SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.26 número3Vida em família: socialidades e violência em multicontextos contemporâneos - Introdução“Pode bater”: reflexões sobre crianças, cuidados e castigos em Praia, Cabo Verde índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Etnográfica

versão impressa ISSN 0873-6561

Etnográfica vol.26 no.3 Lisboa dez. 2022  Epub 30-Jan-2023

https://doi.org/10.4000/etnografica.12438 

Artigo Original

Uma abordagem relacional dos conflitos no contexto de judicialização da violência doméstica em Timor-Leste

A relational approach of conflicts in the context of judicialization of domestic violence in East-Timor

Miguel Antonio dos Santos Filho 1  , Concetualização, Curadoria dos dados, Análise formal, Aquisição de financiamento, Investigação, Metodologia, Administração do projeto, Recursos, Validação, Visualização, Redação do rascunho original, Redação - revisão e edição
http://orcid.org/0000-0002-7846-2526

1Universidade de Brasília, Brasil, miguel.antonio1993@gmail.com


Resumo

Este artigo aborda o contexto de judicialização da violência doméstica em Timor-Leste, discutindo sobre a vitimação e sobre a individualização destes conflitos. Etnografando práticas institucionais de cuidado com mulheres acolhidas em uma Casa Abrigo, reflito sobre suas trajetórias frente aos discursos e práticas de uma ONG local, recorrendo à literatura etnográfica brasileira para reflexões pontuais. Argumento que as análises sobre conflitos deste tipo podem ser potencializadas se considerarmos sua configuração relacional e o aspecto comunicacional do uso da força, sobretudo seu papel na (re)produção de representações e fantasias generificadas dos sujeitos.

Palavras-chave: violência doméstica; judicialização; vitimização; conjugalidade; fantasias

Abstract

This article addresses the judicialization of domestic violence in East-Timor, discussing the victimization and individualization of these conflicts which emerge in relational contexts. On an ethnographical approach of institutional care practices with women sheltered, I reflect on their trajectories facing the discourses and practices of a local NGO, resorting to the literature of Brazilian anthropology. My argument is that domestic violence can be better understood both critically and analytically if we consider the communicational aspect of physical power in the (re)production of engendered representations of subjects and their social fantasies.

Keywords : domestic violence; judicialization; victimization; conjugalities; fantasies

Considerações iniciais

Abordagens1 sobre a violência doméstica2 têm figurado como preocupação político-social global e de análise nas ciências sociais desde, pelo menos, a década de 1960, quando a temática do gênero ganhou fôlego, encampando que as agressões contra as mulheres, ocorridas nas relações familiares, estariam intimamente relacionadas a tal marcador social (Barsted 2016). Adoto uma perspectiva que compreende a categoria violência doméstica como um construto moralmente significado, isto é, como a nomeação de uma configuração conflituosa que pode incluir o uso da força física dentro de relações domésticas, familiares e/ou conjugais, sobre a qual tem recaído uma adjetivação que é, frequentemente, condenatória e acusatória, especialmente por agentes, coletivos e instituições que se pautam por valores e anseios igualitários e horizontais para as relações de gênero (Simião 2015a).

A significação da violência doméstica enquanto ofensa moral (Oliveira 2008; Simião 2015a) tem implicado, entre outras coisas, em demandas por punições que regulem as condutas consideradas violentas e violadoras, buscando ao mesmo tempo proteger e reparar os direitos dos sujeitos atingidos. Assim, têm recaído sobre os sistemas judiciários expectativas de amparo e reparação institucional (Simião 2015b; Rifiotis 2017, 2021), o que tem sido categorizado como judicialização da “violência de gênero” (Rifiotis 2008, 2014, 2021; Simião e Oliveira 2016).

Ao problematizar a judicialização percebe-se que não se trata apenas da eleição política das instituições judiciais para a administração dos conflitos (Rifiotis 2014). A judicialização pode ser entendida como matriz para a compreensão da ampliação do Direito na significação de disputas sociais (Rifiotis 2021) e de seus efeitos em processos de subjetivação (Santos Filho 2019a). Rifiotis (2021) tem sugerido que a judicialização dos conflitos, especialmente os de “violência de gênero”, pode ser pensada como uma alavanca para as demandas de atores sociais e políticos, objetivando ganhos jurídicos, além de uma arena na qual irrompem diversas disputas, dentre as quais aquelas que versam sobre a sua (in)adequação para a garantia de direitos e seu papel na limitação das agências dos sujeitos tutelados (Rifiotis 2014).

Se, por um lado, foram e permanecem crescentes as demandas e as pressões de movimentos de mulheres para que instrumentos legais criminalizem e penalizem o uso da força no âmbito das conjugalidades, as análises críticas têm indicado, por outro, os limites e os desafios da judicialização dos conflitos de violência doméstica e suas implicações na vida das mulheres que são ora congeladas no papel de vítima, ora atingidas pelo funcionamento persecutório das instituições judiciais (Pasinato 2010; Rifiotis 2008, 2014; Matias 2015; Medeiros 2015; Santos Filho 2017; Gregori 2021a, 2021b). Nesse sentido, ao estranhar o lugar político da judicialização e ao observar, etnograficamente, o funcionamento das instâncias e instrumentos judiciais no governo da violência doméstica, dois tópicos emergem: o primeiro trata da vitimação feminina e o segundo, em decorrência do primeiro, trata da individualização (ou atomização) dos conflitos e das partes que os compõem, desconsiderando o aspecto relacional nessa complexa equação.

