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Etnográfica

versão impressa ISSN 0873-6561

Etnográfica vol.25 no.3 Lisboa dez. 2021  Epub 25-Nov-2021

https://doi.org/10.4000/etnografica.10280 

Artigos Originais

Entre o universal e o singular: etnografia da produção de conhecimentos e formas de subjetivações em instituições lacanianas de psicanálise

Between the universal and the singular: ethnography of knowledge production and forms of subjectivations in Lacanian institutions of psychoanalysis

Maria Carolina de Araujo Antonioi 
http://orcid.org/0000-0002-4384-6802

iUniversidade Estadual de Londrina - UEL, Brasil, carol_araujo13@hotmail.com


Resumo

Este artigo analisa as controvérsias dentro do campo da saúde mental entre, de um lado, abordagens biomédicas, que destacam os aspectos neurofisiológicos, e, de outro, psicológicas, pautadas nos aspectos subjetivos, produzindo uma tensão entre sabres e técnicas universais e singulares na produção de conhecimentos e formas de subjetivação entre um polo e outro. A partir de pesquisa etnográfica realizada em instituições lacanianas de psicanálise, descrevo e analiso não só rupturas, mas, principalmente, continuidades na forma de produção de conhecimento e de tecnologias de cuidado dos saberes e práticas psi. O objetivo é problematizar como psicanalistas lacanianos, mesmo afirmando-se críticos da medicina científica, reproduzem a mesma estrutura universalista e normatizadora de formas de subjetivação presentes nos enquadramentos terapêuticos dos transtornos mentais.

Palavras-chave: saúde mental; psicanálise lacaniana; psiquiatria; produção de conhecimento; subjetivação

Abstract

This article analyzes the controversies within the field of mental health between, on the one hand, physicalistic approaches, which emphasize the brain’s function, and, on the other, psychological approaches, based on the subjective aspects, producing a tension between universal and singular theories and techniques in the production of knowledge and forms of subjectivation between one pole and another. Based on an ethnographic research carried out in Lacanian institutions of psychoanalysis, I describe and analyze not only ruptures, but mainly, continuities in the form of knowledge production and technologies of psi practices. The objective is to problematize how Lacanian psychoanalysts, even claiming to be critical of scientific medicine, reproduce the same universalist and normative structure of forms of subjectivation present in the therapeutic frameworks of mental disorders.

Keywords: mental health; Lacanian psychoanalysis; psychiatry; production of knowledge; subjectivation

“O conhecimento pode ser, ao mesmo tempo, objetivo e subjetivo” Lévi-Strauss

Os dualismos clássicos entre diferentes modos de concepção do humano e seu sofrimento psíquico, como natureza e cultura, corpo e alma, objetivo e subjetivo, universal e singular, cérebro e inconsciente, ciência e ficção, animam os conflitos no campo da saúde mental.1 Com os avanços das neurociências, a popularização dos psicotrópicos e a multiplicidade de modalidades psicoterapêuticas, os saberes e práticas psi se distinguem e circulam em múltiplas direções e pode-se aferir que as abordagens não são excludentes, já que o que se observa nas clínicas e instituições públicas e privadas de assistência é a confluência de uma perspectiva organicista com uma subjetivista e relacional.2 No começo dos anos 1960, período em que se acirra o processo de biologização da psiquiatria (Rose 2007), esta confluência torna-se mais complexa, e na década de 80, com a publicação da terceira edição do Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (DSM-III) (1989),3 caracterizado pela internacionalização da psiquiatria americana, a disputa torna-se bastante acentuada e permanece até os dias atuais (Russo e Venâncio 2006; Carvalho 2010; Duarte 2010).

As controvérsias se estabelecem na polaridade entre behaviorismo/neurociência e psicanálise/psicologia analítica que, segundo Mantilla (2017), produzem uma série de “deslocamentos semânticos” entre um polo e outro em torno de posturas epistemológicas e técnicas como “cientificismo versus humanismo”, ou “conhecimento científico versus especulações teóricas” que disputam visibilidade, legitimidade, autoridade e adeptos dos postulados terapêuticos. Entretanto, essas controvérsias e disputas não se devem a incompatibilidades epistemológicas, mas sim a posições dentro do campo de produção de saberes que se legitimam através de uma hierarquização pautada pela desqualificação de um saber/prática em detrimento de outro. O que se observa, portanto, é a “invenção da incompatibilidade”, pautada em uma polarização ideológica, na medida em que a ciência em si mesma não exclui a especulação teórica, assim como o humanismo não se situa externo ao discurso e método científico. Mente e cérebro não estão em contraposição, mas sim aqueles que ocupam posições mais ou menos subjetivistas e cientificistas.

Diante desta polaridade, este artigo busca descrever alguns elementos dessa discussão ao analisar não só as rupturas e afastamentos, mas as aproximações e continuidades no que tange a produção de conhecimento e de formas de subjetivação entre uma psiquiatria biológica e a psicanálise.4 O objetivo é atentar para o que, de fato, está em disputa, já que as diferenças entre os saberes e práticas dizem respeito menos à forma de apreensão e patologização dos sujeitos do que a modalidades de interpretação e autoridade terapêutica.

O foco, aqui, está na análise da psicanálise como uma tecnologia de cuidado pautada na construção de realidades psicológicas, construção esta que nos possibilita observar certas conexões entre dispositivos normativos de controle e governo dos sujeitos e os saberes e práticas psi (Foucault 1998).

Nessa orientação, há um campo de pesquisa no Brasil que desenvolve trabalhos de cunho etnográfico sobre práticas e teorias médicas e terapêuticas, centrados na noção “perturbações físico-morais”.5 Algumas linhas de investigação abordaram os saberes psi e sua aplicação em vários contextos, com análises sobre as transformações observadas nos centros urbanos brasileiros entre os anos 60 e 70 e o aumento da demanda por estas terapêuticas.6 A psicanálise passou a ser problematizada com base nas condições socioculturais que possibilitaram a sua emergência no país (Figueira 1980, 1981, 1988; Duarte 1986, 1997; Velho 1986, 1999; Russo 1993).

Inserida neste campo de reflexão, apresento aqui parte de pesquisas realizadas sobre/no campo da saúde mental desde 2010, referente a etnografia realizada em instituições de psicanálise lacaniana - a saber, a Escola Brasileira de Psicanálise Seção São Paulo (EBP-SP) e a Escuela de la Orientácion Lacaniana de Buenos Aires (EOL), ambas filiadas à Associação Mundial de Psicanálise (AMP)7 - nas quais pude observar as modalidades de produção e transmissão de conhecimento no contexto mesmo em que esta produção se estabelece, no caso, instituições lacanianas de formação de psicanalistas.8

As instituições lacanianas me pareceram um contexto etnográfico privilegiado para pensar os modos de construção dos referenciais teórico-metodológicos que orientam os psicanalistas a elas vinculados nas suas atribuições terapêuticas e a normatização da subjetividade que resulta destas práticas. Ao longo do trabalho de campo, os interlocutores se esforçavam em apresentar argumentos que destacassem a distinção de seu saber e de sua prática em relação aos outros saberes. Freud estabeleceu os parâmetros de autorregulamentação que as associações psicanalíticas deveriam assumir como espaços dedicados à produção e transmissão da psicanálise fora do âmbito das universidades. Esse estado de exceção levou os psicanalistas, independente de sua abordagem, a defender o estatuto diferencial da psicanálise em relação ao campo das ciências biológicas, físicas e humanas, e não faltam trabalhos, artigos e livros em que eles se esforçam para especificar seu saber e sua prática terapêutica. Nesse esforço, em vez de buscar uma definição clara, objetiva e consensual sobre o que, de fato, é a psicanálise, limitam-se à produção crítica de argumentos que visam indicar o que não é psicanálise, como expõe uma psicanalista:

