Patchwork: o artesanato enquanto manta de retalhos
Jean-Yves Durand
Os contributos deste dossiê resultam de painéis em conferências da European Association of Social Anthropologists (Antonella Camarda e Jean-Yves Durand, “Which craft? Politics and aesthetics of handicraft in post-industrial contexts”, Milão, 2016) e da Associação Portuguesa de Antropologia (Eduarda Rovisco e Vera Alves, “Arte popular, artesanato, souvenirs: materializações do passado, imaginações do futuro”, Lisboa, 2019).1 Ilustram a variedade de temas, pontos de vista e questionamentos subjacentes a um campo que abrange uma ampla diversidade de contextos, modos de produção e de uso, enquadramentos legais, técnicas, produtos, registos estéticos, regimes de consumo e de valorização. A mesma heterogeneidade é assumida por esta introdução coletiva em forma de patchwork, uma manta de retalhos à imagem do tema que aborda.
De facto, a objetivação do que é o artesanato parece sempre elusiva. Permanece frequente a invocação de uma diferença essencial com a arte, distinção herdada da divergência entre artes maiores e menores, associadas respetivamente mais à inventividade ou à reprodução. A instituição das artes decorativas no século XIX sedimentou esta dicotomia e, também, evidenciou os seus limites, pulverizados entretanto pela arte contemporânea. Observa-se hoje a permanência da noção de uma inevitável “utensilidade” do objeto artesanal: deveria sempre satisfazer necessidades básicas da vida quotidiana - o que não o impede de poder resultar de uma elaboração notável. Assim, há quem considere que uma “função prática física” faz com que um objeto seja artesanal e não artístico, mesmo sendo possível distinguir entre artesanato utilitário e o que poderia ser designado por fine craft. Este “belo artesanato” (por analogia com “belas artes”) incluiria objetos concebidos para serem “especiais” e “irem esteticamente muito além do que exige a simples função utilitária” (o que leva a propor também um fine design: Risatti 2007: 18, 217, 247).
Mas as funções técnicas da quase totalidade dos objetos artesanais são hoje asseguradas com maior eficácia pelos seus avatares industriais produzidos em série, mais baratos e de substituição fácil. É, aliás, frequente as suas versões contemporâneas serem desprovidas das capacidades utilitárias que eram a razão de ser dos seus modelos, aspeto patente na questão da “autenticidade” dos souvenirs e das tourist arts. Passando de uma economia sobretudo doméstica para a esfera globalizada das trocas mercantis, os artefactos artesanais são agora procurados antes de mais por razões estéticas, identitárias ou de distinção, o que os aproxima do universo do luxo.
Incrementada pelos custos de uma produção manual de alta especialização, esta tendência do artesanato em ser cada vez mais supérfluo parece dar razão a Voltaire quando escreveu: “Le superflu, chose tant nécessaire”. De facto, a dimensão “necessária” da produção manual torna-se sensível no prazer que diz ter o público urbanista envolvido em cursos de bordados ou olaria. E sustenta a sobrevivência de um tipo de atividade produtiva cujo eclipse se anuncia há dois séculos mas que conhece agora um notável impulso comercial (Luckman 2015), visível na expansão do site Etsy.com. Alicerçada no anseio por produtos individualizados, esta evolução traduz também a vontade de experimentar novas modalidades de produção e de distribuição.
É que desde que o artesanato foi identificado e valorizado enquanto tal, uma das suas grandes funções sociais tem sido ser um “antídoto à modernidade” (Adamson 2013: xv). E o movimento arts and crafts, corolário do ideário socialista do século XIX, ou a “contracultura” dos anos 60 e 70 do século XX e os seus prolongamentos atuais veem nele também um elemento de crítica do “sistema” (Marchand 2017: 5). O presente renovado interesse social pelo artesanato vai além da patrimonialização: participa da revalorização do que se apresenta como slow (começando pela lenta transmissão e incorporação dos saberes) e local. Esta evolução não é isenta de tensões entre nostalgia passadista e vontade inovadora, entre essencialismos conservadores e críticas sociais criativas, como as inesperadas reapropriações feministas dos trabalhos de agulhas.
