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Etnográfica

versão impressa ISSN 0873-6561

Etnográfica vol.26 no.3 Lisboa dez. 2022  Epub 30-Jan-2023

https://doi.org/10.4000/etnografica.12229 

Artigo Original

Máquinas e maquinações: as reconfigurações do trabalho familiar no Caparaó cafeeiro, Minas Gerais (2016-2018)

Machines and machinations: the reconfigurations of family work in Caparaó cafeeiro, Minas Gerais (2016-2018)

Paulo Augusto Franco de Alcântara1  , concetualização, investigação, visualização, redação - revisão e edição
http://orcid.org/0000-0003-1256-0630

1Estágio pós-doutoral no Departamento de Antropologia na Universidade de São Paulo (USP-Brasil), guto.franco@gmail.com


Resumo

Nas duas últimas décadas, na América Latina, a noção de “agricultura familiar” expandiu-se e tornou-se referencial político e econômico no enfrentamento de problemas referentes à reprodução de pequenos campesinatos cuja produção é ancorada, muito ou exclusivamente, na mão-de-obra familiar. No Brasil, em especial, a agricultura familiar enquanto política de intervenção do Estado ganhou relevo por meio do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), voltado a oferta de crédito subsidiado setorial, criado em 1995 e expandido a partir de 2003. Diante desse contexto, procuro compreender etnograficamente as mudanças vividas, nos planos da concepção e da gestão cotidiana do trabalho, por pequenos agricultores e agricultoras familiares, habitantes de uma comunidade cafeeira do município de Espera Feliz, com os quais vivi no curso de quase três anos de trabalho de campo. Detenho atenção especial às relações entre o aumento das lavouras individuais e a aquisição crescente de máquinas agrícolas, fatores que estariam colaborando para um processo de individualização e competição no trabalho e gerando, assim, debates e tensões em torno da própria caracterização, em contexto, da agricultura familiar nas suas relações com o mercado (capitalista).

Palavras-chave: agricultura familiar; trabalho; máquinas; Pronaf

Abstract

In the last two decades, “family farming” has been expanded and has become a reference for conducting social transformations related to the small peasantry in Latin America. In Brazil, as a State policy (Pronaf), especially since 2003, family farming has been politically and economically highlighted by offering subsidized microcredit to decapitalized family farmers. I address the changes experienced by small farmers in terms of their conception and day-to-day management of labor. They are inhabitants of a coffee community in the municipality of Espera Feliz. I focus the attention on the relationship between the increasing in individual crops and the growing acquisition of agricultural machinery, factors that would be contributing to a process of individualization and competition in labor domains and thus generating debates and tensions around the characterization itself, in the context, of the family farming in possible associations with the (capitalist) market. Ethnographic research was conducted among 19 family units of Caparaó mineiro coffee farmers (2015-2018).

Keyword: family labor; agricincreaseultural machinery; Pronaf

Introdução

Na América Latina, o debate sobre as formas de vida e de reprodução econômica do campesinato - conhecido por ser um grupo social sobrevivente à insuficiência de recursos, à hostilidade dos mercados e aos descasos de governos (Mayer 2002: 25) - vem sendo atravessado pelo tema/problema do advento e fortalecimento de políticas públicas setoriais baseadas na inclusão financeira e na transferência condicionada de renda. Nas ciências sociais, os efeitos dessas intervenções, para além de apreensões estritamente “economicistas”, vêm sendo abordados, em especial, nas suas interferências nas relações sociais e nas subjetividades dos assim chamados “beneficiários” (Balen e Fotta 2019).

No Brasil, especialmente, parte dessa discussão, em sintonia com estratégias de cooperação internacional, foi ancorada na formação de uma institucionalidade governamental voltada ao fortalecimento da agricultura baseada na mão-de-obra familiar. Não somente motivada pelos ideais de “segurança” e de “soberania” alimentar, mas também visando a inclusão financeira de camponeses descapitalizados no mercado capitalista por meio de estímulos à produtividade (World Bank 1975)1. Para esse alinhamento, uma das estratégias que mais ganhou destaque é o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), criado em 1995 e expandido a partir de 2003.

O Pronaf é uma política pública baseada na oferta de crédito setorial, produtivo e com juros subsidiados pelo Estado, no intuito do “desenvolvimento rural sustentável” e da “geração de renda e emprego” a agricultores familiares (Grisa 2012: 184)2. Parte considerável dessas estratégias estabelece como crucial na constituição desse “empreendedor familiar rural” o acesso e investimentos em infraestruturas tecnológicas de produção. Exemplar a tal processo ( e objeto da atenção deste artigo ( é a crescente incorporação de máquinas agrícolas nas fases de produção: fator coincidente, como será apresentado, com um processo mais amplo que estimularia a individualização das formas de trabalho nessas unidades familiares que também são unidades de produção.

A região da zona da mata mineira, no Sudeste do Brasil, conhecida nacional e historicamente pelo intenso cultivo de café do tipo arábica (Lanna 1986; Mercadante 1990), desde a segunda metade da década de 1990 vem sendo impactada pelo Pronaf. Em especial ao longo dos governos presididos pelo Partido dos Trabalhadores (2003-2016), o crédito subsidiado foi ampliado e fortemente institucionalizado para alcançar grupos menos capitalizados por meio da criação de crédito com taxas de juros diferenciadas.3

Em específico, o município de Espera Feliz, segundo os dirigentes da Federação dos Trabalhadores e das Trabalhadoras na Agricultura Familiar do Estado de Minas Gerais (Fetraf MG), tornou-se referência no estado na implementação dessa política pública. O crédito subsidiado alcançou um elevado número de famílias de cafeicultores, permitindo-lhes a formação e a ampliação de lavouras localizadas em pequenas propriedades. Os recursos financeiros proporcionados pela linha de crédito “Pronaf Mais Alimentos” foram usados para a realização de investimentos nas infraestruturas de produção. Agricultores familiares tiveram suas vidas afetadas em muitos aspectos: territórios, casas, lavouras, consumo, participação no mercado e, finalmente, nos planos do trabalho nas lavouras de café.4

Neste artigo abordarei, etnograficamente, sob o ponto de vista desses agricultores familiares, as mudanças percebidas e vividas no âmbito dos regimes, práticas, relações e significados dados ao trabalho cotidiano na produção de café em uma comunidade rural local constituída por 19 unidades domésticas onde conduzi pesquisa de campo entre os anos de 2016 e 2018. A crescente incorporação de máquinas agrícolas em concomitância com a expansão das lavouras individuais, em especial, na última década, viabilizadas pela popularização do Pronaf no local, teria incrementado mudanças não somente nas instâncias mais imediatas e literais das práticas cotidianas de trabalho, mas também interferido nos modos pelos quais as relações sociais são vividas, nas subjetividades e nas heurísticas dessas pessoas: “beneficiários” diretos e indiretos da política pública em questão.