Por vitimação entende-se a representação das mulheres como passivas nessas relações, sem agência e subalternizadas (Gregori 1993, 2021a). A vitimação extrapola o sentido de “tornar-se alvo” de agressões, localizando as mulheres no plano discursivo-representacional em uma posição de ausência de potencial agentivo. Surgem daí esforços institucionais que tratam as atingidas pela violência doméstica como subjugadas ou hipossuficientes (Rifiotis 2008, 2014; Pasinato 2010). Trata-se do processo de construção ideológica (Dumont 1985) que fixa mulheres em um polo passivo, enquanto os homens ocupam o polo ativo nas relações (Gregori 2021a). A vitimação sugere, então, uma abordagem de administração dos conflitos que é individualizada ou atomizada, pois se centra em estratégias que tomam os sujeitos como partes estanques: vítima e algoz. Isso traz desafios particulares, uma vez que os conflitos que se tenta administrar têm composição relacional (Gregori 1993, 2021a, 2021b).

Discuto neste artigo que as representações sobre vitimação, feitas pelos agentes institucionais que cobram e executam a judicialização da violência doméstica, podem não encontrar lugar nas experiências narradas pelas mulheres atendidas nos serviços de acolhimento e atenção, evidenciando a desconsideração sistemática do aspecto relacional dos conflitos. Argumento que ao se desconsiderar o aspecto relacional, seja no campo das políticas públicas, seja nas abordagens acadêmicas, deixa-se de refletir sobre o aspecto comunicacional do uso da força, o qual parece potente para a compreensão sobre outros elementos das relações de gênero, de configuração das conjugalidades e, entre outras coisas, de projeções sobre si e sobre relações de poder. Tal abordagem parece frutífera, pois (re)questiona e (re)discute os mecanismos que compõem e que estruturam as relações indicadas como violentas.

Para a construção dos argumentos me apoio em uma etnografia realizada em Timor-Leste, país do sudeste asiático localizado entre a Indonésia e a Austrália e de recente restauração da independência (Silva 2012). Entre 2015 e 2016, em Timor-Leste, acompanhei a rotina de uma organização não governamental (ONG) e suas interações com agentes estatais (do poder executivo e do judiciário) e com mulheres atendidas por seus serviços de acolhimento psicossocial, abrigo e orientação jurídica. Para refletir sobre as experiências e eventos transcorridos em Timor-Leste, traço breves paralelos com o contexto brasileiro de adoção e de aplicação da Lei n.º 11.340/06, sem compor uma densa comparação, algo realizado em outro trabalho (Santos Filho 2019a). Mesmo com nuances particulares, graças à diversidade sociocultural e histórica dos dois países, a abordagem é pertinente, pois a aposta política na judicialização tem demonstrado desafios aos ideais de promoção dos direitos das mulheres nos dois países, algo que a literatura já vem identificando há algum tempo no contexto brasileiro (Rifiotis 2008; Medeiros 2015; Simião e Oliveira 2016; Debert e Perrone 2021), mas que é incipiente em Timor-Leste. Para além disso, essa abordagem potencializa a compreensão de que o aspecto relacional da violência doméstica é tão transnacional quanto o fenômeno da judicialização, alertando para a necessidade de observá-los conjuntamente.

O texto está dividido em cinco secções (além destas considerações iniciais). Na primeira apresento as demandas pela judicialização da violência doméstica em Timor-Leste. Na segunda secção apresento o contexto etnográfico de práticas institucionais e os discursos que atomizam as mulheres, seus direitos e seu envolvimento nos conflitos. Na terceira, apresento as trajetórias de mulheres atendidas por serviços de atenção às vítimas, indicando como suas experiências se adequam pouco às representações feitas nos discursos institucionais. A quarta secção discute os limites e desafios da vitimação e da atomização dos conflitos que têm caráter relacional, colhendo elementos da literatura etnográfica brasileira sobre os conflitos doméstico-conjugais. Nas considerações finais, quinta e última secção, reflito sobre o papel comunicativo do uso da força física para a (re)produção das assimetrias de gênero em relações doméstico-conjugais enquanto elemento assentado em expectativas e projeções sobre si e sobre o outro com quem se relaciona.

A judicialização da violência doméstica em Timor-Leste e as práticas institucionais na Fokupers

A adoção das estratégias judiciais de administração da violência doméstica em diferentes contextos nacionais tem se apoiado significativamente em demandas por reconhecimento (Oliveira 2008). Neste sentido, o principal pleito é por um tratamento condizente às especificidades da “violência de gênero” (Debert 2006; Rifiotis 2017, 2021; Santos Filho 2019a).

Demandas deste tipo foram postas, no Brasil, desde a década de 1980, antes mesmo da criação da primeira delegacia de defesa da mulher - DDM em São Paulo (Debert 2006; Debert e Perrone 2021). Com a instituição dos juizados especiais criminais - JECrim (por meio da Lei n.º 9099/1995) o tratamento dado às requerentes despertava contrariedade nos movimentos de mulheres, uma vez que as agressões eram tratadas sob a ótica conciliatória, imputando aos arguidos - usualmente - penas pecuniárias ou a prestação de serviços à comunidade (Debert 2006; Debert e Oliveira 2007; PasinatoIsso avivou demandas pelo reconhecimento de que os casos necessitavam de um tratamento mais rígido para reequilibrar as assimetrias de poder nas relações (Debert e Oliveira 2007), o que levou à instituição da Lei n.º 11.340/2006, conhecida como Lei Maria da Penha (Matias 2015; Medeiros 2015). A lei determina a necessidade de inquérito policial e exclui a aplicação de penas pecuniárias, imputando até três anos de reclusão em casos de violência doméstica (Brasil 2006).3