Parece preferível, portanto, optar por uma visão processual e contextual: considerar o artesanato menos como um “conjunto fixo de coisas - cerâmicas em vez de quadros -” e mais como “uma abordagem, uma atitude ou um hábito de acção”, porque “o artesanato só existe em movimento” (Adamson 2007: 3-4). Da mesma maneira, uma recente tentativa de renovar a sua abordagem antropológica recusa qualquer tentativa de o “definir”, preferindo vê-lo enquanto “discurso e praxis” (Wilkinson-Weber e DeNicola 2016: 1-2). Delimitar o que é artesanato em virtude de uma intenção criativa (Risatti 2007: 247) seria descurar o significado do próprio ato e das condições da sua realização. Importa igualmente não secundarizar a receção dos objetos e as possíveis grandes variações contextuais da sua apreciação.
Por isso, e além da análise dos processos da sua produção e reprodução e da identificação das suas propriedades materiais, técnicas e estéticas, importa observar mais de perto as novas modalidades de uso e de consumo do artesanato. Quem dá importância à sua certificação? Quem, porquê e como compra e usa pacotilha turística de produção deslocalizada, urban craft de produção local mas hibridando referências culturais heteróclitas, peças de inspiração desconcertante e de execução mais ou menos hábil propostas em prolíferas “feiras de artesanato”, marcenaria do mais alto rigor técnico, impressões 3D, roupa de estilista inspirada em bordados tradicionais?… Do ponto de vista da história da arte ou do legislador, nem todos estes exemplos heterogéneos seriam tidos por artesanais. Todavia, é cada vez mais assim que são qualificados na sua vida social, em boa parte por razões estratégicas de reconhecimento. Sendo esta última preocupação um eixo essencial das dinâmicas sociais e culturais contemporâneas, entendê-las passará em parte pelo destecer da manta de retalhos do artesanato.
Craft, art, and industrial design: critical positions
Antonella Camarda
As an art historian among ethnographers, my critical position in the present issue aims to acknowledge the relationship between craft, art, and industrial design. Craft studies, encompassing both history and theory, became an institutionalized discipline over the past fifty years. However, the discourse on craft lingers in an ambiguous space between two older academic fields: social anthropology and art history, witnessing the elusive nature of crafts and hinting at the persistence of a mindset, which might be unable to cope with the contemporary cultural hybridization. Thinking about craft is also, necessarily, thinking about class, gender, and race.
Craft in the contemporary, post-industrial capitalist society can only exist within a theoretical framework in which the handmade object functions in ways that go beyond its original use-value. As suggested by Glenn Adamson (2013: xiii), craft is not to be understood “as an ever-present aspect of human behavior increasingly threatened by technological advances”, but instead a modern invention, which emerged at the time of the industrial revolution “as the industry’s opposite number, or ‘other’ ”. Acknowledging the mutual relationship between industry and craft allows for a more accurate consideration of the continuous exchanges, the role of handwork in industrial mass production, and the latter’s influence in the surviving crafting enterprises. On the other side, it makes us more aware of the bifurcation of human production: “what had been an undifferentiated world of making, in which artisans enjoyed relatively high status within a broader continuum of professional trades, was carved into two, with craftspeople usually relegated to a position of inferiority”.
And yet another kind of bifurcation is relevant here, harking back to the 15thcentury when societal changes led to value painting according to the “hand of the master” instead of the quality of the materials, thus dividing intellectual, artistic creation from studio works (Baxandall 1972). This turn incepted a series of elitist bias which led to consider craft less valuable than art, later enforced by Descartes’ dualism between matter and spirit (Markowitz 1994: 55-70).
With modernism and until the very recent past, the boundaries of high art were defined by an institutional system theoretically vague (as Arthur Danto would put it in 1964, “an atmosphere of artistic theory, a knowledge of the history of art: an artworld”) and yet exact in discerning art from non-art. However, these boundaries are crumbling under the pressure of decolonization, democratization, and the battle against gender and race inequality.
