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Etnográfica

versão impressa ISSN 0873-6561

Etnográfica vol.26 no.3 Lisboa dez. 2022  Epub 30-Jan-2023

https://doi.org/10.4000/etnografica.12418 

Introdução

Vida em família: socialidades e violência em multicontextos contemporâneos - Introdução

Miguel Antonio dos Santos Filho 1  , concetualização, curadoria dos dados, análise formal, aquisição e financiamento, investigação, metodologia, administração do projeto, recursos, validação, visualização, redação do rascunho original, redação - revisão e edição
http://orcid.org/0000-0002-7846-2526

Ana Clara Damásio2  , concetualização, curadoria dos dados, análise formal, aquisição e financiamento, investigação, metodologia, administração do projeto, recursos, validação, visualização, redação do rascunho original, redação - revisão e edição
http://orcid.org/0000-0001-7426-7486

1Universidade de Brasília (UnB), Brasil, miguel.antonio1993@gmail.com

2Pós-graduação em Antropologia Social, Universidade de Brasília (UnB), Brasil, anaclarasousadamasio@gmail.com


Violência

O dossiê “Vida em família: socialidades e violência em multicontextos contemporâneos” surge de diálogos entre os organizadores e os autores dos artigos e do ensaio, que reconheceram em seus campos de pesquisa diferentes significações sobre a violência em contextos intrafamiliares, de conjugalidades e de construção de parentesco.1 Violência é uma categoria posta em questão nos trabalhos aqui reunidos. Essa abordagem não pretende invalidar tal ou qual discurso político, ou constranger sujeitos empenhados nas práticas de governo da violência contra mulheres, crianças, idosos ou qualquer outro grupo apontado como vulnerável. Pretendemos, sim, questionar os efeitos semânticos e práticos da nomeação de certos atos e condutas como violências em contextos de elaboração de parentesco e/ou de relações familiares em paisagens sociais contemporâneas e diversas.

Desde nossa perspectiva, a categoria violência exerce uma função qualificadora ou adjetivadora - mesmo em alguns discursos acadêmicos - responsável por produzir realidades substantivas (Rifiotis 2021). Ansiedades expressas em discursos e em práticas de governo (Foucault 1979) que buscam, entre outras coisas, afirmar os direitos dos sujeitos, tendem a essencializar a família como espaço onde se realizam os afetos, o cuidado e a cordialidade (Rifiotis 2021), excluindo narrativamente a possibilidade de que estas sejam, antes, emaranhados compostos por vários outros elementos, dentre eles o uso da força física, atos de coerção e de constrangimento.

A exclusão narrativa e o lugar de ilegitimidade do uso da força física como recurso de manutenção e de construção de sujeitos e de posições podem limitar analiticamente a apreensão das representações e expectativas que se constroem dentro dos universos empíricos que se tentam compreender e governar: as casas, as relações conjugais e familiares. Logo, problematizamos e relativizamos a categoria violência por considerarmos que as nomeações têm efeitos e riscos, principalmente por seu papel estabilizador que fixa e congela sujeitos e relações que se constituem de maneira dinâmica (Gregori 2021).

Tendo isso em vista, identificamos que variados discursos acadêmicos e políticos sobre as relações domésticas, familiares e/ou conjugais constroem expectativas de que o cuidado deveria ser o principal, talvez único, elemento constitutivo para as relações, por sua vez pretendidas como horizontais, igualitárias, reconhecedoras de liberdades, autonomias e direitos intrínsecos. Essa perspectiva desconsidera eventuais pretensões de validade localmente construídas sobre o emprego do uso da força ou dos castigos físicos enquanto elementos de mediação e negociação das dinâmicas entre sujeitos.

Buscamos tematizar que as relações familiares e a convivência doméstica são perpassadas e compostas por diferentes recursos que atuam na construção de sujeitos e de relações, dentre os quais o uso da força ou outros recursos politicamente qualificados como violentos. Ansiedades expressas em discursos e em práticas de governo que buscam, entre outras coisas, afirmar os direitos dos sujeitos, tendem a essencializar “a família”, excluindo narrativamente a possibilidade de que estes sejam, também, emaranhados de vários outros elementos, dentre os quais o uso da força física, atos de coerção e de constrangimento.