No funcionamento da Lei Maria da Penha tem se percebido, entre outras coisas, que a vitimação feminina desemboca em uma abordagem individualizante dos conflitos. Nos juizados e varas de violência doméstica se percebe o encapsulamento das mulheres e seu tratamento como sujeitos hipossuficientes pela impossibilidade de retirada das queixas;4 pelo curso processual centrado na figura dos juízes, diminuindo sua possibilidade de participação discursiva nos processos; pela desconsideração frequente dos seus pleitos e desejos; e, não raramente, por situações de constrangimentos, de exposição e de exclusão narrativa nas audiências (Matias 2015; Medeiros 2015; Simião e Oliveira 2016; Santos Filho 2019a). Os homens acusados são encaminhados compulsoriamente a centros de alcoólicos e narcóticos anônimos, grupos reflexivos de gênero e são, igualmente, expostos a situações de exclusão narrativa que despertam sentimentos de ofensa e de desconsideração à pessoa (Martinez-Moreno 2018). No Brasil percebe-se um modelo de administração no qual uma parte é vista como carente de proteção, tutela e reparação, e a outra de penalização e ressocialização.

Em Timor-Leste, os primeiros movimentos para a adoção da Lei n.º 7/2010 - Lei contra Violência Doméstica (LCVD) - se pautaram, também, em demandas pelo reconhecimento da vulnerabilidade das mulheres e da necessidade de um enquadramento mais rígido, com punições que coibissem os comportamentos violentos dos agressores (Simião 2015a; Santos Filho 2019a). Antes disso, ainda nos primeiros anos da década de 2000, foram marcantes a construção e coletivização de uma moral condenatória aos atos de uso da força em relações conjugais (Simião 2015a). Uma pesquisa no país indicava que, à época, 86% das mulheres e 80% dos homens julgavam adequado que um homem batesse na esposa caso ela não performasse corretamente as atribuições de cuidado com a casa ou com os filhos (Asia Foundation 2012; Simião 2015b). A fim de coibir essas práticas e, também, de modificar a racionalidade que tolerava e permitia reproduzir esse modus operandi, Estado e sociedade civil têm cooperado por meio de ações de apoio às mulheres e de conscientização sobre a igualdade de gênero (Santos Filho 2017, 2019a, 2019b).

A aplicação da LCVD se dá de modo similar ao da Lei Maria da Penha, no sentido de que as mulheres são enredadas por diferentes braços institucionais. Os mecanismos instituídos pela LCVD afastam a atuação da chamada justiça tradicional, atribuindo aos tribunais a exclusiva competência para com os casos. A justiça tradicional, operante nas aldeias leste-timorenses, é um complexo de mecanismos voltados à administração de conflitos e à reparação e manutenção de relações estabelecidas entre grupos conectados, frequentemente, por relações de parentesco que impõem obrigações, dívidas e dádivas (Simião 2007, 2015a; Rocha 2018). Podem receber diferentes nomes, mas comumente são chamados de tesi lia (cortar a palavra) ou nahe biit boot (abrir a grande esteira) em tétum, idioma nacional. Nestes eventos envolvem-se, necessariamente, os grupos de origem dos conflitantes, as lisan, e o objetivo por detrás disso não é responsabilizar ou penalizar exclusivamente uma pessoa, inocentando e reparando a outra (Simião 2007, 2015a). Ao contrário, esses mecanismos buscam reestabelecer o decoro e os bons termos entre os grupos familiares, mantendo as relações que são vitais para as socialidades locais (Silva e Simião 2016).

Durante a pesquisa de campo fui voluntário e acompanhei as atividades do Fórum de Comunicação para Mulheres Leste-timorenses - Fokupers,5 uma ONG sediada na capital, Díli, atuante desde 1997 na promoção e conscientização sobre igualdade de gênero e que tem se engajado na implementação da Lei contra Violência Doméstica. Apoiada financeiramente por doadores internacionais, mas também pelo Ministério da Solidariedade Social e pela Secretaria de Estado para a Igualdade e a Inclusão, órgãos da administração estatal, produz campanhas de conscientização, lobby na área de igualdade de gênero, provisão de abrigo e orientação psicossocial e jurídica para mulheres afetadas pela violência doméstica. Essas mulheres são chamadas de mitra (“parceira” na língua indonésia) ou cliente e, ainda, sobrevivente, com o objetivo de reduzir - ao menos categoricamente - seu tratamento enquanto vítimas.

Na Fokupers o setor de assistência legal era o responsável pelo encaminhamento à polícia e registro das queixas, pelas orientações sobre o curso dos processos e pela mediação semântica sobre os mecanismos institucionais de garantia dos direitos das mulheres.6 Foi neste setor que atuei voluntariamente durante quatro meses, fornecendo suporte nas atividades de atenção jurídica às mulheres, já que meu projeto de pesquisa à época tratava da implementação da LCVD, o qual era conduzido na Universidade de Brasília em parceria com a Universidade Nacional Timor Lorosa’e - UNTL, que me recebeu no período de graduação sanduíche.

A ONG recebia mulheres encaminhadas por outras organizações, pela polícia ou pelos serviços de saúde, fornecendo a elas abrigo enquanto necessário, quando identificadas situações de vulnerabilidade, desamparo e/ou risco à sua segurança. As atendidas pela Fokupers participavam de atividades de conscientização a fim de capacitá-las a atuar nas esferas formais de justiça, utilizando pedagogias jurídicas (Santos Filho 2017, 2019b) que viabilizassem sua autopercepção enquanto sujeito de direitos. Uma dessas atividades era denominada de socialização: momentos onde se reuniam as mitra para orientações sobre a violência doméstica, sobre os mecanismos institucionais de resposta às agressões, sobre a defesa e exercício de direitos e sobre a obrigação coletiva de conscientização sobre esses temas. Para isso apresentavam o texto da LCVD, tratavam da importância da denúncia e explicavam o que eram os direitos humanos.