Assumindo a importância da proposição feita pelo antropólogo Michael Taussig, para quem “uma mudança nos modos de produção é também uma mudança nos modos de percepção” (Taussig, 2010: 177), enfocarei as construções críticas de meus interlocutores sobre essas mudanças que vivem concretamente. Como demonstrarei, tais críticas se relacionariam com processos mais amplos como, por exemplo, a participação mais ativa no mercado (capitalista) concebida, por um lado, como possibilidade de geração de mais renda e autonomia, por outro, como uma (re)orientação das relações sociais a uma progressiva (por vezes excessiva) individualização e privatização dos meios de produção e de trabalho.

Verônica Gago (2014), no contexto de investigação das práticas econômicas populares e financeirização da vida na Argentina após governos progressistas, demonstrou como as razões do sistema econômico (neoliberal) podem ser redefinidas - reproduzidas e contestadas - “de baixo para cima”, isto é, por meio de táticas cotidianas, dos modos de pensar, de desejar, de fazer e de lutar que extravasariam as duas opções comuns de subjetivações impostas pelo modelo neoliberal (“de cima para baixo”): seja como “vítimas” ou como “empreendedores”. O poeta Carlos Drummond de Andrade usou as metáforas da “máquina” e do “mundo” para dar conta desse capitalismo veiculado pelas próprias pessoas no contexto da Itabira mineral, sob a presença da intervenção econômica multinacional. Wisnik (2018) fixou essa compreensão metafórica na noção de “maquinação”, a qual adoto como perspectiva para a compreensão dos efeitos desse “capitalismo” e desse “mundo” nas subjetividades das pessoas que os vivem concretamente, como é o caso dos cafeicultores de Espera Feliz.

A título de reflexão teórico-metodológica mais ampla, ressalto não pressupor uma relação direta e mecânica, de causa e efeito, entre a política pública e as mudanças sociais tal qual são percebidas pelos interlocutores. Ao contrário, assumo que a política pública em questão é um dos diversos fatores e produtos contextuais presentes em meio a um processo mais amplo de mudanças, na cultura e na economia, percebidas e vividas por esses interlocutores. Baseio os argumentos aqui apresentados, desse modo, na hipótese de que toda injunção externa, na forma de política pública, para além do “controle social” que, direta e/ou indiretamente, promove (Ferguson 1994), seria confrontada, adaptada e até mesmo subvertida, como diria De Certeau (1994), por um repertório de práticas locais, as quais concederiam conteúdos, muitas vezes singulares e não esperados a essas intervenções. Como apontou Geertz em seu trabalho entre os povos javaneses (1963), alguns dos valores presentes nesses repertórios seriam, eles mesmos, necessários ao desenvolvimento dessas intervenções.5

Apresento este artigo em três secções. Primeiro, apresentarei brevemente o universo etnográfico em questão a fim de apresentar os interlocutores e os contextos da investigação. Na sequência, descreverei e analisarei as principais mudanças vividas pelos agricultores da comunidade investigada, tendo como eixo dessas mudanças a expansão de lavouras e a intensificação dos usos de máquinas no trabalho agrícola. Na terceira secção do texto, analisarei essas mudanças à luz de alguns de seus possíveis efeitos mais amplos nas relações sociais e no tempo, isto é, o que chamamos, com Drummond, de “maquinações” locais do “mundo”.

Configuração etnográfica

Espera Feliz é uma cidade e sede do município situado na mesorregião da zona da mata mineira. No painel nacional, a região é identificada com o parque nacional da serra do Caparaó que abriga o pico da Bandeira, na divisa entre os estados de Minas Gerais e Espírito Santo. A cidade encontra-se a 748 metros de altitude e possui clima ameno no verão e frio no inverno, o que favorece, até os dias de hoje, especialmente, o cultivo de café do tipo arábica.

Do total de 22.856 habitantes, 8682 foram classificados como residentes no meio rural, segundo dados censitários (IBGE 2010). Desses 2535 domicílios rurais, 40,7% possuíam condição “semi-adequada” de saneamento básico. Em 2015, o censo agropecuário apontou que 98,75% das lavouras permanentes eram de café do tipo arábica. Até 2018, a zona rural era dividida pelo sindicato dos trabalhadores e trabalhadoras da agricultura familiar local em 37 comunidades nas quais há predomínio de pequenos sítios, com menos de 20 hectares de terras, cuja mão-de-obra é constituída quase que exclusivamente por membros da família. No entanto, há também a presença de médias propriedades cafeicultoras movimentadas por trabalhadores meeiros, diaristas (companheiros) e moradores de meia.6

A pesquisa de campo foi realizada entre janeiro de 2016 e fevereiro de 2018, com cafeicultores e cafeicultoras7 habitantes de uma das 37 comunidades: 19 unidades domésticas que compreendem casas, terreiros hortas e lavouras de café. Dentro da comunidade, esses sítios compõem o que chamam de córrego, um território atravessado por uma linha de água e que, na sua constante (re)composição é formado e marcado pela convivência de laços de parentesco. No entendimento daquilo que vem a ser a família, esses córregos são territórios vividos que, para além da circunscrição física, favorecem trocas, favores, ajudas mútuas: “círculos sempre em movimento” e de intensas circulações e mutualidades morais (Comerford 2003: 31).

Os interlocutores presentes neste artigo são todos pequenos sitiantes e moradores desse córrego. Eles se identificam mutualmente como parentes, descendentes de três famílias (troncos) que se casaram entre si formando novas unidades familiares (galhos). Quatro desses galhos são formados por agricultores que antes trabalhavam em propriedades médias da região em troca de moradia (moradores de meia); hoje essas famílias vivem e trabalham no córrego confiando nas chances de prosperar na agricultura familiar com lavouras próprias. Em parcelas de terras herdadas e divididas pelos pais (talhões), uma parte, sobretudo os mais jovens, construíram suas casinhas com recursos do PNHR e formaram suas primeiras lavouras com recursos do Pronaf. Não somente esses novos moradores, mas grande parte dessas famílias (17 das 19 unidades familiares) acessou recursos do Pronaf, aumentando suas lavouras - dobrando-as, triplicando-as - e investindo na infraestrutura de produção, construindo galpões ou tulhas para estocagem do café colhido, adquirindo máquinas agrícolas e veículos vistos por melhorarem a logística do trabalho. As mudanças descritas ao longo deste artigo abrangem direta e/ou indiretamente todas as famílias.

Três gerações habitam o córrego. Ao longo do tempo, o número de filhos por casal sofreu redução relevante. Uma unidade, por exemplo, passou de cinco a até dez filhos, para ter quatro, três, até um filho por casal. Considerando o protagonismo quase absoluto da mão-de-obra familiar, esse processo, concomitante ao aumento das lavouras, como apresentarei neste artigo, colabora para aquilo que os meus interlocutores compreendem como uma crise de mão-de-obra local. Neste artigo estão presentes interlocutores pertencentes a essas três gerações. No entanto, serão perceptíveis as diferenças geracionais que constituem recortes relevantes para a reconfiguração das formas e relações de trabalho no córrego.

