Antropologia da Moda constitui um marco no percurso de investigação de Filomena Silvano e claramente espelha a vitalidade da Antropologia contemporânea, atenta ao que chega, mas com forte interlocução com temas e autores clássicos, propondo análises críticas que nos ajudam a ler o real. E o real aqui, o pedaço de mundo que este livro nos apresenta, é a moda e o vestir e o que irradia destes universos. Antropologia da Moda ativa capilaridades várias a partir de um objeto complexo e contraditório que nos leva do luxo, às alterações climáticas, até à pandemia. Ajuda-nos a refletir porque é que o que existe não chega, é insuficiente (Berger 2021).
Antropologia da Moda apresenta-nos, assim, o coletivo de autores e os grandes territórios de interpelação que guiaram a antropóloga no tratamento do assunto “moda” e que viriam a configurar o seu trabalho de campo mais recente realizado entre 2016 e 2018 no atelier do designer de moda Filipe Faísca. Convoco esta etnografia, apesar de ausente neste livro, na medida em que nos ajuda a compreendê-lo, justamente porque Antropologia da Moda vem do real, vem dos mundos que Filomena Silvano “etnografou”.
A autora vai tecendo uma rota nómada. Não se cinge à Antropologia, tem a eficácia de ir anexando campos disciplinares diversos que permitem pensar a moda hoje, apresentando uma constelação de autores e temáticas que são trabalhadas de forma muito ágil. O que dá a ver? O que permite pensar Antropologia da Moda?
O livro abre com um pequeno texto que a autora escreveu em 2001, no contexto da exposição comemorativa dos dez anos da ModaLisboa. Mobiliza-o como mote para sublinhar a maturação do seu interesse, desde a década de 1990, pela “moda, o vestir, as cidades e os processos de criação de identidades” (Silvano 2021: II) e para apresentar a rota de investigação percorrida no território da moda. Sublinha, ainda, como o retiro forçado pela pandemia reconfigurou a sua relação com a moda “mais distanciada e mais centrada nos textos e nos arquivos” (idem:12).
O livro desdobra-se em cinco momentos - “Moda - quatro questões primordiais”; “Uma antropologia do vestir”; “Moda e vestir - desenvolvimentos”; Moda e contestação”; “Moda e vestir em tempo de pandemia” - que revelam um quadro teórico-conceptual requintado colocado em articulação com exemplos empíricos laboriosamente analisados, que vão iluminando a teoria, aproximando-nos do mundo da moda. E conseguimos entrar…
Antropologia da Moda começa por apresentar os filões estruturantes dos primeiros escritos sobre a moda e que configuraram as principais reflexões ao longo do século XX. Destaco um deles: o cruzamento tenso entre diferentes temporalidades. Por exemplo, a moda perspetivada como um fenómeno que lida habilmente com a ideia de atualidade, de novidade, mas também como, paradoxalmente, se desajusta do tempo presente e como recua.
Depois o livro desenha um outro movimento. A interpelação da autora desloca-se deste território interdisciplinar - habitado por antropólogos, sociólogos, economistas e filósofos - para se ancorar na Antropologia, na sua disciplina, e em particular na Antropologia do Vestir e nas roupas enquanto cultura material, área de estudos à qual a autora se tem largamente dedicado.
Filomena Silvano sublinha o caráter ainda marginal destes tópicos na Antropologia, o que nos permite identificar o pioneirismo deste livro no contexto português e até internacional. Contudo, apesar de o “vestir” ter estado presente nas análises antropológicas, o subcampo disciplinar Antropologia do Vestir só se configura tardiamente, em particular no ano 2000.
De seguida cruza a moda e o vestir a partir de grandes temáticas, dando assim visibilidade aos percursos sociais das coisas, à sua circulação, às várias condições que assumem, às relações que as pessoas estabelecem com as roupas, à corporalidade, às identidades e ao luxo.
No quarto momento, é trazida a dimensão política e de contestação no mundo da moda, analisando-se os direitos dos animais, a sustentabilidade no contexto da emergência climática - e alteração dos consumos daqui decorrentes e a resposta da indústria e dos criadores - a não discriminação racial, as condições de trabalho e a precariedade no quadro da neoliberalização da moda.
São inquietantes as reflexões trazidas por Filomena Silvano, porque nos confrontam com os “processos antrópicos” que tiveram consequências planetárias (Haraway 2016) e que configuram o que designamos como Antropoceno. Por exemplo, são necessários 2700 litros de água para produzir uma t-shirt de algodão, que correspondem ao consumo médio de água por pessoa durante dois anos e meio (Silvano 2021: 165). Filomena Silvano dá a ver as contradições e complexidades do mundo da moda, afirmando que:
“as pessoas do mundo inteiro têm cada vez mais consciência dos efeitos nocivos da produção de roupa, mas as pessoas do mundo inteiro consomem cada vez mais roupa.” (Silvano 2021: 166)
A atenção da autora ao presente conduz a uma reflexão que encerra este livro sobre a moda e o vestir na pandemia. Este capítulo, num primeiro momento, apresenta uma análise sobre a reconfiguração digital dos desfiles, perspetivados comos “grandes rituais celebrativos” (Silvano 2021: 173), centrais ao funcionamento da indústria da moda ao construírem os sentidos e os valores das roupas. Num segundo tempo, Filomena Silvano discute as alterações que identifica no vestir com o uso generalizado da máscara.
Antropologia da Moda contribui para percebermos porque é que cada um de nós se veste desta ou daquela maneira, porque é que a cantora Billie Eilish optou pelo oversize; porque é que Kamala Harris na cerimónia de tomada de posse como vice-presidente dos Estados Unidos vestiu roxo - a outra cor das sufragistas - ou, ainda, porque é que os Caduveo tanto investem no cuidado e no adorno dos seus corpos.
A grelha teórica cuidadosamente costurada num arco temporal alargado, as temáticas e exemplos selecionados, fazem de Antropologia da Moda um contributo extraordinário para multiplicarmos pontos de vista sobre o contemporâneo.