The cultural field is becoming more and more diverse, including practices and people previously left behind. The revising of the art-historical canon, following decades of feminist critique, is now happening. This phenomenon, paired with a solid return to materiality and the interest for the object - paradoxically boosted by the Covid-related digital transformation -, makes craft surprisingly relevant today. It also makes some of the usual criteria to separate it from art (aesthetic values, usability, provenance, and so on) obsolete.
Parker and Pollock (1981: 50-81) highlighted the relationship between the devaluation of craft and the prominent role women had historically played in its production. Even now, as noted by Lees-Maffei and Sandino (2004: 212), “the patriarchal nature of hierarchies of visual practice […] remains to be thoroughly effaced”. Furthermore, as I tried to demonstrate in my essay, there is an internal divide between male and female production within the craft field. The first has been granted, at least, one of the distinctive features of high art, individual authorship; the second has been confined in the collective.
Coral, collective creation is also, historically, attributed to popular culture. In Italy, Antonio Gramsci’s ideas informed Alberto Mario Cirese’s influential notion of the internal cultural inequality levels (Cirese 1971). A cultural fact could ascend or descend within a culture, placing itself within the “popular” or the “elite” culture according to an ever-changing relationship. Although Cirese’s vision on culture was dynamic and aware of the complicated shifts and continuous negotiations among the different levels, his dualistic vision may prove problematic. Also, the popular has been primarily located in Italy’s peripheral, rural areas: the way social scientists focused on the uniqueness and alterity of regional cultures and their relationship to specific ethnic roots makes the post-colonial discourse applicable - up to a certain degree - to Italian regionalism.
Exploring these issues goes beyond the extent of this short introduction. It is, however, important to stress how craft occupies an ambiguous space within a set of possibilities defined by the crossing of three agents - the maker or producer, the artefact or product and the user or consumer, and their relative status in their societies. Considering these three elements as intertwined but differentiated and with an autonomous cultural agency might help avoid oversimplifications and give a more accurate account of the shifts in the craft discourse during the 20thcentury and its present and future in the 21st.
Artesanato e turismo
Eduarda Rovisco
Mapear os lugares de maior produção de artesanato levar-nos-ia decerto a elencar uma série de destinos turísticos situados tanto em áreas periféricas do Ocidente, amiúde associadas à ruralidade, como em territórios que integraram os seus impérios coloniais. Em muitos destes lugares, conotados com o atraso e a pobreza, a produção de artesanato tem sido encarada como uma via para atenuar o desemprego (cf.Reis 2022) e alvo de políticas públicas que preconizam a sua inserção no mercado de souvenirs turísticos. Se todos os destinos turísticos precisam de souvenirs, já apelidados cultura material do turismo (Hitchcock e Teague 2000), um conjunto de representações sobre estes lugares que os coloca à margem do progresso faz com que neles os objetos feitos à mão sejam vistos como mais eficazes e atrativos. Neste ponto, revela-se operativa a aplicação à análise dos souvenirs, realizada por Petit-Laurent e Bargueño (2017), da noção de objetos marginais formulada por Baudrillard (2004 [1968]: 82-93). Com efeito, também os souvenirs encontram na significação a sua principal função, evocam outro tempo e/ou outro lugar e resultam dos desejos de testemunho, recordação, evasão e nostalgia que fundamentam também parte dos discursos e práticas turísticas. Aludindo, em primeira instância, ao ato de recordar, que implica um deslocamento para espaços e tempos associados a um passado mítico, individual ou coletivo, os souvenirs artesanais tendem, nestes lugares, a ser entendidos como detentores de um sentido acrescido de significação. Acréscimo que decorre não apenas de remeterem para modos de produção pré-modernos, mas também do facto de muitos artefactos terem sido previamente elevados a símbolos nacionais ou regionais pelos processos de construção nacional.