As famílias recém-chegadas são tidas, em relação com aquelas já estabelecidas, por “menores”, com lavoras em formação e ainda sem renda capitalizada para maiores investimentos na produção. Dadas algumas instabilidades climáticas, a própria variação da quantidade de grãos produzidos entre um ano e outro e a variação do preço do café no mercado, o cenário geral é de incertezas: cada ano agrícola apresenta surpresas.

A maior parte do café produzido nos sítios é vendida às empresas compradoras locais (firmas) que, por sua vez, repassarão o produto para as torrefações nacionais e internacionais. Ao deixarem as terras dos patrões, os agricultores passaram a negociar diretamente o café com os atravessadores/compradores, agentes representantes das firmas nos processos de compra e transporte das sacas de café.8 Diante do mercado de café, esses agricultores passam a conhecer os processos de classificação dos grãos por qualidade, assim como o regime de preços praticado tanto nas esferas locais de decisão (firmas) como nas mais abrangentes (preço da commodity). Na visão geral do processo, mesmo sentindo-se mais autônomos para negociar sem os patrões, os agricultores percebem-se sempre num contexto de desigualdade, de injustiça e falta de transparência em relação aos preços impostos à sua produção.

Diante dessas mudanças que abrangem os níveis do território, da casa, das finanças (entradas de novos recursos) e das transações, seriam esperadas reconfigurações das relações que são travadas no córrego. Com efeito, observei tratar-se de mudanças que atingem, especialmente, os tempos e os esforços de trabalho (autoexploração), as trocas, favores, as parcerias, enfim, todo um sistema de reciprocidades estabelecidas não somente entre sujeitos, mas também em direção à lavoura e aos insumos usados.

Para acessar não somente as formas pelas quais essas mudanças são apresentadas, mas, sobretudo, os conteúdos que afetam, processualmente, as relações e as subjetividades dos moradores do córrego, empreendi pesquisa etnográfica com o intuito da vivência contínua com essas famílias, morando, em diversos períodos, no córrego. Em atenção ao que Malinowski sublinhou como os “imponderáveis da vida real” (1978: 27-32), foram empreendidos contatos diretos e permanentes, observando, participando e descrevendo as práticas, as relações e as heurísticas cotidianas desses agricultores à procura dos sentidos e intenções que as presidem. No período, participei do cotidiano local das relações, dentro e fora das casas e lavouras, em ocasiões de trabalho, de lazer, de descanso, de celebração, de alimentação, entre dúvidas, tensões e decisões.

Das cantorias às máquinas

Fonte: Arquivo do pesquisador, 2017

Figura 1 Reprodução  

Inauguro esta secção do texto analisando brevemente a fotografia da figura 1, retirada por Maria e Francisco de seu álbum de fotografias, com o intuito de me mostrar como era a colheita de café nos primeiros anos de 1990. Nela vemos o casal apanhando café no mesmo momento em que posam, sorridentes, para quem executa a fotografia, provavelmente um parente que os ajudava no trabalho. As vestimentas compridas nos braços e nas pernas, além de protegerem a pele do sol, guardam os dois de qualquer eventual e indesejado contato com insetos e com os galhos pontudos da lavoura. No entanto, no acesso a essa imagem, em julho de 2017, o que mais me chama a atenção não são os aspetos mais literais da imagem gravada, mas as memórias proporcionadas no contato de ambos, no presente, com ela.9 Mais do que ver-se na imagem com Francisco, Maria enxerga, muito além do campo visível enquadrado, a presença de outros parentes do córrego ajudando na colheita do café, num mutirão que envolvia o trabalho dos homens, das mulheres e até das crianças. Ao lançarem interpretações sobre o passado, indagam no/sobre o tempo presente. “Isso tudo acabou” diz Maria, demonstrando alguma nostalgia. Francisco concorda.

Juca, filho do casal, agricultor de pouco mais de 40 anos de idade, casado e com dois filhos, lembra que, antes da chegada do Pronaf, “já existia agricultura familiar” em Espera Feliz. Até 2012 a colheita do café (apanha) em seu sítio era quase totalmente realizada pelas mãos dos membros de sua própria família. O trabalho, para ele, era “duro”, porém contava-se com a ajuda dos irmãos e sobrinhos. Inês, esposa de Juca, se recorda da cantoria, quando os parentes, em mutirão, se reuniam e conviviam na mesma lavoura trabalhando, cantando canções, contando casos, piadas e fofocas. No sítio do casal, normalmente, trabalhavam Rosário e Neusa, irmãs de Inês com seus respetivos maridos e filhos. Na troca de dias, um parente pagava em equivalência de dias de trabalho o tempo que trabalhou antes ajudando um outro. Esse era, segundo os agricultores e as agricultoras, o regime de trabalho preponderante.

Na memória que os agricultores selecionam e montam para contar, os mutirões eram contextos em que os filhos podiam ser instruídos em relação aos avós, tios e primos, em observação à manutenção de relações de ajuda mútua e ao valor da solidariedade em família conduzida pelos adultos. As lavouras são representadas, assim, como lugares de formação de uma coletividade local caracterizada pelo compartilhamento de experiências, saberes, afetos, tornando o trabalho um elemento crucial na manutenção de uma comunidade de valores, no sentido de Bailey (1971). O significado dessas trocas, além da necessidade prática do trabalho, seria, portanto, de ordem simbólica (Woortmann 1990: 32): além da lavoura, por meio do trabalho (familiar), estão reproduzindo uma comunidade nos modos como pretendiam.

Quando dizem, como Juca, que o sentido da agricultura familiar não é novidade, enfatizam a existência desse sistema de costumes e valores baseados no protagonismo da mão-de-obra familiar antes mesmo da “agricultura familiar ser moda”, isto é, de ter se tornado pauta em evidência no governo, por meio, especialmente, do fortalecimento do Pronaf. Essa agricultura de base familiar, em mutirão, é lembrada por permitir maior circulação dos parentes pelos sítios, fazendo circular, além de pessoas e ferramentas, experiências, técnicas e informações sobre a gestão das fases de cultivo do café e do mercado. Anualmente, no período da colheita, esses laços de solidariedade podiam ser reforçados, renovando o sentido da agricultura familiar entre os moradores do córrego, isto é, de um trabalho coletivo formal e substantivamente baseado na metodologia das relações, dos vínculos, das contraprestações, em ajustamentos empíricos ao que geralmente imaginamos sociologicamente como uma economia do dom (Mauss 1967 [1925]).

Mas os mutirões são também recordados e, portanto, representados no presente pelas tensões e conflitos vividos. Desavenças ocorriam quando, por exemplo, a reciprocidade simétrica esperada era ameaçada ou frustrada por um irmão que, após receber a ajuda de outro, não lhe prestava em equivalência. Ou seja, quando a troca de dia era rompida ou atrasada por uma das partes da relação. Os prejuízos poderiam ser muitos, incluindo possíveis quebras de expetativa, gerando desconfiança e incertezas sobre a mão-de-obra a ser acionada no ano agrícola seguinte.

