Preâmbulo
A nova ordem patrimonial, na qual o património cultural e imaterial tem assumido um papel central e aglutinador, tem servido simultaneamente de mote e de motor para a criação de novas atrações turísticas, a diferentes ritmos e escalas, um pouco por todo o mundo. Os recentes e crescentes anseios e expetativas que têm por objetivo a participação na criação e classificação de elementos patrimoniais, nomeadamente junto de instituições como a UNESCO, são fenómenos em relação aos quais a antropologia tem prestado atenção - sendo também, tantas vezes, parte ativa nesses processos - e que se têm estendido a diversas esferas, entre as quais a dos consumos e práticas alimentares.
Efetivamente, a par com uma prolífica produção teórica sobre património material e imaterial,1 a reflexão sobre a especificidade da alimentação enquanto património cultural tem igualmente começado a dar os seus frutos, como se pode verificar através do volume organizado por Brulotte e Di Giovine (Brulotte e Di Giovine, 2014), ou aquele organizado por Lum e Le Vayer (Lum e Le Vayer, 2016), no qual os efeitos da classificação de práticas e produtos alimentares enquanto património pela UNESCO (Coreia do Sul, México, Espanha) são já discutidos.
Desta forma, é objetivo deste texto pensar e discutir a criação de produtos e atrações turísticas a partir de classificações patrimoniais que tenham por objeto elementos e práticas alimentares, centrando-se na classificação da Dieta Mediterrânica2 enquanto património cultural imaterial da humanidade pela UNESCO - candidatura transnacional protagonizada por sete países (Portugal, Espanha, Itália, Grécia, Chipre, Croácia e Marrocos) - e ancorando-se etnograficamente na região de Chefchaouen (Marrocos),3 uma das “comunidades representativas”4 da candidatura.
No caso da Dieta Mediterrânica será importante perceber se a narrativa transnacional ligada à alimentação, para além de estar presente nos materiais da candidatura apresentada à UNESCO é, efetivamente, operativa às escalas nacionais e regionais. Por outras palavras: como se procura capitalizar a classificação da Dieta Mediterrânica em património alimentar?
Este texto, ao centrar-se na análise de um território que deu origem a uma classificação patrimonial, fá-lo, em grande medida, à luz daquilo que entendemos constituir-se enquanto iniciativas de transformação da Dieta Mediterrânica em produto/mercadoria, e que são visíveis, com especial ênfase, no plano da promoção turística. Finalmente, procurar-se-á perceber como se constrói localmente uma ideia de (e um mercado para a) Dieta Mediterrânica, e que estratégias e mecanismos são usados para o efeito.
Assim, a partir da constatação de que a economia política da patrimonialização funciona, regra geral, de cima para baixo (Crooke, 2010; Smith, 2006), pretendo aqui discutir os processos através dos quais as populações locais - munidas, manifestamente, de aspirações e estratégias diversas - procuram (ou não) participar na criação de atrações turísticas, e/ou beneficiar da transformação de eventuais elementos patrimoniais em produtos que possam ser promovidos e vendidos. Acredito que a invenção de atrações turísticas a partir da retórica e da linguagem da patrimonialização e, consequentemente, da praxis daí decorrente, se podem traduzir num desafio do turístico - mote para este dossiê temático - em relação ao qual a antropologia e a prática etnográfica terão um contributo a dar.
Entendendo que a arena das classificações patrimoniais é fortemente disputada, competindo nela vários atores pelas vantagens associadas à validação do património, e tendo em conta que não são apenas os grupos dominantes que cobiçam os eventuais benefícios que as classificações patrimoniais prenunciam, irei propor que os processos de conceção do património (desde a sua mise en œuvre à sua mise en scène) não estão fora do controlo das comunidades.
Esta sugestão, que o trabalho de campo etnográfico realizado parece vir confirmar, acompanha Pfeilstetter (Pfeilstetter, 2015) quando refere que a atenção - ao pensarmos sobre o papel da agência na criação de património cultural5 - não deve estar centrada na tentativa de distinção entre “detentores de património” e “praticantes do património”, mas antes na problematização da ideia de “empreendedorismo patrimonial”, e dos seus múltiplos atores, expetativas e possibilidades de apropriação.
No entanto, se considerarmos que a definição de Pfeilstetter (Pfeilstetter, 2015) para “empreendedorismo patrimonial” é operativa e funcional tendo em conta a realidade observada em Chefchaouen, a abordagem que aqui se pretende realizar foge ao universo discutido pelo autor - que se foca exclusivamente na conceção e construção institucionalizada do património. Para Pfeilstetter, “empreendedorismo patrimonial” é uma formulação que “[…] aborda o caráter competitivo, conflituoso e marcado pela agência, do património cultural” (2015: 215), entendendo ao mesmo tempo o conceito de empreendedorismo como “[…] um processo de mudança social promovido pela institucionalização de ideias inovadoras e/ou antagónicas numa sociedade” (2015: 219).