O exercício epistemológico aqui desenhado busca compreender, repensar e questionar o lugar das relações violentas na construção de relações familiares e de posições de sujeitos em arranjos domésticos e conjugais. Trata-se de refletir, através de múltiplos contextos etnográficos, sobre o papel agentivo das interações violentas, considerando a maneira como as partes envolvidas as representam. Trata-se, também, de chamar a atenção para o papel produtivo da violência, isto é, sua posição na produção de pessoas e ou relações por meio do papel comunicativo do uso da força, da construção de hierarquias e, entre outras coisas, das concepções sobre autoridade.

Sobre o lugar do dossiê no cenário de estudos de relações familiares e/ou de parentesco

Se nos anos de 1960 os “estudos rurais” (Corrêa 1995) no Brasil contribuíram para a solidificação da Antropologia brasileira, a partir dos anos 70 esse campo alterou-se com a crescente industrialização que ocorria no período, modificando assim a conformação territorial nacional em ampla escala. Contudo, mesmo com a ascensão da pesquisa antropológica na/com a cidade, a família continuou sendo lócus privilegiado de investigação. Isso porque o “estudo da família é o estudo daquele grupo social concreto” (Sarti 1992: 70), ao mesmo tempo que é espaço propício para observar como, cotidianamente, as relações se constroem, se retroalimentam e fazem com que a presença seja constituída (Benjamin 1985). Dessa forma, os artigos e ensaio presentes neste dossiê refletem sobre dinâmicas e interações que muitas vezes escapam ao “modelo ideal” patriarcal e burguês (Fonseca 2000), no qual impera o reconhecimento de direitos individuais, liberdades e igualdade e se repudiam hierarquias e recursos para sua manutenção.

A família pode ser compreendida como constituidora moral a partir das relações de reciprocidades, obrigações e direitos (Mauss 1974 [1923-24]), mas também pelo contato entre parentes de diferentes gerações que agem a partir da coordenação de um indivíduo ou pessoa (DaMatta 1987). Por outro lado, ela não pode ser pensada como um organismo que funciona em harmonia, pois é um complexo lócus regido por regras morais, de etiqueta, valores, conflitos, gerações, gênero, raça, classe (Bilac 2006). Seria impossível alçar a ideia de uma história una da “família brasileira”, pois além de os arranjos familiares serem vastos e plurais (Velho 1987; Duarte 1986), acabaríamos incorrendo no isolamento de outras estruturas familiares (Corrêa 1982).

Exemplar disso é o recente debate no campo de estudos de relações familiares no Brasil sobre as concepções de uma suposta “família tradicional brasileira”, imaginada e projetada em políticas governamentais (Lobo e Cardoso 2021). A representação conservadora 2 sobre família enquanto “núcleo social formado a partir da união entre um homem e uma mulher, por meio de casamento ou união estável” (Brasil 2013), vai de encontro a uma miríade de novos arranjos familiares constituídos no país nas últimas décadas, legitimados, inclusive, por outras políticas públicas e legislações. Lobo e Cardoso (2021), e Facchini e França (2020) ressaltam que o período compreendido entre os anos de 1990 e 2016 (ano do impeachment da presidenta Dilma Roussef) foi caracterizado pela “cidadanização” de minorias políticas que, entre outras coisas, passaram a ser reconhecidas como sujeitos de direitos, sobre os quais as políticas públicas poderiam incidir. A essas pessoas era garantida, inclusive, a possibilidade de ter seus arranjos relacionais reconhecidos enquanto famílias, o que englobava famílias homoafetivas e também monoparentais.

Amparados pela diversidade de estudos empíricos sobre parentesco e relações familiares, entendemos estas últimas como “fábrica[s] de subjetividades” (Machado 2001: 17) que apresentam uma pluralidade de diferentes formas de experimentar a vida. Expressivas dessa pluralidade que perpassa a constituição dos arranjos familiares são as múltiplas formas de organizar pessoas e relações. A abordagem aqui adotada toma rumos distintos de perspectivas, autores e obras que se dedicaram a analisar as relações e interações perpassadas por violências a partir da ótica dos direitos dos sujeitos (Rifiotis 2008, 2014), que enfatizam expectativas sobre padrões comportamentais, de agência, de autonomia (fortemente valorizados por segmentos dos movimentos de mulheres), dos direitos das crianças e adolescentes e dos direitos humanos. Nosso esforço é o de contribuir para a complexificação dos olhares sobre diferentes interações apontadas como violentas enquanto constitutivas em e dos espaços doméstico-familiares.