Em muitos lugares, a inclusão do artesanato no mercado turístico originou a paradoxal “indústria do artesanato” produtora de objetos cada vez mais baratos, pequenos e leves, adaptados ao pequeno formato da bagagem de cabine das viagens low cost e ao exíguo conteúdo das carteiras da maioria dos turistas do século XXI. Embora estes processos tenham robustecido algumas conotações pejorativas atribuídas ao artesanato, passando a associá-lo à banalidade e ao kitsch, esta produção em série tem favorecido a conversão de tantos objetos em ícones “autênticos” do destino turístico (Estévez 2008: 43). Concebendo os souvenirs como uma língua simplificada, construída a partir de um conjunto restrito de imagens partilhadas, que permitem a comunicação entre turistas e hospedeiros (Ben-Amos 1977), deve ser notado que estes objetos, ao operarem através da redução e exotização, materializam a estrutura de dominação que subjaz ao encontro turístico. Neste sentido, estes objetos marginais podem ainda tornar-se marginalizantes, como ocorre com os souvenirs cabo-verdianos analisados neste dossiê. Esta estrutura de poder é também apreensível nas práticas de consumo de souvenirs, equiparados por vários autores a troféus de viagem. Não por acaso, a aquisição destes objetos, filmada por Dennis O’Rourke em Cannibal Tours (1988) como epítome do “encontro turístico”, é tantas vezes realizada com recurso ao regateio que, em tantos lugares, constitui uma das principais fontes de conflitos entre locais e turistas.
Mas os souvenirs são também marginais enquanto objeto de estudo da antropologia. Veja-se, a este propósito, os óbices com que Nelson Graburn (1999) se defrontou até à publicação de Ethnic and Tourist Arts: Cultural Expressions from the Fourth World (1979 [1976]), volume que, não obstante, precedeu a edição da obra dita fundacional da antropologia do turismo Hosts and Guests: The Anthropology of Tourism (Smith 1977), cujo primeiro capítulo era também assinado por Graburn. Embora a bibliografia sobre souvenirs tenha aumentado nas últimas décadas (cf.Swanson e Timothy 2012), patenteando a proficuidade da investigação sobre estes objetos para a própria inteligibilidade dos fenómenos turísticos, a produção antropológica sobre o tema permaneceu residual. Essa condição marginal refletiu-se nos painéis realizados em Milão (“Which craft? Politics and aesthetics of handicraft in post-industrial contexts”, coordenado por Jean-Yves Durand e Antonella Camarda) e em Lisboa (“Arte popular, artesanato, souvenirs: materializações do passado, imaginações do futuro”, coordenado por Vera Marques Alves e por mim) e encontra-se patente neste dossiê.
Apesar de todos os artigos incidirem em territórios onde o turismo adquire considerável relevância económica (Brasil, Cabo Verde, Galiza e Sardenha), apenas um articula artesanato e turismo de forma explícita. E, contudo, o turismo não deixa de atravessar todo o dossiê como o zumbido de uma mosca que não conseguimos enxotar da sala, quanto mais não seja porque, enquanto leitores, a nossa capacidade de imaginar muitos dos lugares, práticas e objetos referidos ou sugeridos nestes artigos é ela própria refém da nossa experiência enquanto turistas ou consumidores de imagens turísticas sobre estes territórios.