Desta forma, a distinção entre “detentores do património” e “praticantes do património”, tal como é realizada por Pfeilstetter, revelou-se operativa (e útil) tendo em conta o contexto e as especificidades de Chefchaouen, tomando-os - detentores e praticantes - enquanto atores que mobilizam diferentes práticas e discursos perante as possibilidades de transformação do património em mercadoria, mas igualmente como categorias plásticas e permeáveis e, sobretudo, não exclusivas e estanques.
Assim, este texto insistirá na premissa de que os processos de onstrução/invenção/transformação do património não estão fora do controlo das comunidades - considerando neste sentido todas as suas pluralidades e diferenças - e procurará, não perdendo de vista o conceito de “empreendedorismo patrimonial”, verificar a sua possibilidade de adaptação a outros grupos e interlocutores que não apenas aqueles ligados ou integrando instituições.
Mais concretamente, este texto procurará perceber como se articula, em Chefchaouen, a transformação da Dieta Mediterrânica - enquanto conjunto diverso de práticas e consumos alimentares - em produto/mercadoria, no domínio específico da promoção turística, e naquele que é o terreno disputado dos eventuais benefícios patrimoniais.
Chefchaouen
Situada no noroeste de Marrocos, Chefchaouen está inserida na região montanhosa do Rife, a uma altitude de 600 metros, sendo limitada a norte pelo Mediterrâneo. A sua zona circundante é rica em florestas de sobreiros e abetos, localizando-se nas proximidades de um parque nacional (Talassemtane)6 e junto a um parque natural (Bouhachem).7 A cidade desenvolveu-se em torno de uma medina8 de cerca de dez quilómetros quadrados, cuja edificação remonta ao século xv e que, sendo totalmente pedonal, constitui a principal atração turística da cidade.
Chefchaouen está etnicamente inserida no Pays Jbala, que geograficamente se estende desde o estreito de Gibraltar até Taza, lugar onde as montanhas do Rife e do Médio Atlas se encontram. Os jbala são um grupo étnico de origem amazigh do Norte de Marrocos, sendo a palavra “jbala” o plural de “jebli”, que significa “da montanha”. No entanto, outro termo pode ser utilizado para caraterizar etnicamente os habitantes desta região: ghomara.9 Esta designação - consagrada pela história medieval - terá sido progressivamente substituída (eventualmente a partir do séc. xvi) (Vignet-Zunz, 2014) pela de jbala. Herdeiros de um território marcado pela predominância de uma agricultura de subsistência os jbala/ghomara são frequentemente caraterizados pela sua hábil gestão dos recursos agrícolas, e por manterem uma forte relação com a terra, algo que legitima a ideia da preexistência de um modelo alimentar e gastronómico específico e singular na região.
No dossiê de candidatura apresentado em 2010 junto da UNESCO, Chefchaouen é descrita a partir da enfatização do seu passado multicultural e inter-religioso, mas também enquanto modelo de biodiversidade e sustentabilidade.10 No discurso ali mobilizado, diversidade cultural e diversidade biológica apresentam-se como as duas faces da retórica patrimonial: o binómio natureza/cultura integra e incorpora de forma cada vez mais evidente e acentuada as narrativas patrimoniais da UNESCO, que procuram glorificar discursivamente uma ideia de diversidade (cultural e biológica) que pode ser apreendida e valorizada por via da patrimonialização.
Chefchaouen é um dos territórios turísticos rurais mais emblemáticos de Marrocos,11 quer para o turismo internacional, quer para o turismo interno, onde se tem afirmado ao longo dos últimos anos como um dos destinos que fazem parte das preferências dos turistas marroquinos,12 sendo o turismo um dos principais setores de atividade económica na região.
Dados de 2015 apontam para o registo de 46.253 chegadas a estabelecimentos turísticos classificados em Chefchaouen, de onde 17.589 correspondem a turistas não residentes em Marrocos, e 28.664 correspondem a turistas residentes (Observatoire du Tourisme Maroc 2015a), tendo o turismo interno, tomando estes dados, um peso de 62% na atividade turística desenvolvida na localidade. Dados relativos a 2017 emitidos pela Delegação Provincial de Turismo apontam para um total de 28.619 turistas internacionais (dos quais 13.600 oriundos da China) durante os primeiros dez meses do ano, e de 12.001 turistas internos, uma diminuição de 20% em comparação com o mesmo período de 2016 (Aujourd’hui Le Maroc, 3 de janeiro de 2018),13 numa quase inversão estatística de proveniências em comparação com os dados de 2015.
