de turistas/visitantes em Monsaraz reflete o aumento da atratividade do destino, mas também a maior visibilidade da povoação, do concelho e da região no mercado turístico nacional e no internacional, decorrente da publicidade feita pelos empresários e pela autarquia, inclusive na Internet, da eleição de Monsaraz como uma das Sete Maravilhas de Portugal, na categoria de Aldeia Monumento, em 2017, e da escolha de Reguengos de Monsaraz como Capital Europeia do Vinho, em 2015, bem como das cinco inscrições que o Alentejo tem nas listas de património mundial da UNESCO: o centro histórico de Évora, a cidade-quartel fronteiriça de Elvas e as suas fortificações (desde 2012), o cante alentejano (desde 2014),18 a arte chocalheira (desde 2015) e a produção de figurado em barro de Estremoz (desde 2017).
Notas finais
Este artigo abordou os efeitos da barragem de Alqueva sobre o turismo e a atratividade em Monsaraz. Com base em dados recolhidos antes e depois do enchimento do lago de Alqueva, o estudo mostrou que este aumentou o poder de atração e alavancou o sector do turismo em Monsaraz e na respetiva freguesia. Por um lado, criou uma nova atração turística, uma paisagem em que o plano de água ocupa um lugar central. Por outro lado, aumentou o número de visitantes da povoação. É essa a perceção dos autarcas, dos empresários turísticos e da maioria dos habitantes permanentes de Monsaraz, e é isso que nos mostram as estatísticas feitas pela autarquia (figura 2), que, no entanto, estão aquém da realidade, já que grande parte dos turistas/visitantes não se deslocam aos espaços em causa na povoação, entre eles os que viajam em grupos de excursionistas e os repetentes.
Em concomitância, o lago de Alqueva contribuiu para o crescimento e a diversificação da oferta turística. Entre 2003 e 2017, registou-se um aumento significativo do número de espaços de vocação turística e da capacidade de alojamento. Surgiram ainda novas infraestruturas e produtos turísticos, relacionados, sobretudo, com a utilização turístico-recreativa do espelho de água. Já o número estimado de pessoas direta ou indiretamente envolvidas no sector do turismo na freguesia triplicou.
Socialmente, o aumento da atratividade e da atividade turística em Monsaraz não trouxe alguns fenómenos negativos habitualmente associados ao desenvolvimento do turismo de massas, como o jogo e a prostituição (Mathieson e Wall, 1982). Mas suscitou uma preocupação com a falta de segurança na “vila”, particularmente nos parques de estacionamento, entre os moradores, e uma preocupação com a falta de segurança e de policiamento entre os empresários turísticos (CMRM, 2016: 33).19
Além do mais, acentuaram-se os obstáculos à autorreprodução da população local registados desde os anos 60 em Monsaraz (Amendoeira, 1998: 77, 82; Ramos, 1997: 257-258; Silva, 2009: 171, 181), com a aquisição de casas por parte de forasteiros que raramente aparecem e o contínuo agravamento dos preços de arrendamento e compra de habitações na povoação, conducentes à neolocalidade - e, ainda, com a crescente afetação de casas ao turismo, acentuada em 2018 e no primeiro semestre de 2019, com a criação de mais sete alojamentos locais -, como é frequentemente o caso em lugares históricos sujeitos a processos de patrimonialização e turistificação (Herzfeld, 2010; L. Silva, 2011). Isto mesmo é reconhecido pela generalidade dos habitantes de Monsaraz, segundo os quais a “vila” irá ficar desabitada no médio prazo, convertendo-se naquilo a que MacCannell, (1992) chama um “ponto de encontro vazio”. O despovoamento é, aliás, um receio não só dos residentes, mas também dos empresários turísticos, para quem o “excesso de casas fechadas” na “vila” também é motivo de preocupação (CMRM, 2016: 33-34).
Por estudar com a devida profundidade fica o sector do turismo nas outras aldeias ribeirinhas e o seu impacto no desenvolvimento local. Até para, na linha do referido por Guichard, (2003), perceber qual é o contributo efetivo das grandes barragens, pela via do turismo, para a “reconversão” e revitalização das zonas rurais afetadas pelo declínio das atividades económicas ligadas ao sector primário registado nas últimas décadas em Portugal e noutros países, à escala mundial.
Mas o que a informação estatística nos diz é que as (12) freguesias portuguesas banhadas pelo lago de Alqueva perderam 60% da população entre 1950 e 2011, enquanto os respetivos (5) concelhos registaram um decréscimo populacional de 51% entre 1950 e 2018.20 Também por isso o Alentejo perdeu 42% da população entre 1950 e 2018, sendo a região do país menos povoada, com 468.160 habitantes (menos de 5% da população residente em Portugal), excluindo a Lezíria do Tejo, sub-região que, desde 2002, integra a região em causa para fins estatísticos.
Acresce que há fortes evidências empíricas (ver, por exemplo, OECD, 1994; Silva, 2009, 2014; Walmsley, 2003) de que, apesar dos efeitos positivos que pode ter em alguns casos, o turismo não é uma panaceia para debelar os problemas das áreas rurais, nem todos os contextos rurais são adequados para o desenvolvimento do turismo e o contributo do sector para a regeneração socioeconómica dos meios rurais fica amiúde aquém das expectativas ou previsões.