“Psicanálise não é psicologia. O discurso das psicoterapias é de acordo com o discurso médico. A psicanálise nasceu desse discurso, mas depois se distanciou. As pessoas em tratamento analítico possuem ganhos terapêuticos, mas nossa meta não é o eixo terapêutico, é o eixo ético; não é uma ética do bem-estar vindo de fora, a psicanálise não é exata, não é ciência. Mas também não tem nada de misticismo. A psicanálise possui uma lógica própria, um regime de racionalidade diferente do científico.” 9

Aliada a isto está a postura de desqualificar o que não é reconhecido como saber psicanalítico, com interesse de criar uma assimetria radical, que retira daquele que não é considerado psicanalista a possibilidade de contestar a legitimidade ou a pertinência do saber psicanalítico. Através de uma retórica “autoelogiosa” de seus postulados, os interlocutores produziam uma perspectiva de superioridade da psicanálise lacaniana em relação a outros saberes psi. Tal postura é homóloga à dos psicólogos e psiquiatras adeptos do modelo biomédico, resultando em um campo de conflito e disputa.

Assim, mapear controvérsias é uma técnica desenvolvida por Latour (1994) para explorar e visualizar problemáticas no campo da produção de saber. Seguir as controvérsias e disputas internas a uma área de conhecimento funciona como um recurso didático para explicitação da teoria de ator-rede, mas que, como salienta Venturini (2010), seu escopo excede esse princípio, se estabelecendo como um método privilegiado de análise, especialmente, mas não exclusivamente, de questões em torno de redes sócio-técnicas. Na linha de pesquisa da antropologia da ciência, ou dos estudos sociais da ciência e da tecnologia, a cartografia das controvérsias é o exercício de observar e descrever questões ainda não estabilizadas no campo da produção de saberes. A existência de controvérsia indica que algum fato ainda não foi estabilizado, encerrado ou fechado em uma caixa-preta, com atores em disputa por um regime de verdade. Nessa leitura, um fato científico seria consequência, e não a causa, da resolução de controvérsias entre grupos opositores, e tais resoluções decorrem de ideias, técnicas e argumentos que são capazes de manter as alianças mais eficazes na produção de “verdades” (Collins e Pinch 2010; Hess 1997; Latour 2000, 2012).

A controvérsia aqui apresentada aponta para o embate entre duas vertentes teórico-práticas no campo dos sabres psi. Seguindo as recomendações metodológicas propostas por Venturini (2010), o recurso às controvérsias permite apreender argumentos, posições e perspectivas em conflito, acessando, com isso, parcialidades na produção de saber dos atores pesquisados que nos permitam traçar as intricadas linhas tecidas entre ciência, técnica e formas de subjetivação.

O estado de exceção do saber psicanalítico

A psicanálise tem a particularidade de ser de difícil definição: é uma teoria, mas não é ciência; é terapêutica, mas não é psicoterapia; tem explicação para todo e qualquer evento psíquico, mas não é padronizada. Tem a especificidade de estar diluída no campo intelectual, como preceito teórico presente nos departamentos de filosofia, sociologia, antropologia e política das universidades, sem falar na literatura e nas artes. Segundo suas determinações, o psicanalista prescinde do meio acadêmico para sua formação profissional.10 Cada instituição psicanalítica tem autoridade sobre a formação e a transmissão da psicanálise, sem submissão a padrões jurídicos, políticos e éticos externos. Ao contrário de certos grupos sociais que se esforçam por ter reconhecidas oficialmente suas práticas, os psicanalistas não demonstram interesse por tal reconhecimento - na verdade, eles atuam politicamente para evitar qualquer tentativa de regulamentação de sua profissão por parte do Estado, o que os leva à defesa radical da “distinção” de seu campo teórico e prático.11

Segundo Lézé (2010), a indeterminação dos contornos da profissão de psicanalista é tanta que é quase impossível enumerar os psicanalistas, a não ser contando-os um por um, pois há os que são filiados a instituições, há os que apenas participam de grupos de estudo informalmente, há os que não possuem vínculos com instituições, sem falar nos charlatães, como os lacanianos de Escola chamam àqueles que oferecem atendimento psicanalítico sem ter feito uma formação que julgam adequada, em uma instituição de psicanálise.12

Justamente por esta distinção estabelecida dentro do contexto dos saberes e práticas psi, as controvérsias envolvendo a psicanálise são recorrentes. É comum encontrarmos discussões sobre a obsolescência ou declínio da psicanálise, discursos que sentenciam o fim de seu potencial terapêutico frente às práticas médicas atuais, aos psicotrópicos e ao próprio contexto social contemporâneo.13 Geralmente, os argumentos remetem à falta de rigor científico de uma prática que se quer terapêutica, mas é incapaz de comprovar objetivamente sua eficácia, o que a torna incompatível com os tempos atuais (Cohen 2007). Entretanto, apesar de todo esse discurso sobre a crise da psicanálise, o divã continua fazendo parte do espaço social.

Para garantir essa permanência e ampliar seu alcance, os psicanalistas têm de afirmar a eficácia de sua prática e defender as particularidades e diferenças de seus métodos, ou seja, têm de mostrá-la, ao mesmo tempo, como e contra a ciência. Para meus interlocutores de pesquisa, não há problema algum na acusação de falta de cientificidade, ao contrário, esta falta é um ideal a ser alcançado - no entanto, observo uma série de contradições a esta proposta anticientificista presentes nos dispositivos de produção e transmissão do saber e da prática psicanalítica.

Em 1895, Freud publicou Projeto para Uma Psicologia Científica, em que argumenta como a psicanálise se enquadra nas ciências naturais, apresentando os processos psíquicos como estados quantitativamente determinados de partículas materiais especificáveis, no intento de compreender a natureza dos neurônios e suas conexões, ou seja, o funcionamento do cérebro e sua articulação com o psíquico, que poderiam ser considerados processos objetivos e livres de contradição (Freud 1996 [1895]). Em outro texto, postula que a racionalidade científica teria causado três feridas narcísicas na humanidade: a primeira foi a revolução copernicana, que retirou a Terra do centro do universo; a segunda, a teoria darwinista, que colocou o humano como desdobramento da natureza; e a terceira foi a psicanálise, com seu conceito de inconsciente, em que “O Eu se sente mal, depara com limites a seu poder em sua própria casa, a psique” (Freud 2010 [1917]: 247). Desta maneira, a prova da existência do inconsciente reside na sua capacidade de expressão (atos falhos, lapsos, chistes, sonhos, repetição dos sintomas), só possível de ser interpretada no contexto da experiência analítica, sob orientação do analista. Não só em seus primeiros escritos, mas ao longo de toda a sua obra, Freud buscou estabelecer as bases da psicanálise como ciência calcada na observação atenta e imparcial do aparelho psíquico, e fez da sua clínica psicanalítica laboratório e meio de experimentação.

Jacques Lacan foi o psicanalista que, reconhecido pelas inovações teóricas e práticas, trouxe à psicanálise interlocução com outros saberes das ciências humanas, como a filosofia, a antropologia e a linguística, e destacou-se como crítico ao funcionamento das instituições de psicanálise associadas à International Psychoanalytical Association - IPA.14 Expulso da IPA em 1963 por transgressões de ordem teórica e técnica referentes à condução da terapêutica e à formação de psicanalistas, criou sua própria instituição de psicanálise, a Ecole Freudienne de Paris - EFP, formando seguidores que compõem uma abordagem específica e contraposta à formação ipeísta.