Arte popular, conexões modernistas e “mitos de exportação”
Vera Marques Alves
Um dos aspetos que a leitura conjunta dos textos incluídos neste dossiê permite ressaltar é o da recorrente relação entre a valorização dos objetos feitos à mão, maioritariamente oriundos do mundo rural, e a criação de “comunidades imaginadas”: Antonella Camarda, analisando as políticas em torno do artesanato sardo ao longo de parte do século XX, mostra como, logo nos anos 20, os artefactos rústicos da Sardenha são divulgados enquanto “the most profound expression of Sardinia’s soul […]”. Elena Freire Paz, por sua vez, aborda o programa de afirmaçao identitária na Galiza do período pós-Franco, remetendo-nos para a transformação dos produtos artesanais aí criados em “sacred pieces of identity”. Examinando as diferentes “matrizes discursivas” que têm envolvido e agido sobre a atividade artesanal no Brasil após a Segunda Guerra Mundial, Daniel Reis não deixa de aludir a essa relação entre o artesanato e a busca da “genuína identidade nacional”. O fenómeno é dominante também no caso do artesanato cabo-verdiano, investigado por Eduarda Rovisco. Neste dossiê, a autora concentra a sua atenção na tapeçaria, introduzida no arquipélago nos anos 70 do século passado, mostrando como a mesma foi “nacionalizada através dos motivos visuais que remetem para temas da cabo-verdianidade”, passando depois a ser divulgada equanto parte do artesanato tradicional do arquipélago. Finalmente, o artigo de Thaís de Brito, dedicado a diferentes apropriações do bordado richelieu no nordeste brasileiro, fala-nos de formas heterodoxas de representar esta manifestação artesanal, precisamente por contraposição a um discurso oficial estabelecido na cidade de Caió - lugar conhecido pela sua produção de richelieu - de acordo com o qual o bordado é o “cartão postal da região” e “uma herança”.
No terreno da construção das identidades, contudo, pouca coisa se restringe às fronteiras nacionais. Como vários autores já demonstraram, em causa está, por um lado, o facto de a arena internacional ser fundamental para a afirmação das nações (Löfgren 1989): uma nação só se legitima enquanto tal, se aceite pelas outras nações. Por outro, os idiomas identitários escolhidos por cada comunidade resultam não só das vicissitudes próprias às dinâmicas culturais e políticas de cada país ou região, mas também da circulação transnacional de certos modelos de imaginação da nação (cf.Thiesse 2000 [1999]). Nestas breves notas abordarei tal dimensão do culto do artesanato e da arte popular, aspeto determinante para perceber o seu uso em regiões e nações historicamente periféricas.
Antes de mais, cabe sublinhar que a própria categoria de arte popular surge na sequência das primeiras exposições universais organizadas na Europa e, em particular, daquela que em 1851 inaugurou este tipo de evento - a Great Exhibition of the Works of Industry of All Nations, em Londres. Entre os diversos produtos expostos neste certame - das máquinas às matérias-primas, passando pelas obras de arte e pelos artefactos exóticos -- sobressaía a vasta quantidade de objetos domésticos de fabrico industrial, decorativos e utilitários, que crescentemente inundavam o mercado ocidental, mas cuja inferioridade estética preocupava responsáveis políticos e estudiosos (cf.Payne 2012: 25-27; Thiesse 2012: 5). Artistas, historiadores de arte e arquitetos de diferentes proveniências procuram então soluções para o aperfeiçoamento destes objetos, em torno dos quais, de resto, as nações jogavam não apenas consideráveis ganhos económicos, mas também o seu próprio prestígio. Gottfried Semper é um desses teóricos e arquitetos que, neste contexto, denuncia o “estilo emprestado” e a “falsa materialidade” dos artefactos produzidos industrialmente (Madeira 2015: i), contrapondo-lhes uma suposta consistência estética das peças artesanais, simples e anónimas - mais tarde denominadas objetos de arte popular - que se encontrariam na base de uma sensibilidade artística de teor inevitavelmente nacional (cf.Payne 2012: 54-55)