O mutirão não deve ser entendido estritamente sob o ponto de vista da troca quantitativa de trabalho. Como enfatizam muitos agricultores, o modelo vivido é, antes de qualquer coisa, uma experiência de laços e afetos em movimento no qual pode-se perceber com facilidade o dever (e a expetativa) familiar da cooperação na manutenção de uma unidade de proteção diante de possíveis ameaças do mercado, dos atravessadores, enfim, das instabilidades internas e externas ao córrego. Essa unidade de laços é o cerne dessa noção compartilhada por Juca e os demais sobre a agricultura familiar, na qual não apenas o trabalho em cooperação, mas o fluxo de alimentos, o suporte emocional e as práticas de lazer comunitário, tais como visitas e festas, compõem um quadro moral onde relações e tensões são cotidianamente inscritas.

A tendência ao endógeno nos usos da mão-de-obra e na circulação de riquezas se constitui, idealmente, qualidade e condição para a realização da agricultura familiar no sentido mais tradicionalmente colocado. Mas, nos últimos anos, o que era extraordinário vem se tornando mais comum no córrego. A frequência pela qual famílias com um pouco mais de recursos do que as outras passaram a contratar trabalhadores externos para atuar na apanha (companheiros) aumentou. Inês, por exemplo, chamou algumas vezes um meeiro para colher café em seu talhão herdado. Ao final, ela entrega, como pagamento, 40% do produto dessa lavoura. A sua irmã Vera conta, todo o ano, com um companheiro diarista em sua lavoura. Quando indagados, no córrego, todos afirmam a mesma razão: as lavouras cresceram, aumentando, em muito, a carga de trabalho. Como e por que isso vem acontecendo?

Zé Amaro explica que, na maioria dos casos, incluindo o próprio, o acesso aos recursos do Pronaf viabilizou a compra de sementes e insumos para as lavouras como, por exemplo, adubos e ferramentas. Com isso, expandiram-se as lavouras individuais. Segundo ele, tão maiores são as lavouras, maior será a carga de trabalho a ser empregada. Esse aumento generalizado das lavouras individuais teria sido realizado com pouco planejamento: um crescimento que não teria considerado a quantidade de mão-de-obra disponível, em particular, nas unidades familiares e, no geral, no córrego.

Neusa e Gil tiveram suas vidas impactadas por essas mudanças. O casal foi um daqueles que se mudaram para o córrego recentemente. Antes, foram moradores de meia em três fazendas diferentes. Nos três anos que antecederam 2017, investiram dinheiro do Pronaf na ampliação de suas lavouras de café no córrego. O casal que costumava ajudar, especialmente, no sítio de Juca e Inês (irmã de Neusa), interrompeu a prática anual para concentrar exclusivamente em suas lavouras próprias. Eles possuem apenas uma filha, que aos 15 anos de idade dedicava-se mais à escola do que às atividades dentro do sítio. A cada ano, segundo Neusa e Gil, o trabalho aumenta sob os temores de não conseguirem completar a colheita do café. Eles sabem que, quando colhidos fora da época, os grãos perdem a qualidade, sendo vendidos por preços muito inferiores no mercado. Parte pode até ser perdida integralmente. Além de prover manutenção da sobrevivência material da família ao longo do ano, parte da renda do café ainda deverá ser mobilizada para o pagamento da dívida do Pronaf contraída para a expansão da lavoura, como demonstrei em outro artigo (Alcântara 2020).

Em meio aos desafios colocados por essas mudanças, entre o tempo dos mutirões e o aumento das lavouras, entram em cena as máquinas agrícolas. Em muito propiciadas pelo acesso aos recursos do Pronaf Mais Alimentos, as máquinas passaram a figurar e significar uma possibilidade concreta no desenvolvimento da gestão do trabalho nos sítios, no mesmo momento em que vão se tornando, progressivamente, objeto de consumo da maioria dos agricultores do córrego, sobretudo dos mais jovens, que enxergam nesses artefatos tecnológicos uma possibilidade concreta de tornar a produção mais “moderna”, tomando distância daquela imagem do meeiro e do morador de meia despossuídos de sua produção e submetidos aos patrões.

Em poucos anos, em especial, a partir de 2010, a paisagem do córrego foi sendo cada vez mais composta, material e imaterialmente, pelas máquinas: desde a cena comum de um agricultor subindo a lavoura com uma colheitadeira/roçadeira nos ombros, até os roncos de motores ressoando pelo vale. As máquinas passaram a penetrar, de maneira formal e substantiva, os hábitos e relações, interferindo não somente nas formas de trabalho, mas nos modos pelos quais os valores da comunidade são lidos e conduzidos, concedendo, em sua maior parte, uma imagem positiva sobre a vida e a economia no córrego.

Juca e o cunhado Tadeu foram os primeiros a comprar colheitadeiras de café, chamadas também de “mãos”, por serem portáteis e possuírem garras que se assemelham aos dedos de uma mão humana. Com o Pronaf, em especial, o “Mais Alimentos”, Vitorino e os filhos adquiriram, além de colheitadeiras/roçadeiras, um tratorito pensado para ajudá-los na preparação da terra. Igualmente, sopradores usados para limpar os grãos de café após colhidos também se tornaram artefatos comuns no córrego.

Os chamados “secadores de café” substituiriam, parcial ou totalmente, os métodos de secagem de grãos baseados no espalhamento em terreiros à espera de sol e calor (figura 2). Se antes deviam vigilância constante aos grãos, “mexendo-os”, “virando-os” constantemente com o intuito de obterem uma secagem homogênea no tempo, agora, com o secador, os agricultores poderão secar o café com a ajuda de fornalhas que sopram vapor quente em direção à caixa que armazena os grãos (investimento mais barato) ou em direção ao cilindro em rotação (investimento mais caro - figura 3).

Fonte: Arquivo do pesquisador, agosto de 2017

Figura 2 Método manual de secagem dos grãos de café  

Fonte: Arquivo do pesquisador, janeiro de 2016

Figura 3 Secador de café  

Os usos de máquinas são observados pelos agricultores a partir de três potenciais benefícios: (1) abreviação da carga e do tempo de trabalho num contexto de expansão das lavouras individuais e redução do número da mão-de-obra interna às unidades familiares; (2) melhora na qualidade da produção e, consequentemente, dos preços dados pelos atravessadores ao café; e (3) a reputação de quem as detém.