A abordagem lacaniana se caracteriza pela produção de discursos contra a autoridade hegemônica dos modelos biomédicos e suas padronizações diagnósticas, que definem as psicopatologias a partir de categorizações generalizantes. Com isso, os seguidores desta linha saem em defesa radical da desmedicalização, partindo de uma concepção de sujeito determinado pelas relações sociais e pelos sistemas simbólicos, portanto não redutível ao materialismo neurológico. Tal posicionamento fornece subsídios para uma clínica crítica da razão médica, como se os paradigmas orientadores da terapêutica estivessem mais entre o mental e o social do que entre o mental e o orgânico.

Com isso, os lacanianos de Escola reclamam um saber específico, em referência não apenas ao conteúdo singular de cada sujeito, mas também a um estatuto próprio de conhecimento, como uma epistemologia construída e agenciada de maneira diferente daquela do pensamento científico racional. Tal postura tem como referência a noção de “extraterritorialidade”, operacionalizada pelos psicanalistas na designação da postura da psicanálise em relação a outros saberes.15 Em uma fala que proferiu em um debate no Collège de Médecine, em Salpêtrière, em 1966, intitulada “O lugar da psicanálise na medicina”, Lacan responde às críticas que alguns médicos faziam, baseados no princípio científico da evidência, de que a psicanálise era incapaz de apresentar qualquer eficácia de maneira comprovável, afirmando que o lugar da psicanálise

“atualmente é marginal e, como já escrevi em várias ocasiões, extraterritorial. Ele é marginal por conta da posição da medicina com relação à psicanálise e extraterritorial por conta dos psicanalistas, que provavelmente têm suas razões para querer conservar esta extraterritorialidade.” (Lacan 2001: 8)

Ao longo da fala, sua crítica se dirige ao pacto estabelecido entre medicina, ciência, Estado e indústria farmacêutica. Segundo ele, em algum momento da história (entre os séculos XVII e XVIII), os médicos incorporaram métodos que não deviam ser encarados só como consequência da necessidade de desenvolvimento do conhecimento, mas também como consequência de uma clara tendência a se coadunar com as exigências de um mundo em que o saber científico, sob incentivo do Estado, estabelecia como básico e universal o direito de cada cidadão a um ideal de saúde. Lacan via essa padronização do “bem-estar” - a necessidade em se manter saudável imputada aos sujeitos - ao serviço das normas utilitárias de produção, assujeitando-os ao controle do Estado. Salientava que, se a saúde se tornara objeto de uma organização mundial, o médico transformara-se em mero funcionário ao serviço de imperativos universais, como o de garantir a produtividade dos sujeitos. Crítico da psiquiatria biomédica, dizia que esta introduzira o cálculo de custos para a definição da estratégia clínica a ser adotada, oferecendo um tratamento que submetia o atendimento singularizado a lógicas administrativas, políticas e de gestão securitária determinadas pela confluência de interesses entre laboratório farmacêutico e Estado. Por fim, afirmava que o conceito de extraterritorialidade viria para dar conta dessa incongruência da teoria e da prática psicanalíticas em relação aos saberes médicos e psicológicos (Lacan 2001).

A noção de extraterritorialidade é, desde então, manejada pelos lacanianos de Escola. Constantemente me informavam que não há padrão, “cartilha”, “fórmula” do saber psicanalítico que possibilitem seu ensino fora da submissão à experiência analítica. Eric Laurent (2006), importante líder da AMP, salienta que a “experiência de Escola na formação do analista”, apesar de seguir certas orientações e determinações teóricas e objetivas, centra-se na relação intersubjetiva travada entre analista e analisante no interior da experiência analítica:16

“Longe de poder ser reduzida a um protocolo técnico, a experiência da psicanálise tem apenas uma regularidade: a da originalidade do cenário através do qual se manifesta a singularidade subjectiva. A psicanálise não é, portanto, uma técnica, mas um discurso que encoraja todos a produzir a sua singularidade, a sua excepção. […] A psicanálise não pode determinar a sua finalidade e o seu fim em termos de adaptação da singularidade do sujeito a normas, regras, determinações padronizadas da realidade.” 17

O que se tem é a afirmação de um conhecimento essencialmente singularizado, subjetivo e intimista. Porém, ao longo do trabalho de campo, por detrás da retórica institucional, os lacanianos de Escola sabiam exatamente quais as tecnologias de cuidado que deveriam ser transmitidas e assimiladas pelos pretendentes a analista. É o caso de Javier,18 membro da EOL, que afirmou estar em formação e descreveu instruções transmitidas nos cursos de formação:

“não responder à demanda do sujeito; não assumir a posição de saber; não se colocar no lugar de objeto a; não misturar suas questões com as do analisante; não se deixar afetar pelo sofrimento do analisante; como estabelecer um diagnóstico; como fazer o corte; como fazer pontuações, como escutar os chistes; enfim, como escutar o inconsciente.”

Todas elas instruções técnicas de direção do tratamento que orientam como um analista deve conduzir uma análise.19 O princípio da autonomia do psicanalista em conduzir o tratamento (sem obedecer a padronizações e enquadramentos fixos) não anula a existência de técnicas que lhe são transmitidas para a condução da terapêutica. Ernesto, membro da EBP, também explica os critérios para garantir a qualidade dos atendimentos dos psicanalistas a ela associados:

“A Escola é um dispositivo para sustentar que esse discurso [analítico] obedeça a uma certa ética. Não é qualquer discurso, tem um controle da qualidade mesmo, da qualidade da psicanálise, e isso é uma coisa muito importante […] se você faz parte de uma Escola é porque você foi avaliado. Avaliado como? Você fez uma prova? Não, você é avaliado subjetivamente. Essa que é a especificidade de uma escola de analistas, entendeu?! Tem um regimento, um controle, a Escola orienta: faça supervisão […], [na supervisão] o cara [supervisor] fala assim: ‘Olha, se você fizer assim, pode ser melhor’; ‘Tenta se posicionar de tal forma’. Você chega e fala: ‘Nossa, o analisante disse isso. E agora, o que que faço?’; ‘Olha, o cara é um neurótico obsessivo compulsivo; se ele é obsessivo, você tem que ir em direção do pai dele; examina o pai dele, vai o levando nessa direção’. O modelo de subjetivação indica que é o pai, quero dizer, posição paterna, pode ser um tio […] você vai entendendo a regra que rege todo esse dispositivo. Porque tem uma regra, sim, uma ética muito séria, e ela é complexa. Ela pode ser formalizada, não é puramente subjetiva.”

Pode-se perceber a autoridade do analista na direção do tratamento e a existência de uma contradição entre um modelo idealizado de terapêutica, em que o analista não sugestiona a interpretação que o analisante faz sobre si mesmo e seu sofrimento, e a sua prática, que se pauta no diagnóstico e obedece a enquadramentos determinados ou pontuações, mesmo que a intervenção do psicanalista seja mínima. Com isso, os interlocutores da pesquisa, ao se afirmarem na contramão da medicina científica, não questionam em que medida são herdeiros desta tradição. No cerne da contradição entre instrumental técnico racionalista e o ideal singularizado da lógica do inconsciente está uma tensão que os próprios psicanalistas produziram entre universal e singular.

Do singular ao universal e vice-versa

Com o advento da clínica, o médico assumiu a responsabilidade de comprovar suas técnicas terapêuticas no interior daquela, e a autoridade para demonstrar, através da narração, a eficácia de tais técnicas (Foucault 2011). Herdeiros dessa tradição, os psicanalistas produzem conhecimento e comprovam a eficácia terapêutica através de narrativas e descrições das sessões analíticas. Apesar de se afirmarem absolutamente diferentes de médicos e cientistas, utilizam muitos elementos herdados da clínica médica tradicional, como os chamados casos clínicos, modalidade em que o trabalho de um psicanalista é apresentado à comunidade e que permite visualizar como teoria e prática são manejadas na terapêutica.