A partir de finais do século XIX, a arte popular é já um instrumento recorrente de afirmação nacionalista e as acima referidas mostras internacionais são um dos contextos privilegiados para a a sua exibição. Países como a Polónia, a Hungria ou o Japão patrocinam a criação de uma arte decorativa de cunho nacional, inspirada nos motivos da arte popular e adaptada aos gostos das classes médias cosmopolitas (cf.Thiesse 2012). Neste dossiê, o texto de Antonella Camarda evoca semelhante fenómeno na Sardenha dos anos 10, época em que o colecionador e empresário Galvino Clemente desenvolve uma linha de mobiliário “estilo Sardenha” a partir dos padrões da respetiva arte camponesa, que leva à Esposizione Internazionale dell’Industria e del Lavoro de 1911, em Turim. Não raras vezes, contudo, este tipo de apropriação foi alvo de contestação por parte de alguns círculos intelectuais. Em causa estava, entre outros aspetos, o modo como as elites nacionais pensavam o lugar da sua pátria na modernidade. O caso da Checoslováquia é particularmente esclarecedor: ainda sob domínio do império Austro-Húngaro, alguns académicos checos rejeitaram a tentativa de promover uma arte nacional inspirada nos motivos camponeses; interessados em veicular o retrato de uma nação avançada, defendiam que a arte do seu país se identificava acima de tudo com a estética ocidental e a sua história, e não com a arte rústica, que viam como “primitiva” e “atrasada”, própria de nações de rurais, como, na sua perspetiva, seria a Eslováquia (cf.Filipová 2008: 261-262). Também na Rússia czarista de finais do século XIX, e apesar do esforço de revitalização do artesanato camponês empreendido pelo círculo de Abramtsevo (cf.Salmond 1996), as classes abastadas resistiram à ideia de que os produtos rústicos feitos à mão pudessem ter lugar numa nação industrial e civilizada. Para tal concorreu a péssima impressão que terá causado a exibição de tais objetos em Paris, na Exposição Universal de 1889 (Salmond 1996: 37).
Entretanto, na primeira década de novecentos, diferentes figuras e grupos ligados ao modernismo, críticos da massificação que associavam à sociedade industrial, enaltecem a alegada espontaneidade e vitalidade criativa da arte popular, resgatando-a enquanto fonte de inspiração artística e elemento de representação das culturas nacionais. Em Viena, Gustaf Klimt e o seu grupo estão entre os artistas que protagonizam esta orientação (Brandow-Faller 2017: 112-113). Mas talvez mais decisivos para a disseminação de tal tendência tenham sido os Bailados Russos, criados por Sergei Diaghilev em 1909. Estreando na capital francesa, a companhia teve êxito imediato, o que se deveu não apenas ao teor revolucionário do seu projecto estético, mas também ao exotismo dos seus figurinos e cenários, inspirados na arte popular russa, nos trajos dos camponeses e nos ornamentos que decoravam as janelas e as portas das suas casas rurais (Eksteins 1990 [1989]: 25, 32). Como sublinhou Patrizia Veroli, Diaghilev e os seus primeiros colaboradores conceberam a identidade russa como “um mito de exportação” (2013: 475) e, através da recriação dos motivos do folclore e do artesanato, conseguiam evocar uma Rússia culturalmente refinada, mas autêntica, até aí desconhecida das elites ocidentais (ver também Tregulova 2009). As múltiplas turnés da troupe pela Europa e pelo continente americano, assim como os encontros parisienses entre os membros da companhia de dança e artistas e intelectuais de diferentes origens, cedo permitiram que a fórmula desenhada pelos russos se transformasse num modelo a replicar. Para as elites culturais de outros países periféricos, os Ballets Russes significavam que as tradições e as artes das suas populações rurais, tantas vezes depreciadas como testemunhos de pobreza e atraso, podiam agora ser transformadas em signos de uma nação culturalmente singular, mas ao mesmo tempo sofisticada e moderna (Clayton 2014). Sob esta influência, vários artistas “descobrem” os objetos de arte popular dos seus países. Foi o caso de alguns pintores mexicanos como Roberto Montenegro; em 1920, recém-chegado da Europa onde convivera de perto com a equipa de Diaghilev (Gutiérrez Viñuales 2003), lança uma campanha de recolha de arte popular e, juntamente com Doctor Atl (pseudónimo de Gerardo Murillo) e Jorge Enciso, eleva o artesanato campesino a testemunho maior da alegada originalidade da cultura do seu país (cf.López 2010).