Em termos de infraestruturas turísticas, Chefchaouen dispõe de 37 hotéis, 20 pensões, 51 casas de hóspedes e 20 casas rurais, num total de 3400 camas, e de um total de 60 estabelecimentos de restauração, entre os quais 53 restaurantes e sete negócios de fast-food.14
Chefchaouen constitui-se sobretudo enquanto um expressivo destino de turismo rural, no contexto de uma “febre turística” que tomou de assalto o universo rural marroquino (Berriane e Moizo, 2016), como alternativa aos destinos de turismo balnear e às grandes cidades - imperiais15 e turísticas - privilegiadas pelos poderes públicos desde a década de 1970 até à década de 1990 (Berriane e Moizo, 2016).
Em Chefchaouen, evoluiu-se de uma situação de quase inexistência de infraestruturas turísticas na década de 1970 - os turistas pernoitavam muitas vezes em casa dos habitantes locais (Thompson, 2011) - para uma consolidação da oferta turística na década de 1990, a partir de iniciativas dos habitantes locais que vislumbravam no turismo uma oportunidade para diversificar e aumentar os seus rendimentos.
Mas será apenas a partir da década de 2000 que passa a existir uma estratégia concertada a partir do Ministério do Turismo marroquino em relação às potencialidades do turismo rural no país,16 traduzida na criação dos Pays d’Accueil Touristique (PAT), que pretendem constituir unidades físicas e culturais territorializadas, dotadas de uma identidade própria, e que em Chefchaouen - localidade pioneira dos PAT - tiveram o seu início em 2003. No entanto, e apesar de um expressivo setor turístico na região, a taxa de desemprego ronda os 20%.17
Para além do turismo, a agricultura representa também um importante setor de atividade económica, com 183 hectares cultivados,18 numa localidade reconhecida pela sua forte componente agro-pastoril, na qual a população rural representará cerca de 87,2% da população total (recenseamento de 2019).19 No entanto, o relevo acidentado do território reduz consideravelmente as superfícies agrícolas úteis, pelo que a agricultura praticada é essencialmente uma agricultura tradicional de subsistência, que ocupa cerca de 85% da população ativa da região.
Neste sistema agrícola caraterizado pela existência de pequenas propriedades (90% das propriedades agrícolas terão uma superfície inferior a cinco hectares), predomina a prática de policulturas, bem como a cultura predominante de variedades locais e a manutenção das culturas marginais e das práticas tradicionais de conservação da biodiversidade, num sistema de produção que procura integrar as lavouras com espécies florestais e pastagens. Assim, podemos encontrar na região pelo menos seis variedades de cereais, oito variedades de leguminosas e 15 variedades de fruta (Ater e Younes, 2008). Não obstante, a oliveira representa a principal cultura da região, ocupando 77% da superfície arbórea.
A criação local de cabras é igualmente expressiva, bem como um dos seus principais derivados - o queijo jben - queijo fresco feito a partir de leite de cabra e reconhecido local e internacionalmente. Existe igualmente uma fábrica de fiação de lã, bem como um universo de 20 cooperativas e cinco associações de artesãos que reúnem cerca de 900 dos 4000 artesãos existentes na localidade (Commune Urbaine Chefchaouen, s.d.). A região é ainda conhecida pela produção de carne de cabrito e uma grande diversidade de produtos lácteos (manteiga, smen,20leben 21 e queijo), bem como pela produção de mel de alfarrobeira e de medronho.
Alimentação e património: valor, diferença e terroir
Iniciada em 201022 e contando já com mais de duas dezenas de inscrições em 2019, a transformação dos produtos, das práticas e dos consumos alimentares em património classificado pela UNESCO é um fenómeno que terá tendência para se multiplicar nos próximos anos. Como tal, acredito que as reflexões - sobretudo aquelas que partem da etnografia - sobre os efeitos, os processos, os atores, as práticas e os discursos que estão na origem ou que resultam das classificações patrimoniais - poderão ser profícuas tendo em conta a proliferação de processos de patrimonialização em curso.
A forma como a inscrição na lista da UNESCO confere valor aos elementos classificados é um excelente auxiliar na transformação da Dieta Mediterrânica em produto turístico. Este valor, com origem numa distinção mundial, incorpora e certifica outros tantos valores, tais como a autenticidade, a integridade, a relevância e singularidade das práticas convertidas em património. A partir do conceito de cultura definido e utilizado pela UNESCO,23 a Dieta Mediterrânica é promovida como um elemento cultural, mas também como um estilo de vida que se relaciona com uma série de valores, tais como hospitalidade, vizinhança, convivialidade, diálogo intercultural e transmissão intergeracional.