Alípio tem pouco mais de 20 anos de idade e é casado com Mariana, filha de Juca e Inês. Ele acredita que as máquinas vieram para mudar radicalmente as formas de trabalho. Para ele, os artefatos abreviam e aliviam o volume grande de trabalho dentro e fora das lavouras, entre outros, liberando tempo para que os agricultores possam frequentar mais a cidade. Ao descer para a rua, poderão conhecer e negociar com um número maior de atravessadores, aumentando margens para negociações melhores. Desse modo, ampliar-se-ia o tempo para a participação em festas, bares, desfrutando mais da companhia de amigos e da família. Juca, mais velho e mais experiente, complementa o genro, alertando que esse tempo poderá ser usado também para diversificar a produção dos sítios, com o intuito de relativizar a dependência total do café. Zé Amaro, por exemplo, iniciou a produção de melado feito com a cana caiana cultivada em seu sítio.

O uso de máquinas poderá também, em determinados casos, melhorar a qualidade do café produzido. Em 2015, por meio de reservas suas e de seu pai, Juca adquiriu um secador giratório. Com o uso da máquina, a sua família obteve, como resultado, sacas com grãos mais homogêneos, com maior redução da parcela avariada (grãos quebrados, verdes ou fermentados). Com uma amostra bem avaliada pelo atravessador/comprador, o café passou a receber um preço mais elevado no mercado.

Dos usos do secador, até o preço oferecido por um atravessador, o processo não é entendido necessariamente por meio de um nexo causal objetivo entre o trabalho com máquina e a qualidade final dos grãos de café. A compra da máquina implica também uma espécie de sinal e atestado de qualidade da produção que, segundo o agricultor que a adquire, é capaz de motivar um atravessador, antes mesmo dos atos de avaliação em si, a valorar monetariamente melhor a amostra de grãos submetida à análise. De certo modo, é uma defesa que Juca e Tadeu possuem contra esse mercado percebido como plano onde o agricultor familiar é lesado, onde os preços oferecidos pelos atravessadores são, geralmente, tidos como injustos.

Possuir uma máquina como um secador de café, portanto, além de afetar concretamente as práticas e temporalidades do trabalho dentro dos sítios, é uma forma de construir e exibir, para si e para os outros, a reputação da produção familiar de café. A exibição de uma máquina, para atravessadores e para parentes, pode expressar prosperidade, uma evidência material com potencial de provar que a família que a detém é remediada, ou seja, que possui fundos para investir na infraestrutura da produção, sem que isso prejudique a manutenção da sobrevivência da unidade doméstica. A existência da máquina pode sinalizar que a produção naquele sítio é realmente levada a sério, em especial se tratando daquelas famílias que há pouco conquistaram uma produção própria. Entre os homens mais jovens, as máquinas são também pretextos para longas conversas que envolvem os seus funcionamentos, suas peças, marcas, preços e manutenções eventuais.

Porém não se trata de processos lineares e tampouco homogêneos. São antes mudanças percebidas também entre problemas e tensões a serem consideradas, por alguns, de forma crítica. São três os principais aspetos assim observados pelos agricultores e as agricultoras: (1) os possíveis danos causados à lavoura; (2) os acidentes sofridos; e (3) as despesas financeiras causadas. A ordem dessas questões segue a sequência, no tempo, de seus surgimentos nos debates locais, entre as percepções mais imediatas e sensíveis, até às instâncias mais íntimas da gestão da vida doméstica, produto processual e comparativo de experiências no tempo.

O uso de colheitadeiras, por exemplo, pode causar danos às plantas mais novas. Isso porque ( é consenso no córrego ( as máquinas não possuem a diligência, o cuidado e o discernimento próprio à consciência e à prática humana. A máquina, sempre “cega”, decepa um broto sem saber que é broto, diz Zé Amaro. Mesmo no comando humano, ela não possui controle de frequências e intensidades. Como parte considerável das lavouras no córrego eram novas ao tempo da pesquisa de campo, o receio se constituía em torno de possíveis perdas de investimentos realizados.(figura 4)

Fonte: Arquivo do pesquisador, julho de 2017

Figura 4 Agricultor operando uma colheitadeira em sua lavoura particular  

As perdas podem ser ainda maiores, diz Vitorino ao relatar um acidente que sofrera ao manusear uma motosserra para o corte de vegetação na lavoura. O ferimento em uma das pernas o impediu de trabalhar dali em diante, deixando a produção de café no comando de seus dois filhos. Casos como o de Vitorino, no modo como pensam meus interlocutores, podem acontecer a qualquer momento no córrego, tirando um trabalhador da ativa, ampliando o temor sobre a redução da mão-de-obra disponível quando as lavouras crescem, demandando maior carga de trabalho.

Com isso, Vitorino, sem plano de saúde, reclama dos gastos que teve com hospital e medicamentos. Como essa, outras despesas colaterais surgem no cotidiano das famílias em relação aos usos das máquinas. Com o tempo de manuseio, muitos agricultores constatam que os seus usos demandam empenhos financeiros na manutenção, substituição de peças e, claro, na compra de combustível necessário para o funcionamento. Esse conjunto faz com que as máquinas se tornem, para além dos momentos da compra, um desafio financeiro ( às vezes não esperado/planejado ( constante para as famílias do córrego. Rosário diz que a máquina é como uma “boca a mais a ser sustentada” na família, em alusão às despesas diárias que cria.

Ao constatarem essas despesas, até então não comuns na gestão das finanças domésticas, os agricultores e as agricultoras buscam por soluções. Juca e Inês, por exemplo, começaram a alugar o secador de café, como um improviso ou mesmo uma tática econômica que serve como indício relevante na percepção concreta de mudanças na vida local. Alguns agricultores, de dentro e de fora do córrego, traziam parte do café colhido para secarem na máquina adquirida pelo casal, devendo pagar um valor em dinheiro por dia de uso. Vitorino usou o secador dos cunhados, porém passou a contestar o preço cobrado. Para ele, opondo a pessoa econômica da pessoa moral, não se deveria cobrar de parente do córrego. Juca e Inês justificam o valor cobrado aos parentes equiparando-o exatamente ao que a máquina consome em energia elétrica. Assim, Vitorino estaria pagando apenas por esse consumo enquanto Juca e Inês não estariam lucrando com a prática.

As máquinas se tornaram uma realidade no córrego em meio a um processo de expansão das lavouras individuais e aumento das demandas de trabalho. Dizem, sobretudo os mais velhos, pais e avós, que o ‘vozerio’ dos mutirões, a ‘cantoria alegre’ vem sendo substituída, progressivamente, pelo ronco solitário das máquinas esparsas no interior das lavouras. Por meio dos ruídos, o trabalho na lavoura é monitorado desde as casas e terreiros. Diante dessa paisagem, mais do que as dimensões mais concretas presentes nessa mudança, Inês relata a imagem de um córrego onde, no tempo, cada vez mais, “é cada um na sua”.