A equipe pretendia, antes de tudo, ensiná-las a reconhecer como violência atos que poderiam parecer corriqueiros em seus relacionamentos ou ao seu redor: gritar, xingar, impor vontades, obrigar ou tentar obrigar a qualquer ação, empurrar, constranger, restringir liberdades ou desejos, puxar o cabelo e agredir fisicamente, qualquer que fosse a intensidade. Para que aprendessem a reconhecer as violências a equipe ensinava que tais comportamentos privariam as mulheres de seus direitos e/ou constrangeriam seu bem-estar físico, psicológico, econômico e sexual. Tudo isso era apresentado como grave falta aos seus direitos humanos. As mitra também ouviam sobre a importância de estarem na Casa Abrigo, pois estariam resguardadas, longe dos seus agressores e de seus grupos familiares, representados como aqueles que, talvez, poderiam forçá-las a retomar a convivência com os ex-companheiros.

Ficavam em segundo plano, nos discursos e atividades da ONG, considerações sobre as obrigações com o grupo doméstico ou com suas lisan, ou qualquer expectativa e deferência aos sistemas locais de organização de gênero e de poder, estruturais para a organização social local (Errington 1990; Silva 2017). O foco era em suas individualidades, portadoras de direitos invioláveis, preocupações que elas e as demais em suas comunidades deveriam priorizar.

Era significativo o compartilhamento de noções sobre as vias entendidas como adequadas para o cuidado com os casos. Se localmente é amplo o reconhecimento e o acionamento aos complexos locais de administração de conflitos (justiça tradicional), a Fokupers buscava fortalecer a ideia de que somente ao recorrer à justiça do Estado (polícia e tribunais) as mulheres estariam amparadas. A disputa discursiva era estabelecida da seguinte forma: a justiça tradicional não estaria preocupada em garantir os interesses das mulheres ou em reparar, especificamente, suas ofensas, ao passo que a justiça do Estado iria priorizá-las, responsabilizando e penalizando o agressor. Nessa narrativa o Estado se ocuparia dos direitos das mulheres ao considerá-las como vítimas dos homens (agressores), tomados como os responsáveis exclusivos e passíveis de sansões, fazendo notáveis as associações entre vitimação, acesso a direitos e interferência judicial estatal.

Essa ação da Fokupers indicava as formas pelas quais a organização tomava as mitra de maneira atomizada nos conflitos, deixando de considerar o papel significativo dos marcadores de gênero na vida social local e de outras configurações hierárquicas que compunham as experiências de muitas daquelas mulheres, sobretudo a triangulação dívida, dádiva (Silva e Simião 2016) e esquemas geracionais de gênero (Silva 2017).

Em diálogos cotidianos e em entrevistas com as mulheres ouvia relatos sobre suas relações, o que me permitiu traçar alguns apontamentos sobre a leitura vitimizante e individualizada dos conflitos. Os parágrafos que se seguem são fruto de diálogos que se centram nas trajetórias, nas relações de convivência entre os parceiros conjugais e os demais membros das unidades domésticas, considerando todos os elementos que poderiam colaborar para a construção dos conflitos, bem como em suas demandas com e após as lides judiciais. O objetivo é ressaltar a configuração relacional e de convivialidade que compunha e estruturava as tensões e agressões: expectativas e suas origens, comportamentos, ansiedades, sentimentos, desejos em relação aos (ex-)companheiros e familiares, enfim, diferentes aspectos que complexificam a composição dos conflitos.

As mitra pelas mitra

Júlia,7 21 anos, se encontrava na Casa Abrigo após denunciar seus, então, ex-namorado e ex-cunhado. Dizia ter deixado sua casa em Manatuto,8 onde vivia com suas tias e primos, para morar com um jovem policial, Rui, que conhecera havia pouco tempo pelas redes sociais. Começaram a namorar e ela fez uma viagem até a casa dele, em uma aldeia do município de Liquiçá, a fim de conhecer sua família. A moça acabou por ficar morando ali desde o primeiro contato, o que foi o início de uma série de perturbações. Ela e o rapaz passaram a compartilhar residência com a mãe (viúva), os irmãos e as cunhadas de Rui, sem que tivessem sido feitas mediações entre as famílias para o acerto de quaisquer prestações matrimoniais ou sem que sequer os dois grupos tivessem se conhecido.9

Os conflitos se desencadearam ainda nas primeiras semanas de convivência entre a moça e as mulheres da casa. Júlia contava que não desempenhava as tarefas domésticas que eram executadas pelas irmãs e cunhadas de Rui. Tarefas como o cozinhar, cuidar dos animais e da casa pareciam complicadas para ela, que justificava ser inexperiente. Ela alegava que a falta de paciência das mulheres em ajudá-la e em ensiná-la tornava a comunicação difícil, gerando frequentes discussões. Tanto as mulheres mais jovens quanto a mãe do rapaz esperavam que ela fosse habilidosa naquelas atribuições, consideradas femininas. Quando suas expectativas não eram atendidas as tensões emergiam e elas se queixavam de Júlia para Rui.

Ela não se sentia bem-vinda e os conflitos, especialmente com uma cunhada e com a sogra, se intensificavam, afetando a relação com o namorado. As insatisfações expressas pelas mulheres da casa pressionavam para que ele cobrasse de Júlia o cumprimento das tarefas domésticas. Esse foi o início dos problemas entre ela e Rui que, para atender a tais demandas, passou a repreendê-la verbalmente. Em meio às atribulações Júlia descobriu que ele se correspondia por mensagens via celular com outras moças. O rapaz demonstrava interesse em encontrar uma esposa, o que a ofendia, fazendo com que ela o interpelasse. No momento em que era questionado, iniciavam-se acaloradas discussões e o rapaz respondia com agressões físicas e verbais. A primeira reação dele era de negação, mas à medida que as conversas foram ficando mais frequentes e com mais moças Júlia percebia que, de fato, existia interesse da parte dele em consolidar outras relações.