Alguns dos processos analisados neste dossiê evidenciam a marca destes encontros transnacionais, tantas vezes negligenciados, mas decisivos na configuração dos usos nacionalistas do artesanato. Daniel Reis remete-nos para esta faceta, ao abordar o desenvolvimento de uma matriz discursiva em torno da chamada “arte popular brasileira”, aludindo em particular à figura do artista e designer francês Jacques Van de Beuque. Migrando para o Brasil em 1946, Van de Beuque muito rapidamente fica maravilhado com os bonecos da cerâmica de Pernambuco, criando a partir desse primeiro deslumbre uma das maiores coleções de arte popular brasileira de sempre, hoje intalada no Museu Casa do Pontal (Reis 2022). Apesar de, como sublinha Reis, esta aproximação às coisas populares ser muitas vezes descrita como um processo de pura “descoberta”, o facto é que não só os bonecos de barro de Pernambuco já haviam sido expostos em 1947, no Rio de Janeiro, como a sensibilidade do designer francês dificilmente terá sido alheia à sua amizade com Cândido Portinari (Mattos 2013) que, por sua vez - como já havia acontecido alguns anos antes com o compositor Heitor Villa-Lobos e a pintora Tarsila do Amaral (Guérios 2003) -, descobrira em Paris a importância do povo e da cultura popular como objeto da sua criação artística (Soares 2003: 77). A relação entre o artesanato e a construção da cabo-verdianidade, examinada no artigo de Eduarda Rovisco, é igualmente elucidativa sobre o modo como os usos nacionalistas dos objetos artesanais estão associados ao fluxo transfonteiriço de ideias e pessoas. Concentrando-se no desenvolvimento da produção manual da tapeçaria enquanto uma das principais “bandeiras do artesanato mindelense” após a independência do arquipélago, a autora situa, por um lado, a introdução desta prática em Cabo Verde no “clima de efervescência em torno da arte têxtil” que se vivia então em Portugal e na Europa; por outro lado - e retomando um tópico previamente aprofundado (Rovisco 2017, 2018) -, mostra que o relevo dado ao artesanato, e em particular aos têxteis no período revolucionário foi também uma resposta a um juízo veiculado a partir dos anos 50, segundo o qual “a população do arquipélago seria destituída de vocação para as artes visuais, eruditas ou populares”. Como a antropóloga comenta em publicação anterior, este juízo terá sido formulado pelo sociólogo e escritor Gilberto Freyre, após uma visita a Cabo Verde em 1951, no contexto de um périplo pelas então colónias portuguesas. Para Freyre, tal lacuna artística seria o resultado da “instabilidade cultural” de Cabo Verde (cf.Rovisco 2017). Poucas vezes se terá enunciado uma tão forte correspondência entre o suposto grau de consistência de uma cultura e a maior ou menor vitalidade da sua arte popular. Não nos esqueçamos de que, para além do seu contacto com os modernistas brasileiros e com as suas propostas sobre a relação entre modernidade, identidade e cultura popular (cf.Rezende 1995: 18), Freyre fora particularmente marcado pela ideia de diversidade cultural promovida por Franz Boas, com quem estudara na Universidade de Columbia, assim como pela atenção que este autor atribuía às manifestações materiais de cada cultura (cf.Rezende 1995; Chagas 2014). Para mais, o autor de Casa Grande e Senzala esteve em Cabo Verde pouco tempo depois do êxito das exposições de arte popular pernambucana como a acima mencionada, o que eventualmente terá contribuído para a sua especial atenção a tal elemento cultural. Neste contexto, contestando a ideia, vinda de fora, segundo a qual o arquipélago não possuía artes populares nem eruditas, a criação de uma nova forma artística, situada entre a arte e o artesanato, nacionalizada através dos “motivos visuais que remetem para temas da cabo-verdianidade”, cujas peças eram adquiridas sobretudo pelo “Estado, para decorar as novas instutuições governamentais e para oferecer a instituições estrangeiras” (Rovisco 2022), terá também permitido à elite de Cabo Verde - tal como aos artistas russos e mexicanos em décadas mais recuadas - apresentar versões sofisticadas das suas tradições ao mundo e, assim, transformar a sua cultura nacional num “mito de exportação”.