Maquinações

“no sono rancoroso dos minérios,

dá volta ao mundo e torna a se engolfar

na estranha ordem geométrica de tudo”

Carlos Drummond de Andrade

No aproximar da última fase do trabalho de campo, em julho de 2017, três constatações entre os agricultores e as agricultoras se entrelaçavam, de modo a indicar, analiticamente, um horizonte: o aumento expressivo das lavouras individuais; a chegada e a intensificação nos usos de máquinas agrícolas; e o enfraquecimento dos mutirões. Diante dos usos locais do Pronaf, a compra de máquinas é concomitante ao investimento na expansão das lavouras. Esse debate foi abordado, principalmente, por Juca, Alípio, Inês, Vera, Vitorino, Mecão e Zé Amaro, agricultores pais, filhos e genros.

De partida, poderia ser esperado, por nós, que, com os usos mais intensos das máquinas e a possível abreviação dos esforços e tempos do trabalho (redução da autoexploração), haveria um revigoramento dos mutirões. Como no passado narrado pelos agricultores, uma parcela de tempo ocioso nos sítios levaria um parente a ajudar o outro, trocando os dias. No entanto, eles compreendem que o tempo percebido com os usos da máquina no presente tem uma natureza diferente daquele dos mutirões: “os tempos são outros”, diz Juca. Essa diferença é crucial para o processo que vem ocorrendo e que faz com que Inês entenda que agora “é cada um na sua”.

Alípio, ao invés de usar o “alívio” no trabalho causado pelas máquinas para descansar ou atuar em lavouras de parentes, prefere esforçar-se nas atividades de negociação que envolvem desde o acesso ao conhecimento sobre as diferentes qualidades e classificações dadas ao café no mercado, até ao desenvolvimento de relações com atravessadores de Espera Feliz e de municípios vizinhos. Mais ainda, ele concorda com Mecão e Vitorino sobre a necessidade contínua de usar o tempo na ampliação e melhoria das lavouras. A prioridade, segundo eles, é o aumento da produtividade nos sítios, a qual é concretamente concebida não somente na expansão espacial das lavouras, mas na realização de investimentos em infraestruturas da produção: aquisição de máquinas agrícolas, construção de novas tulhas, de estufas para otimizar a secagem do café naqueles sítios onde ainda não se possui um secador. A compra de motos também entra nesses cálculos sendo justificadas por favorecer mobilidades entre a zona rural e as cidades.10

Diante desse cenário, cada unidade familiar do córrego faz a gestão individual do trabalho interno, isto é, se autorregula. Se, como dizem, já existia agricultura familiar antes do acesso ao crédito subsidiado, defendem também a transformação desse modelo em favor de um modelo de negócios, onde cada sítio seria uma unidade de produção autônoma. Os agricultores sustentam a imagem de um agricultor familiar cada vez mais participante do mercado, que “sabe usar a cabeça”, como diz Alípio, assumindo riscos, sem receio de tomar crédito, de manusear máquinas, de acessar informações na Internet, e de negociar diretamente com atravessadores. Para eles, a agricultura familiar não deve mais ser pensada ingenuamente como prática desconexa de contextos urbanos, no todo artesanal e baseada na cooperação e no comércio vicinal.

No âmbito da organização do trabalho, é importante considerar que agricultores e agricultoras mais jovens passam a alterar o eixo de gravitação do sentido da agricultura familiar. Se antes concebiam como central a qualidade coletiva do trabalho (familiar), hoje parece ser crucial o ideal do agricultor bem informado, que moderniza suas estruturas de produção, mais próximo do ideal/imagem “urbano”, frequentador da rua, entre trocas de informações, negociações e operações financeiras nos bancos e cooperativas, portanto, distantes daquele habitus camponês, “matuto”, “bobo” e “isolado”, como dizem e como explicou Bourdieu (2008) em Béarn, no interior da França. Em articulação com a tendência de individualização ao trabalho na lavoura, esses agricultores ampliam seus círculos de relações para além da família, obtendo interações, por exemplo, com atores do mercado de café e comerciantes da cidade.

No geral, os efeitos desse processo de individualização da produção e a emergência de novas práticas, concepções e significados sobre o meio rural no Caparaó cafeeiro são cotidianamente percebidos e analisados pelos agricultores do córrego. Nesse sentido, percebem algo próximo ao que Callon (1998) caracteriza como um processo no qual não somente os meios e modos de trabalho, mas os comportamentos e as relações passam a ser pensadas a partir de uma ótica intensamente “econômica”, no sentido do mercado capitalista. Em especial, os mais jovens expressam a necessidade cotidiana de se ajustarem a uma ideia de cálculo baseada no modelo da economia neoclássica como, por exemplo, a dessolidarização e a competição em favor da perseguição de lucro progressivo. Movidos por uma ideia de “mérito” e “esforço” pessoal, procuram cotidianamente reajustes da autoexploração para acompanharem os padrões do “mercado”.

Em uma conversa entre três jovens agricultores, ao fim do período de apanha, questionei sobre a competição entre os agricultores familiares. Eles disseram ser algo inevitável, pois seria natural que cada um em seu sítio procure desenvolver a própria produção a fim de torná-la diferenciada das demais. Esse fator, em comparação com os outros, fará com que os atravessadores, representando o mercado, deem um preço melhor ao café.11 Uma retomada dos mutirões, segundo eles, iria em contramão dessas tendências que acabam por estimular a gestão individual da produção nos sítios, não somente no tempo do trabalho, mas nos significados dados a esse tempo em relação com processos mais amplos, como o mercado. Algumas mulheres enxergam o processo como um aumento da “solidão” nas lavouras o que teria favorecido um aumento dos casos de depressão associados ao consumo excessivo de cachaça entre homens que trabalham sozinhos, por muitas horas, nas lavouras.

Nesse contexto de individualização da produção, de solidão do trabalho e de competição crescente, há uma economia das informações que circulam. Em geral, as agricultoras e os agricultores agem de forma cautelosa, tentando, cada vez mais, manter alguma discrição sobre os processos que usam na produção do café: as estratégias de gestão da lavoura, as tecnologias empregadas e as formas de negociação experimentadas. Juca, por exemplo, não se sente à vontade em revelar o montante de café colhido e estocado, justificando a escolha no temor da inveja e dos furtos. Vitorino, por sua vez, não costuma mais revelar o preço que determinado atravessador deu a seu café. A crescente competição, enquanto aspecto constitutivo das relações no presente, reconfigura, portanto, os modos de viver no/o córrego enquanto comunidade moral baseada, entre outros, no mapeamento e intercâmbio de informações e conhecimentos. Mais do que causadas mecanicamente em relação ao acesso ao crédito subsidiado, essas mudanças compõem um cenário mais abrangente de reconfiguração do mundo rural segundo os mais jovens que, num curto espaço de tempo, passou a significar os mutirões como práticas obsoletas e a produção individual e autônoma como modelo de negócio.