Ao engravidar de Rui, Júlia se viu envolvida em novos problemas. Ela dizia se sentir abalada pelas mudanças da gestação, mas ainda assim os conflitos com as mulheres da casa e com o próprio companheiro persistiam. Em uma das discussões Júlia foi agredida pelo namorado e precisou de atendimento médico. No hospital foi feita uma denúncia por uma testemunha e a jovem foi levada para a Casa Abrigo da Fokupers. A equipe a acolheu, a inseriu em todas as atividades de escuta psicossocial e de orientação jurídica, deu suporte durante o processo judicial e, quando se sentiu segura, deixou o abrigo.

Ao voltar para Manatuto, sua terra natal, Júlia foi procurada por Rui e aceitou seu pedido de reatarem o relacionamento. Ela conta que a expectativa de criarem o filho juntos foi um mobilizador importante neste momento. Ao dar à luz seu filho, ela teve complicações pós-parto, precisando ficar sob cuidados médicos por alguns dias. Enquanto permaneceu hospitalizada seu filho foi levado pelo pai para Liquiçá. Ao receber a liberação médica e se dirigir sozinha para a casa do namorado, Júlia recebeu tratamento pouco amigável. Logo em sua chegada ela foi apontada como irresponsável, xingada e empurrada pelos familiares de Rui, os quais não a viam como boa mulher ou mãe. Não parecia haver espaço para ela naquela casa, e ela foi expulsa pelo irmão de seu agora ex-namorado aos gritos de “cadela!” (asu). O tratamento recebido, somado à privação em relação ao filho, conduziram-na a procurar a polícia para registrar uma nova queixa agora contra o ex-namorado e seu irmão.

Júlia contava que os momentos que mais a ofenderam foram as trocas de mensagem do namorado com outras mulheres, ter sido expulsa da casa da família de seu ex-namorado e ser privada do contato com o filho. A elaboração narrativa e sua percepção dos atos de desconsideração à sua pessoa (Oliveira 2008) não se circunscreviam às agressões físicas, ou seja, as transcendiam localizando a potência ofensiva em outras dimensões. Ao me contar o que desejava com o final do processo litigioso, sequer mencionou punição aos agressores ou qualquer tipo de atitude de reparação por parte da família: queria apenas o filho de volta. Ela afirmava nunca ter desejado a prisão do ex-namorado, mas entendia que registrar uma queixa contra ele poderia persuadir as autoridades a lhe concederem a guarda do menino.

A história de Fernanda, outra jovem leste-timorense, à época com 24 anos, também reunia uma densa trama de situações que perpassavam e compunham seu relacionamento. Ela e seus irmãos foram separados no período de ocupação indonésia em Timor-Leste, quando o pai foi morto e a mãe fugiu sem conseguir levá-los. Fernanda e sua irmã caçula foram criadas por um casal indonésio em Díli, conhecidos de seus pais. Ao atingir a maioridade ela foi orientada a se casar com um rapaz de Ermera. As prestações matrimoniais foram acertadas e ela se casou com Júlio, que trabalhava em uma construtora em Díli. Após o casamento, Fernanda fixou residência na casa da família de Júlio, em Ermera, vivendo ali com os pais do rapaz, seus irmãos e cunhadas. Na casa da nova família, Fernanda tinha uma rotina intensa de trabalho, que ia desde sua participação na plantação de café, no cuidado com os animais (galinhas e porcos), no preparo de alimentos e em parte dos trabalhos domésticos de manutenção e organização da casa. As tarefas eram desempenhadas apenas por ela e pelas cunhadas, todas casadas com irmãos de Júlio.

A situação lhe era incômoda. Ela via como injusta a divisão de tarefas, principalmente porque a sogra não fazia as mesmas atividades que as mais novas. Além de apenas coordenar e atribuir funções, a mãe de Júlio era quem ficava com o dinheiro que eles conseguiam com a venda de café e também com o salário que o filho recebia por seu trabalho em Díli. Ao questionar a situação, Fernanda era respondida por Júlio com agressões físicas, para que “parasse de causar problemas com a família”. O objetivo do rapaz era fazer com que a esposa aceitasse, sem questionar, a divisão do trabalho e a administração dos recursos estabelecida pela matriarca.10

Ao engravidar, a dinâmica entre Fernanda e os outros membros da casa ficou mais tensa. Ela não estava autorizada a interromper suas atividades mesmo com a gestação avançada. Com as dificuldades que sentia, ficava ainda mais insatisfeita com o trabalho e com o tratamento a ela dispensado. Após o parto decidiu romper relações com Júlio. Com as poucas economias da venda de café retornou a Díli e passou a trabalhar como empregada doméstica. Isso permitiu que ela se sustentasse, mas não a livrou de contratempos: haviam sido feitas as prestações matrimoniais entre sua família e a família de seu marido. Em função disso e das expectativas que Júlio ainda tinha em relação a ela, ele e sua mãe foram até Díli para convencê-la a voltar para casa. Eles se apoiavam no discurso de obrigatoriedade, uma vez que todo um arranjo entre os grupos havia se estabelecido. Para Fernanda aquilo não era o mais importante e, mesmo ciente de que não contava com o apoio dos pais adotivos e que corria o risco de romper a relação com todos, se negou a retornar.