Discussões de Daniel Simião (2005, 2007, 2015) sobre o contexto leste-timorense nos inspiram a observar os discursos e as práticas construídas sobre os atos de uso da força física para representá-los como violências. A discussão do autor, a partir de sua etnografia em Timor-Leste no início dos anos 2000, sugere a necessidade de um processo de construção discursiva - e também prática - para que determinadas ações, muitas vezes usuais nas interações cotidianas familiares e domésticas, como empurrões, tapas, socos, xingamentos e outras formas de agressão, se tornem “violência doméstica” (Simião 2015). Esse processo, mobilizado sobretudo por elites locais, foi responsável por moralizar, naquele contexto, as práticas de agressão performadas entre a população local.3 Por moralizar entendemos o processo de valoração negativa dos atos de uso da força, dando a eles um tom condenável que deveria - desde a ótica das entidades de governo, ONG e cooperação internacional - ser erradicado.

A desnaturalização da “violência doméstica” enquanto algo que seria percebido e que afetaria a todas as vítimas da mesma maneira, é feita desde os trabalhos de Maria Filomena Gregori (1993). A autora notou as diferentes formas de perceber e lidar com agressões intraconjugais a partir das narrativas de mulheres atendidas por uma ONG feminista em São Paulo, Brasil, já na década de 1980. Gregori demonstrou, primeiramente, a diversidade de percepções acerca do uso da força no ambiente doméstico, para então discutir a polifonia de anseios, expectativas e desejos das mulheres agredidas por seus maridos e companheiros. Em outras palavras, as percepções da equipe da ONG etnografada por Gregori (1993) não correspondiam às expectativas e às formas como mulheres das classes populares enxergavam e significavam as agressões dirigidas contra elas. Ao não se perceberem enquanto vítimas da violência, as mulheres desafiavam discursos que buscavam cristalizar uma representação sobre os atos de uso da força física.

Questionar a maneira como se constroem discursos sobre a violência contra “grupos vulneráveis” é algo já feito a respeito de outras práticas alvo de ressignificações condenatórias. Exemplo disso foi a invenção dos direitos humanos, cujo embrião foi a criação do sentimento de empatia, de identificação de uma natureza comum, por meio da interiorização de subjetividades (Hunt 2009). Era apelando a uma moral que se pretendia hegemônica que se desenvolveram, a partir do século XVIII, esforços narrativos para representar práticas como a escravidão, a tortura e o castigo físico como responsáveis por provocar a repulsa e a consternação coletiva, indicando o absurdo por detrás de tais atitudes, ainda que fossem comuns a diferentes povos (ibid.).

É somente por meio de processos de elaboração valorativa, fundamentados por uma base moral, que comportamentos se tornam inaceitáveis ou, da mesma forma, passam a ser estimulados. Isso aconteceu, por exemplo, com a supressão da belicosidade entre pessoas do grupo Nuer do Sudão (Evans-Pritchard 2013: 163), cujas práticas de guerra foram alvo de controle do governo colonial no início do século XX, e com a proibição das mais diferentes práticas ditas primitivas pela administração colonial nas Américas, na Ásia e em África que combinaram o poder religioso (sobretudo de matriz cristã) ao do Estado (Balandier 1993; Fabian 2013 [1983]). O que é fundamental observar em análises antropológicas - nos parece - é a forma como a qualificação condenatória sobre determinadas práticas sociais se dá, quais os recursos utilizados para tal, como ela é percebida contextualmente e quais as suas potenciais implicações nas vidas dos sujeitos. Parte daí o nosso interesse em relativizar as representações que se pretendem hegemônicas/oficiais sobre violência em contexto intrafamiliar.

Não pretendemos, contudo, traçar arqueologias do conceito de violência. Pretendemos, sim, com cada artigo vinculado a este dossiê, abordar contextualmente as formas de representar, significar e compreender entre os diálogos com nossos interlocutores, as agências daquilo que é acionado como violência. Assim, nos afastamos do sentido de violência como categoria acusatória e de cunho moralizante/moralizador, nos aproximando de uma perspectiva que parte do empírico, das representações locais, dos discursos e práticas daqueles que se envolvem em interações apontadas como violentas para, então, refletir criticamente sobre esse fenômeno e outros aspectos a ele associados.