Ao mesmo tempo, e tal como noutros processos de reconhecimento patrimonial pela UNESCO, a classificação da Dieta Mediterrânica assentava numa candidatura que mobilizava a narrativa comunidade-património (Crooke, 2010), na tentativa de estabelecer uma conexão intrínseca e mutuamente legitimadora entre ambos - comunidade e património - que fosse, aprioristicamente, motivo suficiente para uma validação patrimonial. Mas, no caso concreto da Dieta Mediterrânica, por se tratar de uma candidatura transnacional, esta narrativa adquire, necessariamente, outros contornos, nomeadamente na definição e entendimento do que é, então, a comunidade.
A par com a presença de uma narrativa que enuncia a relação preexistente e simbiótica entre comunidade e património, narrativa cuja operacionalidade passa por diferentes estratégias e ativa diversos mecanismos de pertença identitária, neste caso, a construção de uma ideia de comunidade remete invariavelmente para uma formulação impregnada de referentes geográficos relativos às “populações mediterrânicas”, que vai beber a diferentes fontes e que se presta, situacionalmente, a diferentes leituras e interpretações.
Não obstante, a Dieta Mediterrânica compreende um leque de práticas alimentares tão distintas e ao mesmo tempo tão difusas que, no âmbito de uma classificação transnacional, se torna complexo falar-se em produtos caraterísticos ou específicos relativos às práticas alimentares mediterrânicas de uma forma transversal.
O filme promocional feito pelas sete comunidades representativas da candidatura é exemplo disso mesmo: nele, para além da insistência da universalidade mediterrânica do consumo do pão e do azeite, poucos ingredientes ou práticas são eleitos como símbolos de uma alimentação universalmente mediterrânica.24 A produção teórica sobre o Mediterrâneo e a forma como uma ideia de “identidade mediterrânica” foi sendo construída (e reconfigurada), tem-se revelado, neste âmbito, um importante auxiliar na análise sobre as narrativas mobilizadas, pré e pós, classificação da Dieta Mediterrânica, bem como sobre as suas tentativas de transformação em produto turístico.25
Efetivamente, o que se vê neste pequeno filme são essencialmente imagens que remetem para um universo rural, onde a ideia de um passado pristino é exaltada enquanto modelo de boas práticas alimentares. Desta forma, o filme recorre frequentemente a um imaginário que procura a recriação de uma estética de “autenticidade”, remetendo não raras vezes para a ideia de replicação de um universo rural e tradicional ligado ao passado, e à própria utilização deste passado enquanto recurso (Tunbridge e Ashworth, 1996; Bessière 1998; Aitchison, MacLeod e Shaw, 2000).
Paralelamente, um dos passos para a transformação da comida em património ocorre quando é dotada de, ou lhe é reconhecida, uma dimensão coletiva, por via da comensalidade ou de uma ideia de passado partilhado, de ritual e repetição. Tal como refere Pfeilstetter (Pfeilstetter, 2015), a transformação da Dieta Mediterrânica em património cultural configura igualmente a comida comum, a comida do dia-a-dia, em comida diferente, quer qualitativamente (boa para a saúde e sustentável), quer culturalmente (mediterrânica e tradicional).
Não obstante, e tendo em conta a dificuldade em identificar consumos transnacionais mediterrânicos entre os sete países que representam a Dieta Mediterrânica, tem-se optado de uma forma estratégica por a definir enquanto “estilo de vida”, retórica onde questões como a importância da sazonalidade e da produção local se ativam para a criação de produtos gastronómicos “autênticos” e “tradicionais” com uma forte componente de ligação ao território.
Alimentação e turismo: de volta ao terroir… e ao território
Para muitos turistas, a alimentação e os consumos alimentares nos países visitados são a forma mais real de chegar à cultura local e de comunicar com os lugares. A comida apresenta-se como um bom veículo para consumir o outro a partir da ideia da existência de práticas alimentares intrinsecamente nacionais/regionais, e será também eventualmente a forma mais evidente e fácil de contacto com as sociedades visitadas e as diversas alteridades enunciadas. Para Lucy Long, “[…] food seems to provide us with a sense of the ‘realness’ of things. Because of food’s commonality to all cultures, it allows us to experience the diversity within that commonality, providing us with groundedness from which we can embark on adventures into otherness” (Long, 2004: 15).
Ao mesmo tempo, se o papel do turismo - e as suas transfigurações ao longo do tempo - não pode ser negligenciado na transformação do mundo e na sua contribuição para uma certa hegemonização dos consumos e práticas, depressa o setor do turismo percebeu que a alimentação pode constituir igualmente um elemento de diferenciação cultural, podendo ser símbolo de uma identidade nacional ou regional, constituindo essa capacidade de criação de diferença um recurso fundamental no contexto de um mercado global cada vez mais competitivo no que diz respeito a recursos e produtos turísticos (Hall e Sharples, 2003).