Ao longo da etnografia, pude acompanhar cursos, congressos, jornadas, e tive contato frequente com a narração de casos clínicos, o que me permitiu atentar para o modo como esta prática constitui modalidade em que os trabalhos dos psicanalistas são apresentados como exposição da teoria e técnica manejadas na terapêutica.20 Pude observar que a orientação da leitura, tanto da teoria quanto dos fenômenos psíquicos que aparecem na clínica, obedece a determinações e criações de figuras em posição institucional de liderança, que estabelecem categorias nosográficas como a de psicose ordinária, criada por Jacques-Alain Miller para referir-se a novos modos de subjetivação na pós-modernidade.

A partir desta definição, o conceito de psicose ordinária passa a ser amplamente utilizado na produção de diagnósticos e na classificação dos fenômenos apresentados pelos analisantes. Os analistas membros da AMP começaram a produzir trabalhos com relatos de casos clínicos que demonstravam a incidência dessas “novas” afecções psíquicas em seus analisantes, inclusive refletindo sobre suas variações e os cuidados exigidos frente à dificuldade em distinguir tais psicoses de outras neuroses. Enfim, o aparato interpretativo dos sujeitos passou a seguir essa orientação clínica, que opera o deslocamento do “universal da classificação para o singular de cada caso” (Tironi 2010).

Em um encontro da Escola Brasileira de Psicanálise ocorrido em São Paulo, em 2010, acompanhei as diversas mesas de trabalho que versavam sobre a temática das psicoses ordinárias.21 As reflexões giravam em torno da dificuldade em diagnosticar o que chamavam de “novos modelos de subjetivação”. As apresentações tinham como título o nome que atribuem ao caso, ou ao analisante, e descreviam uma situação clínica, o desenrolar das sessões, as falas daquele, as ações do psicanalista e o estabelecimento do diagnóstico. Os casos versavam sobre tentativas de suicídio, transtornos alimentares, vício em drogas, alucinações, distúrbios sexuais - afecções consideradas, em grande parte dos casos, decorrentes do excesso, da falta e da qualidade do afeto dispensado pela mãe na infância (“relação mortífera da mãe com a criança”, como disse um dos elementos de uma mesa). Nas apresentações, eram descritas as técnicas de cada analista para a escuta do inconsciente através de cortes, enigmas, pontuações, interpretações - enfim, o modo como estabelecem o diagnóstico e dirigem a reflexão do analisante à narrativa e à imagem de si. Valorizava-se uma espécie de “efeito surpresa” articulado pelo analista, como se este causasse certa perplexidade no analisante ao fazê-lo apreender uma dimensão de si que até então desconhecia ou não queria admitir.

A classificação estabelecida pelas mesas de trabalho restringe o modo como o caso deve ser entendido e, com isso, a expertise do analista não é colocada em dúvida, e os efeitos de suas pontuações clínicas são comprovados na maneira como narra as sessões analíticas. Esse tipo de apresentação norteia o espectador a encontrar elementos na narração dos casos que os identifiquem à temática da mesa em que é apresentado. Com os casos clínicos, os psicanalistas não buscam a particularidade dentro de um quadro universal, mas o contrário: os elementos trabalhados devem tornar o caso em questão paradigmático, permitir a apreensão do universal dentro de um quadro singular.

Os psicanalistas colocam-se com autoridade em relação ao saber sobre os indivíduos, capazes de decifrar o que estes pensam e sentem, mas pautados em esquemas generalizantes e universalizantes, através da exemplificação de certas formulações genéricas no relato de um caso clínico específico. Como, por exemplo, o seguinte caso apresentado por um membro da EBP:

“S.T., 69 anos, solteiro, aposentado, procurou o IPQ-HC [Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas] em um estado depressivo grave dizendo que desde há quatro meses, mais intensamente, sentia tristeza, desânimo, um estado penoso de dor, perda de prazer e escutava vozes que o xingavam de bicha, o que o levava a pensar, com insistência, na ideia de se suicidar. Foi internado na enfermaria do IPQ, sua 4.ª internação no mesmo serviço. Apresentava-se com alguns adornos femininos, colar, anéis, unhas pintadas. Dizia que sempre se sentira, desde criança, uma mulher. Gostava de se vestir de menina, brincar de boneca e de brincadeiras femininas. Permaneceu em casa, afastado do convívio social, junto com seus pais que tinham enorme vergonha do seu comportamento. Evitava o contato social e era evitado ou discriminado pelo meio em que, raramente, tentava se inserir. Travestia-se em casa. Andava com roupas de baixo femininas e com alguns adornos. Mãe faleceu quando ele tinha 62 anos. Teve, na ocasião, um episódio depressivo grave. Durante três anos e meio visitou o cemitério diariamente e lustrava o túmulo da mãe. […] é um paciente que, antes de todo e qualquer diagnóstico, nos coloca, de imediato, diante das vicissitudes da sexuação. É um homem que afirma ser, intimamente, mulher ou que deseja, ardentemente, sê-lo. É um caso que desmente a afirmação freudiana ‘o destino é a anatomia’. O que se coloca, de imediato, é a questão da identidade sexual e a problemática da identificação sexual. Contra as evidências de seu corpo, ele afirma ser uma mulher. O sintoma transexual transparece de imediato, explicitamente, na fala e adorno do sujeito. Em psicanálise a presença de um dado sintoma não fornece, em si, indicação da estrutura clínica, nenhum sintoma assinala uma estrutura em si. A indecisão quanto ao próprio sexo, o sentimento de ser mulher no corpo de um homem, por ex., pode assumir um sentido muito diferente conforme o contexto. Formação imaginária pode ser derivada de posições estruturais diversas. A demanda de mudar de sexo, igualmente um sintoma, pode emanar de uma hipocondria, de uma histeria, de uma perversão, de uma psicose. ST mantém-se atado à mãe. Não há separação, corte, significação. Sem a significação (fálica), o sujeito é empurrado a ocupar o lugar de objeto do desejo insignificado da mãe, situação que se verifica em seu discurso e sua conduta. […] Fracasso da operação metafórica, não simbolização do nome do pai, não significação fálica, posição de objeto da mãe, estamos, inteiramente, no terreno da psicose lacaniana. […] De um ponto de vista psicanalítico podemos afirmar, pela 1.ª clínica, que ST estruturou-se psicoticamente, e pela 2.ª que ‘usou’ o sintoma transexual como suplência, como um dos nomes do pai, como um nó que permitiu amarrar de uma maneira precária os registros. A incidência da morte desestabilizou a montagem desencadeando os episódios melancólicos.” (Bogochvol 2014)

Mesmo quando partiam de concepções do tipo “corpo e sujeito não são separáveis como quer a medicina”, a corporalidade permanecia entendida como ficção resultante de um conjunto de representações psíquicas que o sujeito constrói, reelabora, significa e experimenta de acordo com sua vivência dos laços sociais. Com isso, o corpo é pensado como metáfora do psíquico, suas funções orgânicas seriam determinadas pelas elaborações subjetivas, estando o analista autorizado a decifrar seu funcionamento. As incidências patológicas físicas - uma úlcera, bronquite alérgica ou dor de cabeça, por exemplo - se tornam objetos de interpretação psicanalítica, como expressões de conflitos psíquicos. Essa “totalização” pretendida pela psicanálise (que recobre com seus aparatos epistemológicos corpo e alma do sujeito) é entendida como somatização, e, como coloca Cardoso (2003: 25), “longe de superar a chamada dicotomia corpo/mente […] a fortalece, porque, afinal, a unidade pretendida (que não é outra senão o indivíduo moderno) só pode ser construída sobre a base de uma ‘teoria do somático’”, que privilegia as emoções, o psíquico como origem hegemônica e dominante dos sofrimentos apresentados no corpo. Assim, se a medicina submete a subjetividade ao racionalismo pragmático biologizante e organicista, a psicanálise submete o corpo aos imponderáveis da mente, dos sentimentos, do inconsciente, de tal forma que o dualismo não é superado, mas radicalizado com a reversão dos termos, como se um fosse o avesso do outro. Com isso, a dicotomia “natureza e cultura” se desdobra em outra, “corpo e psíquico”, que se replicará em uma série composta por “objetividade e subjetividade”, “sociedade e indivíduo”, “razão e emoção”, “consciente e inconsciente”.