Apresentamos aqui etnografias realizadas em diferentes países: Brasil (América do Sul), Cabo Verde (noroeste africano) e Timor-Leste (sudeste asiático). Com isso, apesar de as etnografias serem multissituadas, é possível entrever como vida intrafamiliar, violência, relações de poder e uso da força atravessam fronteiras. Também vemos os diferentes papéis de agências de governo para administração da violência, mas também para a administração dos próprios arranjos familiares, demonstrando que a família segue sendo objeto de disputa tanto quanto a própria noção sobre violência e seu tratamento institucional. Os diálogos parecem profícuos.

Sobre as contribuições

Miguel Antonio dos Santos Filho, em “Uma abordagem relacional dos conflitos no contexto de judicialização da violência doméstica em Timor-Leste”, apresenta os processos de institucionalização da violência doméstica e de medidas legais/judiciais para responder e administrar conflitos deste tipo. A partir da caracterização desta categoria, discute que as práticas assim categorizadas podem se apresentar como formas ou instrumentos de comunicar expectativas, posições ou fantasias que os sujeitos criam no interior das relações, ao mesmo tempo que auxiliam na manutenção de posições de sujeitos, para que performem determinados papéis socialmente indicados pelos marcadores de gênero. Essa discussão ajuda a repensar a judicialização dos conflitos de violência doméstica, o que é feito ao retomar um debate sobre a essencialização da posição das mulheres como vítimas nos contextos de agressão interpessoal.

André Justino, em “ ‘Pode bater’: reflexões sobre crianças, cuidados e castigos em Praia, Cabo Verde”, leva os leitores a outro espaço: a escola. O autor se atém aos modos como os castigos são aplicados, apreendidos e resguardados às crianças. A análise ora foca na perspectiva dos adultos, ora em como as crianças percebem os castigos dirigidos a elas. As reflexões que o autor faz sobre este contexto empírico matizam os discursos e representações de mecanismos internacionais sobre o que seriam práticas violentas e cruéis. Ao mesmo tempo, discute-se como os castigos podem ser vistos por outras lentes, mais especificamente como um mecanismo de disciplina de adultos sobre crianças, imersos em relações de cuidado e noções de pessoa que, muitas vezes, não correspondem às perspectivas que se pretendem hegemônicas ou oficiais. O artigo de Justino aponta, também, o compartilhamento amplo da responsabilidade em “cuidar” e “corrigir crianças”, seja pelo acionamento dos professores da escola ou da rede mais ampla de sociabilidade constituída das zonas na cidade de Praia.

Ana Clara Damásio, em “Surras, pisas e coças: práticas familiares de criar pessoas em Canto do Buriti, Piauí, Brasil”, toma cenas cotidianas de relações familiares no interior do Piauí para repensar o conceito e as representações de “práticas violentas”. A autora demonstra que as práticas de uso da força física categorizadas como surras, pisas e coças eram processos corpóreos e corporificadores que estavam atrelados ao curso de vida local, às classificações da periodização da vida e ao gênero. A autora busca entender os modos pelos quais, através das interferências de fisicalidades múltiplas, se acionavam formas para manejar as surras, pisas, coças e, por conseguinte, criar pessoas sem que se representassem tais estratégias como práticas de violência. O artigo potencializa o argumento de que o recurso à força física agencia relações, constitui posições de sujeitos e mobiliza, entre outras coisas, a construção - ou criação - de pessoas dentro de redes de pertencimento.

O ensaio “As idas e vindas da ‘justiça’: as mães e os dilemas da intimação em ações de reconhecimento de paternidade”, de Ranna Correa, acompanha os casos de mulheres intimadas pela justiça do estado de Alagoas, Brasil, para dar início ao processo de reconhecimento de paternidade e de inclusão dos nomes dos pais no registro civil dos filhos. A autora analisa os desdobramentos jurídicos que englobam mães, pais, crianças e justiça, discutindo como a judicialização dos casos atua a partir de expectativas institucionais para que os sujeitos acionados representem um modelo de família idealizado pelo Estado. A discussão da autora revela como as relações de parentesco são imaginadas e projetadas a partir do acesso à “Justiça”, que se ocupa da manutenção e mesmo da construção de um modelo de família que muitas vezes não interessa às próprias mães. Estas últimas passam de sujeitos de direito a “recursos” nos processos, por meio dos quais se pretende acionar a responsabilização dos genitores no registro de paternidade e na pretendida convivência destes com os filhos. É justamente na capitalização das mães enquanto “recursos” para atingir os genitores de seus filhos que se evidencia o caráter violador do Estado por meio de constrangimentos expressos em práticas persecutórias e desiguais em nome da “convivência familiar”.