Desta forma, a alimentação tem vindo progressivamente a ocupar terreno enquanto atração turística per se, afirmando-se como representante cultural e identitária de um país ou de uma região, refletindo quer a sua diversidade, quer as suas especificidades, e operando enquanto súmula e condensado cultural que atua através daquilo que é mais imediato e instintivo: as perceções sensoriais dos turistas através do paladar e do olfato, bem como a sua dimensão imperativa, tal como é referida por Bessière: “The emphasis on gastronomy is thus revealing, since it integrates eating into a new cultural world, from both a psychological and physiological standpoint” (Bessière, 1998: 22).
Para Driss Boumeggouti (Boumeggouti, 2006: 127), a possibilidade de consumo da alteridade através da alimentação teria caraterísticas específicas num contexto nacional como o marroquino, no qual o leitmotiv turístico seria o do contacto com todos os clichés relativos a uma ideia de exotismo oriental: opulência; explosão de cores, sabores e odores; variedade de especiarias e de aromas, aliados a um sincretismo subtil entre elementos da alimentação mediterrânica, africana, oriental e de outros lugares do mundo.
Creio, no entanto, que os efeitos da globalização transformaram substancialmente esta estafada projeção orientalista relativa à gastronomia marroquina. A importância do regional e do local e, consequentemente, o valor do território ligado aos consumos alimentares, recentram e focam a atenção nas especificidades regionais e na ideia de terroir 26 como a verdadeira e insubstituível experiência gastronómica, mas igualmente, e tal como é referido por Bessière (1998), a ideia do mundo rural como o lugar por excelência de encontro de uma “identidade perdida”, invariavelmente ligada à revitalização dos “bons velhos tempos” e das “boas velhas práticas alimentares”.
Desta forma, é a partir da ideia da importância do local na alimentação, e da ancoragem dos produtos e das práticas alimentares a um lugar específico, que nasceram movimentos como o slow food,27 caraterizando-se por fazer a apologia de uma ideia de “globalização virtuosa” (Leitch, 2013[2009]), um novo figurino de cosmopolitismo que procura romper as oposições binárias rural/urbano, local/global, reconfigurando a definição de localismo numa espécie de “ethical glocalism” (Leitch, 2013[2009]), e é com base nesta mesma ideia da existência de uma especificidade alimentar regional - bem como o seu terroir específico - que se consolidaram os pressupostos da existência de uma Dieta Mediterrânica em Chefchaouen.
O típico, o tradicional e o selecionado: a Dieta Mediterrânica em Chefchaouen
Voltando a uma das premissas deste texto, a maneira como a patrimonialização da Dieta Mediterrânica converte a comida comum em comida diferente, interessa então refletir sobre as várias formas como essa diferença é capitalizada, disputada e apropriada, em Chefchaouen. Uma das maiores evidências dessa capitalização assenta no modo através do qual diferentes produtos e serviços turísticos podem agora ser promovidos institucionalmente - e com legitimidade acrescida - enquanto tradicionais, autênticos e sustentáveis, a partir da sua ancoragem às práticas da Dieta Mediterrânica.
Um dos setores onde é mais evidente a transformação da Dieta Mediterrânica num produto é o da restauração. Se existe institucionalmente a tentativa de tornar a Dieta Mediterrânica numa mercadoria e, especificamente, num produto turístico, esta operação é, em Chefchaouen, muito mais operativa e eficaz quando é feita aparentemente fora da esfera institucional.
Para os turistas marroquinos parecem existir duas especialidades gastronómicas caraterísticas de Chefchaouen: a baissara 28 e a tagine de anchovas. Já para os turistas internacionais, o setor da restauração local parece baralhar produtos de origem regional com produtos marroquinos, que não específicos da região de Chefchaouen. Desta forma, se para os agentes locais existe a tentativa de criar uma identidade gastronómica caraterística, com uma componente fortemente identitária, os símbolos dessa identidade acabam por ser, no fundo, um bricolage de várias práticas gastronómicas regionais de Marrocos. Veja-se a este respeito alguns menus destinados a turistas na medina de Chefchaouen (figura 1). A ideia de “produtos da terra” ou de “menu tradicional” é no fundo uma amálgama de regionalismos marroquinos - como o amlou 29 - combinada com alguns modismos gastronómicos internacionais, como é o caso do hummus.