Nas práticas psi se pode identificar a autoridade do terapeuta/analista através da elaboração da “dimensão terapêutica do segredo”. Segundo Despret (2006), a revelação íntima de tudo o que se diz no interior do dispositivo clínico atua tanto na produção de uma verdade - que o analisante acredita ter ele mesmo elaborado como significação de seus sofrimentos - como protege o analista de questionamentos e dúvidas sobre sua competência profissional. Na lógica do sigilo profissional, o discurso dos analisantes transforma-se em autoria anônima no relato dos casos clínicos, e esse anonimato é justificado como modo de proteger os analisantes, não os próprios psicanalistas e sua prática. Mas o anonimato do analisante se contradiz com a autoria assumida pelo psicanalista ao narrar o caso, e aponta para uma clara assimetria no campo de produção de conhecimentos no interior da clínica.

Para evitar colocar em risco a assimetria existente entre o conhecimento do analista e o do analisante, e preservar a autoridade do saber do primeiro sobre os segredos e intimidades do segundo, na EBP e na EOL foi adotada a estratégia de restrição da publicação de casos clínicos nos periódicos institucionais. Célia, membro da EBP, explicou:

“Você imagina o valor ético que tem apresentar um caso clínico pra tanta gente, tem inclusive a questão do sigilo. Atualmente, os casos clínicos praticamente não são publicados mais nas revistas […] toma-se mais cuidado com a apresentação de caso clínico para público grande, por conta de que a pessoa pode ser reconhecida.” [Entrevista gravada]

Também afirmou que já houve a situação de uma analisante ter reclamado por que sua analista publicara determinado caso clínico em uma revista da Escola: ofendida, ela dizia não ter autorizado a publicação de sua análise pessoal. Consuelo, membro da EOL, também apontou essa questão ética no contexto da Escola argentina: para que esse “recurso essencial de transmissão” do conhecimento psicanalítico não seja abolido, o analista deve ter certeza de que o caso que narra é de alguém “totalmente de fora e alheio à Escola e à profissão de analista”, e as apresentações ficam restritas ao formato oral em encontros, congressos e jornadas.

O incômodo que o relato de casos clínicos traz à comunidade analítica de Escola denota o mal-estar que esse tipo de exposição, objetificação e generalização traz a qualquer analisante. Como uma aluna do curso de formação me contou: “Certa vez fui assistir meu analista apresentar um trabalho. Nunca mais faço isso, parecia que ele estava falando da minha própria análise. Me identificava com tudo que ele apontava, foi horrível [risos]”. Perguntei se caso o analista estivesse falando de sua análise, o que ela faria: “Ia depender de como ele estava falando de mim: se fosse de um jeito legal, beleza; senão, nunca mais conseguiria voltar [à análise]”. Apesar de o analisante ser levado a crer que o que diz ao analista é de extrema confidencialidade, e que quem detém o saber na terapêutica é ele mesmo, quando se depara com suas narrativas sendo interpretadas de maneira universalista e objetivada, o caráter normativo da doutrina psicanalítica, pouco admitido por seus praticantes, se revela e causa inquietações.

Mas isso não é tudo. Se os casos clínicos constituem canal de transmissão da teoria e da prática clínica, a objetificação do sujeito que lhe serve de apanágio não se limita a esse tipo de apresentação. Quase como um resquício intransponível da psiquiatria de que são herdeiros, os lacanianos da AMP fazem uso de um recurso de ensino e pesquisa bastante característicos desse campo dos saberes médicos: a apresentação de pacientes.

A apresentação de pacientes

A primeira vez que ouvi sobre a prática da apresentação de pacientes foi na Escola argentina, com Consuelo: “Lacan retoma esse método clássico da medicina e da psiquiatria, mas o faz à sua maneira”, como técnica de ensino e transmissão do modus operandis de sua psicanálise. A apresentação de pacientes fazia parte, inclusive, do currículo do curso regular de formação do Instituto do Campo Freudiano - ICF ligado à EOL.22 Interessada no assunto, descobri que a EBP também, em várias de suas sedes e ICF, fazia uso dessa prática no âmbito das atividades de formação. Na EBP-SP, por exemplo, através do vínculo estabelecido entre o Clin-a e a Clínica Vera Cruz, centro de atenção em saúde mental que oferece atendimento diurno e internação.23 Em 2013, solicitei a participação em uma dessas apresentações em conversa que tive com uma das coordenadoras da atividade, que aqui chamarei de Denise.

Antes de seguir com a descrição, gostaria de salientar um ponto importante: a atividade carrega, em sua designação, o termo paciente em vez de analisante, referente ao jargão médico para designar a pessoa que recebe cuidado e tratamento. Isso é interessante porque, para além de mera designação formal, o termo analisante, instituído por Lacan, tem conotação política dentro da abordagem lacaniana, já que propõe identificar uma terapêutica que visa dotar de autonomia o sujeito no cuidado de si, em contraposição à medicina, que o submete ao saber autoritário do médico. Com isso, o uso do termo paciente, aqui, supõe submissão do sujeito em tratamento psiquiátrico, passível de “apresentação”, e contradiz a suspensão da “autoridade médica” que deveria orientar a prática lacaniana. Mais uma vez, a assimetria entre o psicanalista e aquele a quem ele presta atendimento está posta de antemão. Além disso, tal fato diz muito sobre o estatuto do atendimento psiquiátrico institucional na percepção dos psicanalistas. Se facilmente conseguem dotar de autonomia um sujeito no interior da clínica privada e particular, no âmbito das instituições psiquiátricas isso é relativizado. Como paciente, o sujeito deve ser tutelado pela autoridade médica, submetido às suas decisões no controle de seu corpo e mente, e ainda servir de ilustração para o ensino de psicanalistas iniciantes.

Denise explicou que na apresentação um paciente é escolhido pela equipe do hospital e a ele é feito o convite para participar da atividade. Aqui está, segundo a psicanalista, o primeiro diferencial da prática proposta pela orientação lacaniana: o paciente deve consentir em participar, e na psiquiatria clássica geralmente não havia convite ou concessão. A escolha é sempre por pacientes psicóticos, desde que não estejam muito “estridentes e comprometidos, para que possam sustentar o dispositivo”. Os participantes, os que assistem às apresentações, ocupam uma sala do hospital e recebem rápidas informações sobre o paciente, então este é convidado a entrar e a sentar-se de frente para o psicanalista, que é quem irá realizar o que chamam de entrevista. Ao paciente é dada a liberdade de interromper a apresentação, e inclusivamente sair da sala, quando quiser. O psicanalista, membro da Escola bastante experiente tanto em clínica quanto em instituições psiquiátricas - sublinhou Denise -, vai conduzindo o paciente a falar por meio de questões e “pontuações sutis”, para que o “paciente possa sustentar essas colocações”. Os espectadores permanecem em silêncio até o final da apresentação, quando o paciente deixa a sala e tem início o debate sobre o caso, “no qual possa ser esclarecido um diagnóstico”, orientando um tratamento cuja dificuldade justificou o encaminhamento do paciente a tal apresentação. Os espectadores formam, segundo ela, “uma espécie de opinião pública com relação ao que se passa entre o paciente e aquele que o entrevista”.