Júlio e sua mãe continuaram na pequena casa alugada por Fernanda. Após mais uma agressão e a resistência de Fernanda em retornar a Ermera, o rapaz e sua mãe procuraram os pais adotivos da agora ex-esposa para que desfizessem o acordo matrimonial. Assim o fizeram e algum tempo depois Fernanda estava abrigada e recebendo assistência da Fokupers. Quando conversamos em uma de minhas visitas ao abrigo ela me dizia que não sentia raiva de Júlio e não esperava que ele fosse preso ou punido. Desejava apenas voltar a trabalhar para se sustentar e criar o filho.11

Significativas para a irrupção dos conflitos entre essas mulheres e seus companheiros eram as expectativas de condutas dos homens e de suas famílias sobre o trabalho feminino e seu comportamento nas unidades domésticas. As expectativas sobre participação e execução de tarefas dentro da divisão do trabalho eram, certamente, atravessadas por critérios de gênero, critérios etários e também de senioridade de entrada nas casas, apresentados pelas mães e cunhadas dos homens, mulheres que já estavam nas unidades domésticas e nas lisan quando da chegada das novas mulheres (feto foun). Uma vez que as condutas de Júlia e Fernanda não correspondiam a tais expectativas sua incorporação era precária e turbulenta.

Se, por um lado, Fernanda se sentia explorada por fazer todo o trabalho a ela atribuído e por não ter acesso ao dinheiro que sentia lhe ser devido, Júlia era, por outro, cobrada por não tomar parte e pela má execução das tarefas domésticas. Realizar ou não realizar o trabalho doméstico era um elemento significativo, porém mais significativo era a forma como isso afetava as relações de ambas as mulheres com seus companheiros e os familiares deles. As tensões eram intensificadas por fatores diversos, como o interesse de Rui por outras mulheres e as tentativas de Júlio em corrigir as “malcriações” de Fernanda. Ademais, ambas as jovens questionavam constantemente as hierarquias etárias, demonstrando incômodo com o fato de suas sogras não tomarem parte igual no trabalho doméstico.

Esses casos nos ajudam a entender algumas possibilidades de desenvolvimento e de acirramento dos conflitos, percebendo como suas dinâmicas se constituem, desencadeando o recurso à força física com o objetivo de corrigir comportamentos, adequando-os a diferentes expectativas. Eles intentam identificar os meandros das relações a partir das significações elaboradas por sujeitos que compõem os conflitos. Dessa abordagem é possível, por exemplo, extrair que, mesmo que essas mulheres não tivessem interesse em manter os relacionamentos com os ex-companheiros, não reproduziam o discurso punitivista e vitimizante, corrente entre instituições e agentes defensores dos direitos das mulheres, isto é, não narravam suas experiências como sujeitos que demandam reparação por meio da punição daqueles homens. Isso aponta para os limites da abordagem desses conflitos a partir de uma ótica que reduz toda a complexidade à dualidade vítima-algoz.

A ótica relacional e a vitimação feminina nas práticas de administração da violência doméstica

Uma das abordagens possíveis para analisar os conflitos de violência doméstica, aquela que pode ser chamada de relacional, foi e tem sido apresentada em trabalhos como o pioneiro de Maria Filomena Gregori (1993) no Brasil, ao etnografar a atuação do SOS Mulher 12 na década de 1980. Desde então a autora discute o risco epistemológico de considerar as mulheres como meros sujeitos passivos e vitimados em relações abusivas e violentas nas quais elas seriam dominadas pelos homens (Gregori 1993, 2021a, 2021b). Analisar a violência doméstica desde uma perspectiva relacional implica compreender que as assimetrias de gênero operam, mas não são determinantes fixos, estáticos ou lineares, sendo múltiplos os marcadores que se combinam às dinâmicas experienciais para que ocorram os conflitos e as agressões, mas também sua significação por parte dos sujeitos.

A exemplo disso, a autora demonstra que as narrativas das mulheres atendidas pelo SOS Mulher expressavam faces das relações de gênero que escapavam aos discursos feministas hegemônicos no Brasil sobre a sujeição feminina nas relações conjugais. Elementos da convivência cotidiana que precediam o uso da força física, como consumo de álcool, desentendimentos sobre o uso do dinheiro, ciúmes, queixas sobre desinteresse sexual, cuidados com os filhos ou com a casa, etc. (Gregori 1993), eram objeto de modificação via força física.

Indo além de identificar os elementos que antecediam e compunham os conflitos, Gregori (1993) chamava a atenção para a agência feminina em manter tais relacionamentos.13 Antes de romper com situações representadas pelas ativistas do SOS Mulher como de dominação e subjugação, as mulheres atendidas buscavam orientações que pudessem ajudá-las a modificar o comportamento dos parceiros, não objetivando a exclusão deles de suas vidas. Assim, tanto a manutenção quanto a ruptura com uma relação eram compostas por uma série de fatores que não cabiam nas narrativas das integrantes do SOS, que se dedicavam a apresentar para as mulheres aquilo que percebiam como as amarras patriarcais (ibid.).

Para compreender experiências perpassadas pela violência doméstica parece ser importante reconhecer as tramas complexas que envolvem os sujeitos nos conflitos e nas próprias relações, tanto em situações nas quais as mulheres diretamente atingidas pelo uso da força não querem se manter nos relacionamentos (como no caso de minhas interlocutoras), quanto em situações onde as mulheres desejam manter os vínculos com os parceiros. Isso permite refletir que mesmo o uso da força física pode ser componente das tramas relacionais, coexistindo com afetos, sexualidade, desejos, dependências múltiplas, representações sobre família, expectativas, demandas de cuidado com o arranjo familiar, etc. (Gregori 1993). Essas provocações estimulam o aprofundamento teórico e etnográfico a fim de oxigenar as discussões a este respeito.