Fonte: Joana Lucas, Chefchaouen. Julho de 2017
Figura 1: Ementa de pequeno-almoço na praça Outa El Hamam
Não querendo aqui obscurecer aquilo que é proposto pelas ementas dos restaurantes em Chefchaouen, nem retirar legitimidade às mesmas, procuro apenas assinalar que a metamorfose operada, sob a égide da Dieta Mediterrânica, da comida do dia-a-dia em comida diferente, pode resultar em produtos e resultados diversos, eventualmente antagónicos, pouco coesos ou heterogéneos. Essa transformação, ao ser operada por distintos atores sociais - com diferentes formas de olhar e conceber o património - servirá sempre interesses e vontades múltiplas, revelando a plasticidade e a adaptabilidade de formas que as práticas alimentares podem adotar quando da sua transformação em património e, por conseguinte, mercadoria, afinal também ela sujeita à tensão existente entre oferta e procura.
Paralelamente, as tentativas de transformação da Dieta Mediterrânica num produto turístico assentam invariavelmente na afirmação de valores como a “autenticidade”, associados às culturas locais, ou a uma ideia de identidade reificada, valores que não raramente funcionam como reação às tendências da globalização.
Ahmed Skounti (Skounti, 2009: 74) refere sobre a aquisição do estatuto de património imaterial que esta tem regra geral duas implicações: por um lado, introduz uma distorção entre o património e o território que lhe deu origem, podendo esse mesmo património ser reproduzido em qualquer lugar do planeta através da mobilidade das pessoas e da mercadorização da cultura, enquanto, por outro lado, a produção de um património cultural imaterial implica o sacrifício de algo, na maior parte dos casos daquilo que transforma os próprios factos culturais em património.
Se a análise de Skounti faz sentido sobretudo quando inserida numa crítica mais ampla à globalização cultural, considero, no entanto, que os efeitos concretos da classificação da Dieta Mediterrânica enquanto património cultural imaterial em Chefchaouen questionam eles próprios a afirmação de Skounti na forma como estão dependentes de uma relação particularmente efetiva entre território e práticas alimentares que só pode ser ativada in loco.
Assim, a questão que se coloca é a de que a Dieta Mediterrânica na sua dimensão transnacional não existe enquanto conjunto coerente de produtos, práticas alimentares e ingredientes de forma coesa e hegemónica. A Dieta Mediterrânica, na sua transformação em objeto patrimonial e em objeto de consumo, teve de ser inventada localmente e de forma diferenciada em cada território que deu origem à sua candidatura enquanto património cultural e imaterial junto da UNESCO.
Desta forma, a distorção de que fala Skounti entre o património e o lugar que lhe deu origem, tem em Chefchaouen o efeito inverso: aqui foi necessário conectar o património concetualizado de forma transnacional, e tendo o denominador “mediterrânico” como único em comum, com a realidade local e encontrar ou inventar correspondências entre produtos, ingredientes, práticas e o próprio território. É precisamente sobre esta invenção local da Dieta Mediterrânica que me irei deter de seguida.
A invenção institucional da Dieta Mediterrânica: curadoria e conexão
Desde a sua primeira classificação pela UNESCO, em 2010, a Dieta Mediterrânica tem sido um dos principais temas dos projetos de desenvolvimento levados a cabo na região de Chefchaouen, tal como referido em alguns documentos oficiais.30 De entre uma série de projetos institucionais e programas de sensibilização despoletados pela classificação da Dieta Mediterrânica, irei destacar quatro iniciativas institucionais, que passarei a elencar e descrever, e que me foram apresentadas como sendo as mais relevantes no plano da divulgação e disseminação da Dieta Mediterrânica enquanto património cultural imaterial.31
O Museu da Dieta Mediterrânica de Chefchaouen
Ainda sem data de abertura prevista, o Museu da Dieta Mediterrânica de Chefchaouen resulta de uma iniciativa da Municipalité de Chefchaouen com o apoio da Agence pour la Promotion et le Développement du Nord. O museu deverá contar com uma sala de exposições permanentes, uma sala multimédia, uma loja de produtos locais, um espaço de degustação, um ponto de informação turística e um jardim botânico.
O conceito subjacente para o percurso expositivo do museu assenta na ideia da transição de etapas e processos “da paisagem para a mesa”, conceção a partir da qual a progressão seria feita da seguinte forma: paisagem - agricultura - mulheres e Dieta Mediterrânica - comercialização - mercado - cozinha - mesa.32
O espaço dedicado ao mercado - souk 33 - é tido como um espaço repleto de informações e estímulos, no qual os produtos específicos da região serão postos em evidência: pão, figos, medronheiro, arroubo (ou arrobe),34 azeite, mel, leguminosas, cogumelos secos, lacticínios, ervas aromáticas, especiarias e condimentos. Será também reproduzida uma cozinha beldi (da terra/região) que irá ostentar, entre outros objetos, uma série de utensílios necessários à preparação da baisara,35 aqui identificada como o símbolo da culinária chauni (de Chefchaouen) (figura 2).