Denise contou que, na maioria das vezes, a apresentação acontece de forma “bem tranquila”, mas “tudo pode acontecer, não se pode garantir nada”, e deu o exemplo do que ocorrera na última apresentação, em que a entrevista fora conduzida por um membro da Escola francesa que estava no Brasil a convite da EBP para uma série de seminários. Por se tratar de uma situação atípica, já que era necessário um intérprete - e, soube depois, por outras pessoas, que o membro da Escola francesa tinha uma fisionomia nada comum para os parâmetros brasileiros, o que pode ter contribuído para o surto -, o “paciente começou a ficar muito paranoico”. A apresentação foi suspensa e o público orientado a sair da sala, para que o “surto fosse controlado”. A atividade de apresentação já ocorria havia dois anos, desde que a instituição estabeleceu o convênio com o Vera Cruz - e o convênio só foi possível, disse Denise, porque o hospital tem a “particularidade de ter psiquiatras e equipe psicanalizados”, o que resultou na abertura para a realização do dispositivo. Por mais paradoxal que possa parecer, Denise salientou a importância da apresentação para o hospital, já que é um modo de inserção da psicanálise e de comprovação de sua eficiência para toda a equipe de saúde mental; e que a equipe ficava surpreendida ao constatar como “alguns pacientes falam na entrevista coisas que nunca haviam falado antes”.

Apesar da conversa e de minha solicitação para participar da atividade, uma vez que já estava fazendo a pesquisa de campo na instituição há dois anos, recebi como resposta que os demais coordenadores vetaram minha presença. Por que não me deixaram participar? Qual o interesse em fechar as portas para o diálogo com outros saberes no que tange a esse dispositivo, considerado essencial para a transmissão da psicanálise e a formação de psicanalistas? Estes questionamentos coadunam-se com uma série de trabalhos que abordam direta ou indiretamente o estatuto do saber psicanalítico e das instituições de psicanálise (Leze 2005, 2008, 2010; Nathan 2007; Stengers 2007). Grande parte das críticas que os psicanalistas recebem dos saberes externos ao seu campo de atuação é decorrente dessa falta de abertura à interlocução, que não evita “mal-entendidos” em torno de suas práticas e dispositivos, ao contrário, favorece a desconfiança. De fato, não se pode falar do que não se sabe, mas pode-se problematizar os motivos pelos quais não se deixou conhecer.

De acordo com Cristiana Ferreira (2007: 296), aluna de instituto de formação vinculado à EBP-MG, “As apresentações têm se tornado frequentes, não apenas enquanto prática realizada em instituições de tratamento, mas também nos encontros e conversações” - e a apresentação funcionaria de modo a “introduzir o particular do sujeito no universal da instituição” (2007: 307). Para Vera Lopes Besset e Marcelo Veras (2007), membros da EBP, o potencial de ensino do dispositivo está na implicação de cada um dos presentes através da observação e escuta. Isso quer dizer que todos na plateia devem “buscar no próprio sujeito, em suas estratégias e sintomas, a chave para definir o diagnóstico do paciente” (2007: 136). Assim, é como se com esta prática os psicanalistas buscassem provar a realidade da patologia e a eficácia da terapêutica.

O primeiro indício de que se tem registro do uso da apresentação de pacientes como modo de demonstração clínica das enfermidades mentais é o de Esquirol, em Salpêtrière, em 1817. No fim do século XIX, as apresentações de pacientes realizadas por Charcot - eternizadas no quadro de André Brouillet, Une Leçon Clinique à la Salpêtrière, de 1887 - tornaram-se grandes espetáculos. O objetivo pretendido por Charcot confundia-se com a fabricação dos sintomas histéricos: seu “paciente” era um objeto, cuja subjetividade não estava em jogo e cuja fala era incluída apenas para a demonstração de um saber prévio (Quinet 2011). Assim, no momento em que se suscitava o surto, a psicopatologia tornava-se submissa à verdade do saber psiquiátrico. Mais do que recurso didático próprio da psiquiatria, nesse contexto essa prática era um importante instrumento clínico no auxílio dos tratamentos, já que a loucura, por não ser enfermidade fisiológica, só podia ser considerada como objeto de investigação mediante experimentações, ou seja, suscitando surtos nos pacientes (Foucault 2004).

A apresentação de pacientes como modalidade de transmissão da psicanálise foi retomada por Lacan no âmbito das atividades de ensino no Departamento de Psicanálise da Universidade Paris VIII, em 1976, com o auxílio de Jacques-Alain Miller, sendo as apresentações realizadas no Hospital Sainte-Anne. Com a criação dos Institutos do Campo Freudiano, em 1979, foi aberto espaço diferente da universidade para a difusão da psicanálise lacaniana, e é nesse espaço exclusivo e privado que a prática ganhou maior relevância, já que protegida das críticas que lhe eram dirigidas pelo movimento de reforma psiquiátrica, principalmente no pós-68. A intenção de Lacan - que expôs muitas das reflexões retiradas das apresentações em seu Seminário 3 - “As Psicoses” (1985) - era realizar uma passagem entre o dar-se a ver, que a psiquiatria impunha aos pacientes, para um fazer-se escutar, que a psicanálise possibilitaria aos pacientes.

Segundo a descrição dos interlocutores, o psicanalista precisa da apresentação de pacientes como forma de ensino, pesquisa e averiguação:

“Nada de roteiro de entrevista, nada de objetivação da fala em sintomas. Não para transmitir quadros já acabados, mas para esboçar um caso e localizar no caso o ponto de real, de estranho, que dependendo de sua articulação com o social será pensado por nós como psicose, etc. Assim temos a apresentação de pacientes, não só como ensino, ou orientação, mas como lugar de pesquisa e investigação.” (Vieira 2018).

O interrogatório (entrevista, nas palavras dos interlocutores), é uma maneira de levar o paciente a (re)construir sua história, contar suas lembranças da infância, de sua família e, com isso, (re)constituir de modo linear acontecimentos que culminaram com seu estado atual, ou seja, é uma forma de sujeitar o paciente a atribuir a si mesmo a identidade de loucura que lhe é outorgada.

Como instrumento do saber/poder psiquiátrico, as apresentações de pacientes constroem as bases que conferem realidade científica à loucura (Foucault 2006). A presença do público confere maior autoridade às, e maior confiança nas palavras e ações do médico; este, ao interrogar o paciente, mostra o seu conhecimento sobre os caminhos tomados pelo tratamento, e a forma como lida com a “doença” produz uma verdade que pode ser observada por todos.

Assim, para Foucault, o humanismo que reveste o nascimento do saber psiquiátrico esconde um cruel deslocamento da violência para a sujeição. Ao serem libertados de suas algemas, os loucos contraíram uma dívida com o saber psiquiátrico, e pagaram com a submissão a ele. A relação de troca estabelecida entre médico e paciente, de acordo com o autor, ocorreu nos seguintes termos: se o segundo fornecer a confissão de sua loucura, o primeiro lhe entrega o seu tratamento. O problema moral da apresentação de pacientes está na autoridade com que médicos transformam em objeto de observação um sujeito que vem ao hospital em busca de assistência: “Olhar para saber, mostrar para ensinar não é violência muda, tanto mais abusiva que se cala, sobre um corpo de sofrimento que pede para ser minimizado e não manifestado? Pode a dor ser espetáculo?”, questiona Foucault (2011: 95).