Apesar de, em nenhum momento, a casa e o sítio perderem entre as agricultoras e os agricultores o sentido primordial de unidade de laços familiares, íntimos, de cooperação e de proteção mútua, esses espaços vão se tornando também o lugar da acumulação, da gestão dos negócios e dos lucros, fazendo borrar as fronteiras entre aquilo que seria a “casa” e uma “empresa”, no sentido dado pela economia clássica. Em busca de prosperidade e na crença no projeto de agricultura familiar, os agricultores e as agricultoras do Caparaó cafeeiro - semelhante ao analisado por Mayer entre camponeses andinos (2002: 317) - estabeleceriam, mesmo que por semelhanças pontuais, seus sítios como versões rurais de empresas, dependentes cada vez mais do capital internacional do mercado. Dobeson (2018) analisou processo semelhante entre pequenos pescadores da Islândia para os quais os negócios de base familiar vão se convertendo, no tempo, em pequenas unidades capitalistas. A dimensão coletiva do trabalho, assim como no Caparaó cafeeiro, passa a dar lugar ao protagonismo do empreendedor individual que deverá lidar com as gramáticas, pressões e dinâmicas instáveis do mercado.

No entanto, a despeito da percepção concreta de mudanças, no Caparaó cafeeiro elas não são necessariamente vistas como incontornáveis ou como um anúncio do “fim do campesinato” (Narotzky 2016). As mudanças vividas junto à expansão do Pronaf no Caparaó cafeeiro, mas inseridas também num processo maior de mudanças nas formas de pensar a produção rural na agricultura familiar, demostram a perda do protagonismo dos mutirões, mas, simultaneamente, apresentam uma ampliação nos círculos de relações dos agricultores e das agricultoras. Isto é, nos domínios da lavoura o trabalho tem se atomizado, mas nos espaços de negociação do café novas relações vêm sendo tecidas. Localmente, sabem, por exemplo, que a qualquer momento um mutirão não está totalmente fora de cogitação, apontando para o fato de que não percebem essas mudanças de maneira homogênea e linear.

Na análise dessas pessoas, sobretudo dos mais jovens, há um constante desafio às constatações unívocas sobre seus destinos e, em especial, ao fim do campesinato familiar ameaçado pelos contatos com o mercado. Woortmann (1990: 26) percebeu isso ao pensar o assalariamento de pequenos sitiantes. Assim como no Caparaó cafeeiro, a qualidade familiar do trabalho não é vista sob ameaças quando novos atores e recursos entram em cena. Antes, entendem os investimentos nas lavouras, a individualização da produção, a tomada de crédito e a participação no mercado como recursos possíveis para que a própria agricultura familiar se realize enquanto valor e não apenas como produção de caracterização doméstica. Isto é, ao mesmo tempo que concebem a agricultura familiar como um conjunto de modos previamente estabelecidos, ela será também a razão para novos projetos.

Considerações finais

Na América Latina e no Brasil, um campesinato baseado na mão-de-obra familiar, caracterizado pela constante transformação e sobrevivência em condições não favoráveis, é também um grupo constituído por uma ampla diversidade (Garcia Jr. e Heredia 2009) que, mesmo obliterada pelo protagonismo do agronegócio nas narrativas hegemônicas próprias aos chamados grandes processos sociais, possui papel relevante na formação cultural e econômica dos países. No Brasil, algumas evidências podem ser identificadas na emergência, com maior intensidade nas duas últimas décadas, da agricultura familiar enquanto movimento sindical e pauta para promoção de políticas públicas (Picolotto 2011).

Como provam as agricultoras e os agricultores com os quais vivi entre 2016 e 2018, a economia de mercado não diz respeito exclusivamente aos detentores do grande capital. Trata-se de pensar os agentes ( “beneficiários” de uma política pública ( não apenas como produtos desses processos mais abrangentes, mas, em especial, como agências que também interferem na produção nesses processos por meio de valores, cálculos, racionalidades e moralidades. Essas mediações entre as esferas micro e macro de existências entranham nas vidas das pessoas, caracterizando seus modos e metodologias de usar, de fazer e de pensar alternativas, escolhas e relações em direção a futuros imaginados como mais prósperos. Como bem lembrou Marras (2019), em resenha ao livro de Wisnik sobre as relações entre a poesia de Drummond e o “mundo” capitalista incidental na Itabira mineral: “se o capitalismo nos transcende é porque ele é feito na nossa imanência mais cotidiana”.

Tal constatação reforça o argumento geral ora traçado de que toda a forma de intervenção externa ( como uma política pública baseada na transferência condicionada de renda por meio de crédito subsidiado ou as próprias injunções do mercado capitalista ( será sempre confrontada com um repertório de práticas e saberes locais. A realização dessas intervenções, como demonstrado junto aos agricultores e às agricultoras do córrego, terá, com efeito, a marca determinante de seus executores, os quais irão, ao mesmo tempo, se sujeitar e subverter a norma da política pública por meio de suas táticas e astúcias, estas aqui baseadas e expressadas nas (re)configurações das formas e relações de trabalho nas lavouras de café.

Em meio a essas hipóteses, descrevi, num contexto local de expansão do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), algumas mudanças que vêm sendo vividas e pensadas por pequenos sitiantes moradores de uma comunidade rural do município de Espera Feliz, na região do Caparaó mineiro no sentido dos regimes e práticas de trabalho cotidianas. Tais mudanças podem ser associadas direta e/ou indiretamente aos efeitos do Pronaf no local, mas também são produtos de processos mais amplos relacionados às reconfigurações da agricultura familiar em relação com a cultura e o mercado, neste caso de café. O próprio advento da política setorial pode ser entendido como instrumento nesse processo político e econômico mais amplo.

Ao abordar os planos do trabalho familiar, percebi junto aos interlocutores a presença e a articulação entre dois aspectos determinantes nesse processo de mudanças: (1) a expansão das lavouras individuais; e (2) o aumento nos usos de máquinas agrícolas. Destaquei, em especial, um processo de individualização da produção nos sítios conduzida em meio às necessidades de modernização e de contato direto e indireto com padrões do mercado do café. Demonstrei que isso possui efeitos concretos na construção qualitativa e quantitativa não apenas do trabalho, mas também das relações sociais dentro e fora da comunidade, levando as agricultoras e os agricultores a elaborarem noções próprias que caracterizam uma agricultura familiar vivida em relação com as práticas econômicas. Com o enfraquecimento do regime dos mutirões, passam a investir na ampliação dos círculos de relações para além da família e dos limites da comunidade moral do córrego.

Ao realizar essas análises, propus, finalmente, contribuições à interseção entre duas agendas de investigação que vêm se demonstrando altamente relevantes para o pensamento crítico nas ciências sociais, na América Latina e no Brasil: os impactos ( diretos e/ou indiretos ( das políticas públicas baseadas na inclusão financeira nas subjetividades de indivíduos que são direta e/ou indiretamente “beneficiários”, e as práticas econômicas ordinárias mobilizadas em relação ao mercado (capitalista).

A título de nota final, cabe um último destaque. Com o impeachment da presidente eleita Dilma Rousseff em meados de 2016 e a ascensão de um governo de extrema-direita em 2019, cujas estratégias de poder são baseadas na aversão a qualquer agenda de ordem econômica redistributiva e popular, as políticas de fortalecimento da agricultura familiar foram enfraquecidas, tendo muitas de suas instituições sido extintas, como foi com o Ministério do Desenvolvimento Agrário, em 2016, e a suspensão de verbas para o Pronaf, em 2019.