Está ainda prevista uma secção de caráter educativo onde existirá uma pirâmide alimentar, cujo objetivo é sensibilizar os visitantes para as questões de saúde ligadas à alimentação, e para os benefícios da Dieta Mediterrânica enquanto regime alimentar. Esta pirâmide alimentar será, no entanto, adaptada à realidade marroquina e, como tal, nela não constarão nem bebidas alcoólicas nem carne de porco, mas sim: “[…] borrego, espetadas, figos, figos da Índia, cuscuz, salsa e coentros, pastelaria marroquina, leben e bules de chá”.36
O pão: reabilitação de fornos tradicionais e criação de percursos turísticos
Uma outra iniciativa levada a cabo pela Municipalité de Chefchaouen foi a reabilitação de fornos tradicionais destinados à cozedura de pão, com a colaboração da Agence Municipale de Développement de Chefchaouen (AMDC). Esta última refere-se, numa publicação de maio de 2017, à reabilitação de quatro fornos, inserindo-a numa estratégia de preservação do património arquitetónico, mas igualmente enquanto importante componente das práticas da Dieta Mediterrânica. O forno rif sabanin,37 um dos mais emblemáticos da recente reabilitação, localiza-se numa área da cidade bastante turística e objeto, ela própria, de uma recente intervenção urbanística (Sebbanine, Ras El Maa), integrando o circuito turístico “Itinerário Histórico” promovido através de brochuras turísticas (figura 3).
No entanto, a maioria dos fornos tradicionais para a cozedura de pão existentes na medina de Chefchaouen (cerca de 13) ostenta placas semelhantes em azulejo com o mesmo tipo de informação que o forno rif sabanin, não sendo clara a distinção entre as diferentes fases de reabilitação de fornos de pão por parte do município de Chefchaouen. Um outro forno integra o circuito turístico intitulado “Itinerário do Souk Beldi”, tratando-se neste caso do forno de bab souk.
Criação de uma marca de qualidade territorial: Chefchaouen - Dieta Mediterrânica
Igualmente iniciativa da Municipalité de Chefchaouen, a criação de uma marca de qualidade territorial em Chefchaouen, diretamente ligada à classificação da Dieta Mediterrânica pela UNESCO, é descrita nas palavras de Mohamed Sefiani (presidente da Municipalité de Chefchaouen) como “[…] uma iniciativa de grande envergadura quer pelo seu impacto em setores diversos como o turismo, o artesanato, e o setor agroalimentar, quer pela quantidade de atores mobilizados e sua amplitude sobre o conjunto do território da região de Chefchaouen”38 (tradução minha). Esta iniciativa, financiada pela Agência Espanhola de Cooperação Internacional e Desenvolvimento (AECID), e levada a cabo localmente pela Association Talassemtane pour l’Environnement et le Développement (ATED), passa pela integração dos agricultores nos processos de certificação desta marca territorial, cuja definição e implementação junto de restaurantes e hotéis locais está de momento em curso (figura 4).

Fonte: Joana Lucas, Tavira. Agosto de 2019
Figura 4: Painel alusivo à criação da marca Chefchaouen - Dieta Mediterrânica
Estes produtos, que deverão ser “oriundos de produção local, respeitar o meio ambiente e estar em conexão com a Dieta Mediterrânica” (Diagnostic Agro-Paysager de la Ceinture Verte de Chefchaouen 2014: 70), correspondem à tentativa local de criação de uma marca de terroir que, apesar das iniciativas de diversas associações locais e ONG internacionais, não foi ainda concretizada.
Durante a minha estadia de terreno em Chefchaouen, em julho de 2017, pude observar a existência de algumas lojas de “produtos certificados”, entre os quais azeite, vinagre de maçã de Imilchil (Alto-Atlas, região de Tafilalet), óleo de argão de Essaouira (região de Marraquexe - Tensift - Al Haouz), azeitonas, sal e mel, mas, à data, nenhum proveniente da região circundante. No entanto, segundo o funcionário de uma dessas lojas, os produtos alimentares que ali se vendiam não tinham muita procura quando comparados com os produtos cosméticos que também se vendiam nos mesmos estabelecimentos.
Criação da rede de restaurantes comprometidos de Chefchaouen
Em julho de 2017, num universo de 53 restaurantes, cinco integravam a rede de restaurantes comprometidos de Chefchaouen. Sob o mote “agro-écologie et commerce solidaire”, esta rede procura promover e consolidar uma relação mais próxima com os produtores locais (nomeadamente das zonas rurais de Brikcha, Bouhachem e Talassemtane) na sua política de aquisições para a restauração, comprometendo-se com um montante mínimo anual de compras junto de agricultores certificados.