As discussões dos três artigos e do ensaio se interconectam em um ponto comum: a produção de pessoas e de relações pode ser composta por diferentes mecanismos de constrangimento de atitudes, de práticas e de condutas. Esses mecanismos podem ser acionados nas interações entre parceiros conjugais, entre pais e filhos, entre professores (autorizados pelos pais) e alunos e entre operadores da justiça estatal e mulheres cujos filhos não são reconhecidos pelos pais em seus registros civis. Em todos estes arranjos transitam diferentes elementos que compõem pessoas e suas posições em arranjos familiares, seja na unidade doméstica, seja nos esquemas de gênero ou ainda enquanto projeção de sujeitos de direitos na construção da “cidadania”.

Entendemos que tanto o recurso à força física (surras, pisas, coças, violência doméstica, bater para ensinar as crianças) quanto constrangimentos judiciais (intimações às mães) são tecnologias de posicionamento de pessoas e de construção de relações familiares e de parentesco. Ou seja, essas pessoas e as relações de família e parentesco podem ser forjadas por recursos que não se limitam às idealizações de um modelo cristalizado de família, nuclear, tradicional, pois é constituída e perpassada (a família) pelo uso da força e por mecanismos de governo. Não sendo ambiente(s) harmônico(s) e onde impera(m) o cuidado, o afeto, a igualdade e o reconhecimento de direitos dos sujeitos, como esperariam diferentes agências institucionais, as relações familiares e sua vinculação na produção do parentesco continuam demandando a atualização de debates e pesquisas.

Para estimular reflexões, ressaltamos que certos recursos institucionais, ao privilegiarem um modelo de família nuclear constituído por “pai, mãe e filhos” e lançarem mão de artifícios que constranjam as mães e promovam o reconhecimento paterno legal e a convivência (por vezes forçada) entre pais e filhos, podem ser percebidos por muitas mulheres como uma ofensa moral (Oliveira 2008). Ao evitar a prevalência de configurações familiares monoparentais ou nas quais uma das figuras é ausente, questionamos se, e em que medida, não se trataria de um tipo de violência de Estado.

Como as discussões neste volume indicam, há efeitos, impactos e limites ético-epistemológicos das interferências estatais no reconhecimento parental e na convivência cotidiana. Além disso, as discussões chamam a atenção para os lugares e sentidos que as pessoas dão ao uso da força, coerção e constrangimento em seus próprios termos. Indo além, nosso dossiê visa colaborar para que essa via de discussão - sobre as diferentes possibilidades da violência e do que ela produz (para além de abordagens moralizantes e psicologizantes) em termos de organização familiar e produção do parentesco - se mantenha aberta e atualizada.

Ao nos apoiarmos em abordagens que tomam a etnografia como porta de acesso a percepções locais e como aspecto privilegiado para as discussões, acreditamos poder contribuir para o debate sobre relações familiares e de parentesco, tematizando o papel da violência, considerando os manejos institucionais e discursivos sobre a violência e mesmo sobre família e, no limite, refletindo sobre o agenciamento da violência enquanto aspecto comunicativo e construtivo das e nas relações.

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1Entendemos conjugalidades como relações estabelecidas entre duas pessoas (ou mais) que se comprometem (sexualmente, afetivamente, psicologicamente e/ou materialmente) com a intenção de efetivar uma relação ao longo do tempo.

2Definida nesses termos pelos proponentes do chamado “Estatuto da Família”. A esse respeito conferir Lobo e Cardoso (2021).

3Pesquisas feitas à época indicavam que 86% das mulheres e 80% dos homens do país acreditavam que um homem teria o direito de bater na esposa caso ela negligenciasse tarefas de cuidado com a casa ou com os filhos (Asia Foundation 2012).

Recebido: 08 de Janeiro de 2021; Revisado: 07 de Maio de 2022; Aceito: 02 de Agosto de 2022

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