Agradecimentos

O projeto de pesquisa de doutorado do qual este artigo é produto foi financiado pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior do Ministério da Educação do Brasil, entre os anos de 2014 e 2018, e baseado no Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Agradeço ao professor Fernando Rabossi, orientador dessa pesquisa e à leitura e comentários feitos por Jess Reia, Pedro Augusto Francisco, Camilo Salcedo, Daniel Teixeira, Fernanda Caroline, Joyce Drummond, Rosa Vieira e Samantha Gifalli.

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1 No Brasil, a Lei n.° 11.326 de 2006, em recepção à noção da FAO, definiu o “agricultor familiar”, forjando, assim, o seu objeto: como uma agência a participar do mercado ou um “empreendimento” cuja base morfológica é o protagonismo da mão-de-obra familiar. “Art.º 3.º: Para os efeitos desta Lei, considera-se agricultor familiar e empreendedor familiar rural aquele que pratica atividades no meio rural, atendendo, simultaneamente, aos seguintes requisitos: I - não detenha, a qualquer título, área maior do que 4 (quatro) módulos fiscais; II - utilize predominantemente mão-de-obra da própria família nas atividades econômicas do seu estabelecimento ou empreendimento; III - tenha percentual mínimo da renda familiar originada de atividades econômicas do seu estabelecimento ou empreendimento, na forma definida pelo Poder Executivo”.

2O Pronaf não seria classificado como estritamente uma política pública de transferência condicionada de renda. Entretanto, como parte de um programa nacional mais amplo de combate à fome e de geração de renda às classes populares conduzido pelo governo do Partido dos Trabalhadores (2003-2016), é possível compreendê-lo enquanto inscrito num projeto mais amplo que veio a conjugar a transferência condicionada de renda, inclusão financeira e aumento da produtividade.

3Foram criadas, categorias específicas de classificação de acordo com a heterogeneidade das formas familiares de produção e de capitalização. Surgiram, assim, a partir de 1997, os grupos A, B, C e D, e o Pronaf custeio (“Pronafinho”). Na sequência vieram, entre outros, o “Pronaf Mulher” (2003), “Pronaf Jovem” (2003), “Pronaf Agroecologia” (2003), e “Pronaf Mais Alimentos” (2008). Houve também uma unificação dos grupos C, D e E em “agricultores familiares” (2008), visando diferentes valores com taxas de juros anuais diferenciadas (Grisa 2012: 144).

4Simultaneamente, o Programa Nacional de Crédito Fundiário (PNCF) e o Programa Nacional de Habitação de Rural (PNHR) passaram a promover a fixação do trabalhador no meio rural com qualidade de vida, facilitando, respetivamente, o acesso a terras e a construção de moradias a agricultores despossuídos. O Programa Nacional de Crédito Fundiário (PNCF) foi uma política criada em 2003 e situada dentro de um programa mais amplo voltado à promoção gradual de reforma agrária. A política tinha como objetivo viabilizar aos trabalhadores rurais sem terra ou com pouca terra, comprar e estruturar um imóvel rural por meio de financiamento com taxas de juros subsidiadas. O Programa Nacional de Habitação Rural (PNHR) foi criado em 2009 no âmbito do Programa Minha Casa Minha Vida, com o objetivo de viabilizar ao agricultor familiar, trabalhador rural e comunidades tradicionais o acesso à moradia no campo, construindo ou reformando imóveis. No caso abordado nesta pesquisa, além do Pronaf, atestei a presença do PNHR.

5Na América Latina, os chamados programas de transferência condicionada de renda foram abordados etnograficamente partindo dessa hipótese geral. Autoras e autores acreditam que, ao interferirem em percepções sobre a vida, essas intervenções, que partem do Estado, reorganizariam as relações sociais, afetando também as subjetividades de seus beneficiários (Balen e Fotta 2019). No Brasil, em contextos e regiões diferentes, o Programa Fome Zero, tendo destaque para o Bolsa Família, foi assim abordado por Pires (2009), Sorrentino (2011), Morton (2013) e Ansell (2014).

6Moradores de meia é a designação dada àqueles que produzem em terras de proprietários fazendeiros (patrões) em troca de moradia devendo, aos patrões, além de serviços gerais acordados, 60% de tudo o que produzem. Sem participar do regime de moradia, o meeiro trabalha em terras de outrem, sendo pago igualmente com a parcela de 40% da produção específica da lavoura para a qual foi demandado a trabalhar. Os trabalhadores temporários ou avulsos (companheiros) podem trabalhar em dois regimes: (1) cobrando uma diária de trabalho ou (2) recebendo um valor fixo por saca de café colhida (60 litros). Esta última modalidade de trabalho avulso é chamada de balaio.

7Todos os nomes presentes no texto foram alterados com o intuito de resguardar o anonimato dos interlocutores.

8Apesar de se tratar, na sua maioria, de indivíduos conhecidos no local, alguns deles inclusive filhos de pequenos cafeicultores, os atravessadores são vistos com desconfiança por estarem associados às práticas de mercado concebidas como injustas. Em específico, os agricultores entendem os atravessadores como representantes imediatos dos baixos preços dados ao café, encarnando tanto a exploração praticada pelas empresas compradoras locais, quanto pelo mercado de preços mais abrangente.

9Nesse sentido, penso em referência a Ariella Azoulay (2008), para quem fotografia, nunca encerrada num campo visual autônomo, sempre excederá os limites do imediatamente visível, abrangendo os atos que dinamicamente a constituem e a (re)negociam no passado, no presente e no futuro.

10Jovens solteiros desejam circular, cada vez mais, nos espaços de sociabilidade da cidade. Procuram participar de festas e frequentar bares. Em especial, os homens marcam presenças nas competições de motocross, colhendo, naqueles contextos, matéria para longas conversas envolvendo os competidores, suas rivalidades e suas motos, que vão se tornando um objeto do desejo desses jovens da zona rural. Elas proporcionam a mobilidade necessária às práticas de negociação do café, mas também servem como sinais de maturidade, virilidade e da aptidão à participação na sociabilidade urbana. Assim, eles passam a paquerar e a namorar pessoas da cidade.

11Como sugerido anteriormente, isso não quer dizer que os regimes de preços, assim como os atravessadores, as firmas e o próprio mercado do café, no todo, não estejam passíveis de críticas por parte dos agricultores. Pelo contrário, há reações diversas que os fazem atores ativos nos processos de negociação, vindo a alcançar sucesso em algumas ocasiões. O uso das máquinas enquanto forma de elevar a reputação da produção é um dos fatores que colaboram para esse sucesso.

Recebido: 01 de Agosto de 2020; Revisado: 26 de Outubro de 2021; Aceito: 13 de Dezembro de 2021

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