Fonte: JoanaLucas, Chefchaouen. Julho de 2017
Figura 5: Cartaz alusivo à rede de restaurantes comprometidos de Chefchaouen
No entanto, apenas um dos cinco restaurantes aderentes ostenta, em lugar visível, a informação relativa à sua integração na rede de restaurantes comprometidos de Chefchaouen (figura 5), nos restantes quatro restaurantes aderentes essa informação não é exibida publicamente. Contudo, e tendo em conta as dinâmicas observadas relativas ao setor da restauração em Chefchaouen, o eventual sucesso comercial dos restaurantes locais está longe de passar pela ostentação desta informação, dependendo sim - como em tantos outros lugares do mundo - da sua pontuação em sites de restauração e gastronomia, bem como da sua popularidade e notoriedade junto de guias turísticos e habitantes da medina.
Agência e criatividade: os espaços em branco da “Dieta Mediterrânica”
Em suma, das quatro iniciativas institucionais aqui elencadas - não obstante as suas diversas dimensões e objetivos - nenhuma, em bom rigor, atua como promotora das práticas da Dieta Mediterrânica enquanto “bem” patrimonial: (1) um museu cujo projeto se encontra bloqueado por dificuldades de financiamento; (2) um conjunto de fornos de pão reabilitados cuja proposta de circuito pedonal não chega aos turistas;39 (3) uma marca de certificação regional que, apesar de inúmeras e louváveis iniciativas de envolvimento das comunidades locais - e apesar de existir já uma série de produtos alimentares que se encaixam no perfil enunciado - não saiu ainda do papel; (4) uma rede de restaurantes comprometidos que apenas angariou cinco restaurantes num universo onde existem dez vezes mais estabelecimentos.
Tudo isto revela-nos que as iniciativas de divulgação e promoção da Dieta Mediterrânica a partir da esfera das instituições locais - e a partir das estruturas que recebem financiamentos para o efeito (municipais e outras) - não são as que têm maior expressão naquele que é o quotidiano dos habitantes da região de Chefchaouen, nem eficácia junto dos turistas.
Desta forma, se é no plano institucional que a Dieta Mediterrânica é teorizada na sua relação com o território e com as comunidades que lhe servem de substrato, é no plano informal que ela se revela aos turistas e se deixa descobrir, ainda que - para mal da coerência proposta e pretendida pelas instituições que selecionam e elegem o que é ou não legítimo e válido enquanto património - as escolhas (ou as condicionantes) dos atores informais sobre o que é ou não identificado como Dieta Mediterrânica, estão, não raras vezes, em dissonância com as definições institucionais.
Efetivamente, e ao contrário da maioria das classificações patrimoniais alimentares confirmadas pela UNESCO, a Dieta Mediterrânica constitui não só um desafio perante a ideia de consolidação de uma identidade nacional e de afirmação de um Estado-nação,40 operativos por exemplo através da criação de gastro-nacionalismos (Kim, 2016, sobre a classificação do kimchi sul-coreano; ou Matta, 2014, sobre o peso do nacionalismo culinário no Peru), como questiona igualmente uma conceção transversal de mediterrânico, marcada por uma diversidade de práticas alimentares, interditos religiosos e usos dados aos mesmos ingredientes.
De facto, e porque se trata da invenção da Dieta Mediterrânica ao nível local ou, numa formulação mais otimista, da tentativa de encontrar produtos que se lhe possam adequar, essas escolhas podem em última análise ser sempre subjetivas e situacionais. Se os agentes institucionais têm do seu lado a legitimidade para definir o que integra (e o que fica de fora de) uma conceção local de Dieta Mediterrânica, os atores informais, apesar de não estarem formalmente mandatados para o efeito, acabam por consubstanciar, quer para os turistas, quer para a comunidade local, uma concetualização de Dieta Mediterrânica através das escolhas que fazem e dos produtos que glorificam no mercado da restauração que é, inequivocamente, o lugar onde os turistas e esta dieta se encontram. Enfim, a capacidade e a abrangência da promoção da Dieta Mediterrânica de uma forma democrática e transversal encontram--se, inequivocamente, nas mãos dos atores sociais que não estão vinculados a projetos e a instituições.
Finalmente, importa evidenciar a relação que inevitavelmente se estabelece entre a indeterminação do património (neste caso, da Dieta Mediterrânica, especialmente problemática) no seu processo de institucionalização (que se estabelece num plano virtual e discursivo) e a sua recriação ou transposição para a realidade concreta do território, por parte dos agentes e populações locais. São estes, afinal, quem detém o poder de livremente, através de uma inevitável recriação sem o peso ou os constrangimentos institucionais, dar livre expressão ao que pode comportar uma dieta mediterrânica.