Com isso, se a psiquiatria o submete à observação do médico, a psicanálise lacaniana faz algo semelhante por meio da escuta do psicanalista. O que quero dizer é que a experiência sensível da qual se faz uso (ver, escutar) não altera a lógica dessa prática: a exposição de um paciente, tornado objeto de estudo e apreciação, assim como a finalidade de dar uma aula pública às suas custas. A “função” por detrás desse meio de transmissão de uma técnica terapêutica aproxima a prática lacaniana ao modelo biomédico. A distinção em relação à autoridade não fica clara e expressa a contradição interna presente na proposta lacaniana, uma vez que busca estabilizar controvérsias, ou ganhar disputas no campo da saúde mental, fornecendo provas da eficácia da terapêutica psicanalítica nos moldes exigidos pela racionalidade médica.

Considerações finais

A controvérsia aqui apresentada refere-se a uma dicotomia produzida entre certos saberes e práticas biomédicas, que marcam sua autoridade a partir do imperativo da objetividade e a psicanálise lacaniana, que constitui a sua a partir do imperativo da subjetividade. O que se coloca em disputa é a posse da “verdade” pelos sujeitos envolvidos nesse contexto. Tanto a objetividade quanto a subjetividade constituem argumentos de construção de autoridade e racionalidade. Psiquiatria biomédica e psicanálise apresentam-se como simétricas inversas no campo dos saberes psi. As controvérsias no campo da saúde mental parecem estar mais na disputa sobre o domínio e a hegemonia do tratamento do que sobre a estrutura da significação dos transtornos psíquicos.

Os lacanianos de Escola colocavam em prática direcionamentos do tratamento que não distinguem a psicanálise lacaniana de outras propostas clínicas/terapêuticas: ou seja, apesar de advertidos da generalização e da autoridade unilateral presente na relação médico/paciente, não propõem uma forma de atendimento clínico que fuja totalmente dessa estrutura de cuidado. É no deslocamento do universal para o singular que a Escola de psicanálise produz conhecimento e formas de subjetivação. Desse modo, observa-se uma clara tensão entre a noção de singularidade do saber psicanalítico, referente à “singularidade de cada um em relação ao seu delírio”, e a universalização pragmática referente à tecnologia de cuidado que conduz o processo diagnóstico e terapêutico.

As intrincadas e complexas relações entre subjetividade, medicina científica, indústria farmacêutica, produção de conhecimento e tecnologias de cuidado dentro do campo dos saberes e práticas psi me permitem entender como a existência humana é modulada por formas de engajamento que se configuram de acordo com o sistema de práticas em que está envolvida (Ingold 2000). Se a psiquiatria pautada no modelo biomédico segue um ideal de saúde, normalidade e bem-estar, a partir do qual a patologização da existência dos sujeitos se afirma, a psicanálise se estrutura a partir do paradigma da loucura como condição portadora de verdade e sentido. Assim, em vez da “ultrapassagem” da distinção entre normal e patológico, considero mais coerente pensar em uma “transformação” na significação dos termos operados pelo saber psicanalítico. Sua especificidade não estaria em uma suposta inversão do olhar médico para a escuta do psicanalista, ou na suspensão da fronteira entre o normal e o patológico, mas no modo como se interpreta e aloca o patológico como estado de normalidade. A prática clínica da psicanálise está ancorada na hipótese do desconhecimento do sujeito em relação a si mesmo e a seus desejos. A análise de si é interminável, o trabalho de elucidação do eu e de transformação pessoal que a terapêutica instaura nunca se dá por terminado, uma vez que não há resolução, eliminação ou cura do conflito psíquico: o que se tem é o acesso a uma expertise para gerenciamento do efeito da loucura na relação consigo mesmo e com os outros.

Nesse sentido, apesar de afirmarem-se diferentes, os valores normativos assumidos seja pela psicanálise, seja pela psiquiatria pautada no modelo biomédico, fazem parte da produção de sujeitos e formas de subjetivação por saberes e práticas psi que se presta a uma “ressonância semântica” dos conceitos (Mantilla 2017). As controvérsias presentes no campo da saúde mental vão além do estatuto de verdade e legitimidade arrogado por cada saber e técnica terapêutica: ao invés de se estabelecer uma postura questionadora e transformadora, o conflito se dá pela autoridade do saber/poder de instruir modelos universalistas e normatizadores de enquadramento terapêutico dos transtornos mentais.

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1Maria Carolina de Araujo Antonio é doutora em Antropologia Social pela Universidade Federal de São Carlos - UFSCar. Professora de Antropologia no Departamento de Ciências Sociais da Universidade Estadual de Londrina - UEL.

2“Saberes e práticas psi” se refere a discursos e terapêuticas produzidos na cultura ocidental a partir de meados do século XVII como um conjunto de representações e concepções que podem ser chamadas de psicológicas na medida em que se referem à determinação dos modos de existência, ao funcionamento e às perturbações da psyche humana (Duarte 1997). Tais saberes e práticas foram considerados relevantes campos de observação para estudos acerca da construção social da pessoa por conceberem o indivíduo como submetido a necessidades simbólicas específicas da cultura em que se insere e porque conceitualizam o que são os fenômenos característicos da interioridade moral da pessoa e do psiquismo humano no campo dos saberes ocidentais (Figueira 1981, 1985, 1988; Duarte 1997; Russo 1997).

3O manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais é dirigido a profissionais da área de saúde mental, o qual lista diferentes categorias de desordens mentais e critérios para diagnosticá-las de acordo com a Associação Americana de Psiquiatria. Existem cinco revisões para o DSM desde sua primeira publicação, em 1952. A maior foi a DSM-IV, publicada em 1994, que teve uma “revisão textual” em 2000. O DSM-5 (anteriormente conhecido como DSM-V) foi publicado em 18 de maio de 2014 e é a versão atual do manual.

4O termo subjetivação está atrelado, aqui, a uma conceituação desenvolvida por Foucault (1998) para estabelecer um entendimento das configurações políticas/sociais presentes na produção de sujeitos que se manifestam em diferentes esferas, dos saberes às mais variadas práticas sociais, a partir de dispositivos normativos e regulatórios pautados em uma “estética da existência”. Baseio-me, também, no modo como Guattari estabelece a distinção entre os conceitos de “indivíduo” e “subjetividade”. O primeiro seria modelado, padronizado, serializado pelo sistema capitalista; a segunda não seria passível de totalização ou centralização no indivíduo: em constante mutação, está em circulação, é uma entidade social composta por uma série de “agenciamentos” de enunciação (linguagem, desejos, experiências) (Guattari 2010: 42).

5Segundo Duarte, criador do conceito, “físico-moral” remete “às condições, situações ou eventos de vida considerados irregulares ou anormais pelos sujeitos sociais e que envolvam ou afetem não apenas sua mais imediata corporalidade, mas também sua vida moral, seus sentimentos e sua autorrepresentação” (2003: 177).

6Entre outros, Figueira (1980, 1981, 1988), Russo (1993), Carrara (1996), Venâncio (1998), Cardoso (1999), Giumbelli (2000), Bonet (2003), Azize (2010), Carvalho (2010) e Viotti (2011).

7A AMP - Association Mondiale de Psychanalyse, foi fundada em Paris, em 1992, pelo genro de Jacques Lacan, Jacques-Alain Miller. Atualmente agrega oito escolas espalhadas pelo mundo e integra mais de 1900 membros.