Considerar a dimensão relacional dos conflitos implica, portanto, em reconhecer que as assimetrias de gênero - expressas, inclusive, pelo recurso à força física - qualificam o nível de implicação das mulheres com as relações e com seus parceiros, esclarecendo as próprias concepções e desejos - mesmo que formados por uma cultura que valorize a ideologia familiar - que influenciam em sua permanência ou não em relações deste tipo (Gregori 2021a). Esses fatores são fundamentais por constituírem as experiências de vida dessas mulheres e suas condições materiais de existência, ao mesmo tempo que revelam representações sociais que elas valorizam, indicando a complexidade das malhas que compõem seus relacionamentos.

A complexidade desse aspecto pode ser percebida nos contextos de aplicação da Lei n.º 11.340/2006 no Brasil, em audiências judiciais nas quais as mulheres, requerentes nos processos, podem não colaborar para a culpabilização e penalização dos ex-companheiros. Neste sentido, dentre as estratégias das mulheres há aquelas que evitam comparecer às audiências e outras que negam fatos relatados em depoimentos prestados, a fim de não produzir provas que contribuam com a persecução penal dos agressores (Medeiros 2015: 113-127). Essas estratégias de desmobilização dos processos judiciais demonstram melindres das situações e das demandas de mulheres envolvidas nestes conflitos, o que se deve em grande medida ao fato de que, para algumas delas, os acontecimentos e experiências anteriores às agressões são igualmente significativos. Em outras palavras, mesmo que tenham papel relevante na denúncia e no sentimento de indignação, as agressões não são os únicos elementos que marcam e dão significados a essas relações.

O oposto da abordagem vitimizante reconhece os mecanismos de ação adotados pelas mulheres diante dos conflitos, ainda que a ação seja a resignação (Gregori 1993; Showden 2011). Resignar-se pode ser fruto tanto de uma impossibilidade multicausal, quanto de um ato ponderado - por diversos fatores - de não publicitar as agressões e de adotar outras formas de lidar com os conflitos: registrando denúncias que visam sobretudo modificar os comportamentos dos companheiros (Pasinato 2010) ou, em outras situações, revidar as agressões (Gregori 1993; Simião 2015a). Manter-se ou retirar-se das relações também têm sido indicadas como possibilidades de lidar com as agressões, o que, certamente, não quer dizer que se trate de “escolhas simples” (Gregori 1993; Showden 2011), mas que possuem uma racionalidade que pode fazer sentido e possuir valor próprio para mulheres em tais posições.

Reação ou resignação são possibilidades de agência constituídas por aspectos da subjetividade formados, em grande medida, pelos mecanismos de gênero e por outros complicadores que eles agregam (Moore 2000). As múltiplas possibilidades de agência de mulheres enredadas em relações perpassadas pelo uso da força não conseguem ser traduzidas em discursos que se pretendem hegemônicos, e que podem incorrer em simplificações ao, talvez, não apreender as significações atribuídas por aquelas que vivenciam relações deste tipo. Assim, seja em situações onde as mulheres pretendem romper os relacionamentos (minhas interlocutoras), seja em situações em que as mulheres pretendem mantê-los, deve-se iluminar os aspectos componentes dos conflitos e das relações que não cabem nas narrativas vitimizantes que tendem a reduzir os conflitos à dualidade vítima-algoz.

Considerações finais: o uso da força como aspecto comunicacional

Refletir sobre experiências de sujeitos em relações perpassadas pela violência doméstica carece de algumas considerações sobre as articulações entre gênero, poder e uso da força física. Entendo gênero como categoria de análise e marcador social responsável por construir identidades, experiências e performances masculinas e femininas para os sujeitos ao longo de suas trajetórias (Moore 1994). Ele é, ao mesmo tempo, uma esfera de ações dentro de um campo de constrangimentos sociais (Gregori 2021a, 2021b). Ou seja, o gênero estabelece regras, mas permite construções agentivas. Nas dinâmicas conjugais isso se expressa, entre outras coisas, nas expectativas de condutas desempenhadas e valorizadas pelos sujeitos-componentes uns em relação aos outros, as quais se reelaboram e se negociam (Moore 1997; Gregori 2021b).

Se o poder é, como apontou Foucault (1995, 1997), elemento fundamental da subjetivação, o gênero, enquanto dispositivo a ele articulado, colabora para a objetivação dos sujeitos. Já os esquemas de poder se constituem em assimetrias de gênero, as quais, por sua vez, se imbricam em performances relacionais de masculinidades e feminilidades em conjugalidades. Isso se torna claro à medida que se constituem hierarquizações, pretendidas e mesmo fantasiadas 14 pelos próprios sujeitos, as quais carecem de mecanismos para se sustentarem enquanto projeção ou se concretizarem no campo real das interações (Moore 2000).

Hanrietta Moore (2000) define como fantasias as projeções idealizadas que incidem sobre práticas e condutas, conferindo poder aos sujeitos, pois elas podem se constituir em ações. Uma fantasia é criada, forjada, idealizada e envolve expectativas que são mobilizadas para interesses específicos, por exemplo, para justificar uma suposta ascendência lógica/natural de homens sobre mulheres. A utilização de “suposta” é intencional e visa indicar que essa é uma ideia projetada e que atende a interesses, neste caso o de justificar, contextualmente, uma posição de superioridade a ser mantida. Mas é preciso cuidado. Entendo que uma fantasia não consiste em uma ideia ficcional, pois ela tem pretensões de validade, se afastando do que poderia, ao primeiro olhar, ser apontado como uma mentira ou como ideologia no sentido de falseamento. Ela faz sentido, tem uma lógica própria e pode ser experimentada como real pelos sujeitos.