8A etnografia foi realizada entre 2010-2014 para minha pesquisa de doutorado. Esta objetivou, entre outras coisas, apreender aspectos técnicos, políticos e subjetivos que atravessam a produção do conhecimento e a prática terapêutica da psicanálise, sobretudo a construção de nosografias, sintomas e sofrimentos incorporados tanto pelos psicanalistas, quanto pelos analisantes. Buscou-se observar como a organização dessas instituições de psicanálise determina modos de produção de subjetividades que resultam de técnicas específicas de produção de conhecimento e “transmissão” da psicanálise (Antonio 2015).

9Todas as expressões, termos, frases e citações que aparecem no texto em itálico são expressões e/ou enunciações de meus interlocutores recolhidas no trabalho etnográfico.

10A psicanálise se faz presente nos cursos de graduação em psicologia e medicina como disciplina constituinte do campo psicológico e psiquiátrico. Diante disso, as instituições psicanalíticas não consideram essa forma de ensino como formação em psicanálise. Apenas na França, na Universidade de Vincennes-Paris VIII, existe, desde 1968, um departamento de psicanálise voltado exclusivamente para o ensino da teoria e da prática psicanalíticas como uma graduação independente dos campos médico e psicológico.

11Com referência ao contexto brasileiro, o único documento que apresenta caráter oficial normativo sobre a profissão é o Aviso Ministerial n.º 257, assinado em 1957 pelo então ministro da Saúde Maurício de Medeiros, por solicitação de Adelheid Koch, na época presidente da SBPSP. Nele, acolhia-se o exercício de psicanalistas leigos desde que fossem formados e credenciados pela IPA. Entretanto, além de esse documento não ter força de regulamentação profissional, a partir da década de 1960 o campo psicanalítico sofreu uma série de mudanças, com o surgimento de diversas outras instituições não filiadas à IPA, caso da EBP, e a psicanálise continuou sob regime de exceção.

12“Lacanianos de Escola” é o modo como designo os interlocutores da pesquisa a fim de respeitar e garantir a distinção destes atores não só no campo lacaniano, como no psicanalítico em geral.

13Exemplos do embate entre psiquiatras e psicanalistas encontram-se nas publicações Le Livre Noir de la Psychanalyse, de 2005, organizada por Meyer (2011), e La Guerre des Psys, de 2006, organizada por Nathan (2006), que reúnem uma série de psiquiatras, psicólogos comportamentais, filósofos com artigos veementes contra uma suposta hegemonia da psicanálise da França. Além de uma série de artigos publicados em revistas e jornais de grande circulação que anunciam o “fim da psicanálise”.

14Fundada por Freud, em 1910, para congregar sociedades psicanalíticas e normatizar a formação de psicanalistas. Atualmente sediada em Londres, coordena movimentos psicanalíticos em todo o mundo e se considera a instituição ortodoxa de formação de psicanalistas.

15Noção desenvolvida por Laplanche em 1974 na universidade de Paris VII, segundo a qual a psicanálise deve assumir um caráter pluridisciplinar, não deve ser um centro de formação universitária, mas ser exterior a outros domínios, outros saberes (Laplanche 1980).

16O termo “analisante” surgiu em uma conferência que Lacan, a convite da International Psychoanalytical Association (IPA), fez em Genebra, em 1974, com o título Le Symptôme, na qual teceu críticas severas a essa instituição, uma delas referente ao termo “analisando”, que contrapôs a “analisante”. Em sua concepção, analisando remete a passividade, a alguém que recebe a ação do analista, enquanto analisante remete a um sujeito ativo, que dirige o trabalho de análise: “Analysand évoque plutôt le devant-être-analysé, et ce n’est pas du tout ce que je voulais dire. Ce que je voulais dire, c’était que dans l’analyse, c’est la personne qui vient vraiment former une demande d’analyse, qui travaille” (Lacan 1985: 2). Assim, o termo analisante serve para “décharger l’analyste d’être le responsable, dans l’occasion, de l’analyse” (1985: 2). No entanto, chamo a atenção para o fato de que o termo “paciente” também aparece como categoria utilizada pelos interlocutores. O uso do vocábulo do meio médico explicita uma das contradições presentes na retórica da distinção de sua prática clínica em relação à médica.

17“Loin de pouvoir se réduire à un protocole technique, l’expérience de la psychanalyse n’a qu’une régularité: celle de l’originalité du scénario par lequel se manifeste la singularité subjective. La psychanalyse n’est donc pas une technique mais un discours qui encourage chacun à produire sa singularité, son exception. […] La psychanalyse ne peut déterminer sa visée et sa fin en termes d’adaptation de la singularité du sujet à des normes, des règles, des déterminations standard de la réalité.”

18Como forma de garantir o anonimato de meus interlocutores, sua integridade profissional e sua relação tanto no âmbito institucional como fora dele, todos os nomes que aparecem no texto são fictícios.

19Segundo a orientação lacaniana, a linguagem do inconsciente é formada por uma variedade de significantes organizados em cadeia, os quais, em virtude das leis de combinação e substituição, vão elaborando um texto fragmentado e descontínuo, cujo sentido é apreendido em sua dimensão sincrônica. O fluxo das palavras do analisante, segundo disseram os psicanalistas, aparece como um texto sem pontuação, ilegível, de difícil compreensão, e só o analista tem o poder e a capacidade de escutar esse “texto” e fazer os devidos questionamentos e comentários por meio das interrupções, chamados por eles de pontuações. O corte na sessão, que seria seu encerramento indicado pelo analista, pode se dar de várias formas - como pontuação de determinado assunto, como enigmatização, como silêncio, com a repetição do que a pessoa disse, frisando algo que foi falado -, mas preferencialmente é feito como interrupção com o intuito de chamar a atenção do analisante para um conteúdo do inconsciente revelado (Antonio 2015).

20Freud pautou-se substancialmente no relato de seus casos clínicos para difundir o método terapêutico psicanalítico. Hoje, tais relatos são considerados clássicos, indispensáveis a qualquer estudante de psicanálise ou mesmo de psicologia, psiquiatria e medicina: “Homem dos lobos”, “Homem dos ratos”, “Anna O.”, “Caso Dora”, entre outros. Com forte teor literário, esses textos constituem a espinha dorsal da teoria freudiana, já que, através deles, Freud demonstra detalhadamente a técnica da terapêutica, do diagnóstico ao tratamento, definindo a “nosografia psicanalítica”: histeria, neurose obsessiva, perversão, psicose, melancolia, narcisismo, entre outros. Lacan nunca utilizou seus próprios casos clínicos, seja nos “Escritos”, seja nos “Seminários”, limitou-se a comentar detalhadamente os casos freudianos para ilustrar sua própria (re)leitura da psicanálise - e remetia-se constantemente a personagens literárias de Willian Shakespeare, Marguerite Duras, James Joyce, além das referências a filmes e pinturas, para ilustrar como tais manifestações artísticas, mesmo não podendo servir como casos clínicos que exemplificam a teoria psicanalítica, contribuíam para sua construção.

21Os casos clínicos são apresentados nos eventos da Escola nas chamadas mesas simultâneas, que possuem um tema sobre o qual os apresentadores deverão discorrer através de suas experiências clínicas. Os nomes das mesas são, por exemplo: “O psicanalista diante da psicose hoje”; “Pai - versão e perversão”, “a fluidez dos semblantes no século XXI”.

22Cada Escola vinculada à AMP possui um Instituto do Campo Freudiano - ICF a ela vinculado, que seriam os institutos responsáveis pelos cursos de formação voltados ao ensino da psicanálise de orientação lacano-milleriana.

23O Centro Lacaniano de Investigação da Ansiedade (Clin-a) é uma instituição associada ao Instituto do Campo Freudiano vinculada à EBP-SP e dedica-se à investigação e ao ensino da orientação lacaniana.

Recebido: 25 de Agosto de 2018; Aceito: 13 de Outubro de 2020

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