Moore (1997, 2000) sugere que, no plano das fantasias de poder sobre as mulheres e suas condutas, os homens (parece válido inserir parceiras/os do mesmo gênero) poderiam elaborar representações e expectativas que demandariam - em determinadas situações e arranjos relacionais - esforços de concretização (tornar real), dentre os quais o uso da força ou sua ameaça. O sucesso disso poderia desenvolver ou manter, em performances e racionalidades masculinas e femininas, a fantasia de ascendência dos homens sobre as mulheres. Fantasia essa que seria, muitas vezes, reproduzida pelos próprios sujeitos que defendem os direitos das mulheres em discursos sobre a sujeição feminina (ibid.). Essa fantasia, contudo, não é reafirmada em todas as performances de masculinidade, mesmo aquelas cerceadas e alvo de suspeição criminal pelo poder judiciário. Martínez-Moreno (2018) demonstra em sua etnografia em contexto brasileiro que entre alguns homens alvos da Lei Maria da Penha não havia a autopercepção de dominadores em relação às (ex-)companheiras. Contudo, como algumas críticas feministas têm apontado, o discurso que se pretende hegemônico nos estudos para as relações de gênero tende a reforçar a ideia de que as mulheres estariam presas em relações de dominação pautadas pela ideologia patriarcal (Gregori 2021a).

Se consideramos o uso da força física, portanto, como um esforço de controle e de manutenção de poder, que visa readequar as ações de uma parte às demandas da outra, entendemos que se pretendem comunicar expectativas de controle nas conjugalidades. Isso não exclui que outras formas comunicacionais (pressionamentos, ameaças, etc.) possam ser utilizadas. Também não exclui que essas expectativas sejam comunicadas entre sujeitos do mesmo gênero, pois ainda que esse marcador seja significativo para a configuração dos conflitos entre masculino e feminino, os ambientes domésticos e seus conflitos podem ser compostos por pessoas de gêneros iguais, sendo perpassados por demandas e desígnios de sujeitos femininos entre si ou masculinos entre si. Mesmo entre pessoas que performam o mesmo gênero pode-se expressar ou reforçar expectativas generificadas, a exemplo de relações entre sogra-nora e entre cunhadas, expressas nas experiências de Júlia e de Fernanda. Nas relações entre aquelas mulheres o recurso à força física não ocorria, mas pressões verbais, queixas e discussões tinham como objetivo adequar as condutas de umas às projeções de/para gênero cultivadas pelas outras.15

Diante da inabilidade em se fazer realizar as expectativas sobre os comportamentos daqueles com quem se relaciona, o uso da força pode tomar lugar para controlar condutas e para a produção-manutenção de posição de sujeitos. A força física pode figurar, ainda, como resposta a uma ameaça percebida, que desafia posições, que questiona papéis e autoridades - mesmo que estes sejam constituídos apenas nas fantasias dos sujeitos. O ponto crítico é identificar o que uma transgressão representa diante das expectativas e da posição de uma das partes para, então, perceber como a força física é acionada enquanto mecanismo de manutenção ou elaboração da posição de si e do outro relacionalmente (Moore 1997).

Retomando a etnografia, no caso de Fernanda, com as agressões Júlio intentava conter as “malcriações” da esposa que questionava a divisão do trabalho doméstico. Já Júlia não era agredida pelo namorado por não cumprir o trabalho doméstico, mas por tentar cercear o envolvimento dele com outras mulheres. Ainda que distintas, essas situações expressam os diferentes arranjos para construção dos conflitos e para o recurso à força, mas principalmente elucidam que o “estopim” das agressões pode estar associado às fantasias que os sujeitos (homens, nestes casos) criam sobre si, sobre suas relações e sobre as parceiras. Essas fantasias são compostas por expectativas sobre o que lhe é de direito e sobre o que é devido ao outro. As fantasias têm seus próprios limites e, ao serem questionadas ou desafiadas, demandam artifícios que as sustentem e, consequentemente, mantenham os sujeitos nas posições em que se projetam dentro da hierarquia construída de modo generificado.

A partir do material apresentado, nota-se que, ainda que o recurso à força física aconteça em situações onde há o rompimento de expectativas dos homens em relação às mulheres, não se deve desconsiderar a composição relacional dos conflitos, uma vez que estes podem se iniciar pelo rompimento das expectativas das mulheres em relação aos homens. Desagrado com a execução de tarefas, questionamentos sobre a gestão de recursos econômicos, noções sobre (in)justiças, demandas por (in)fidelidade, etc., aparecem como estopins de conflitos que podem levar a agressões (Santos Filho 2020). Não se trata, certamente, de justificar ou chancelar agressões, mas de expor quais posições e expectativas são comunicadas com atos desta natureza, compreendendo a maneira como se busca manter o poder e estimular condutas.

Considero, portanto, que o recurso à força física dentro das relações de conjugalidade objetiva à (re)produção de relações a partir de um referencial que pode ser o das projeções e fantasias sobre masculinidades e feminilidades, sobre papéis expectados a homens e mulheres e, ainda, sobre condutas baseadas em esquemas de referências que não são individuais, mas sim socialmente construídos e compartilhados. O uso da força parece figurar como um recurso para aqueles que objetivam a (re)produção de esquemas de ação e de deferência, comunicando as expectativas que baseiam e dão forma às fantasias dos sujeitos. Se poder e subjetivação (Foucault 1995) estão associados, os diferentes usos do poder nas relações de conjugalidade e gênero parecem ter como objetivo o reforço ou a produção de sujeitos adequados a certas expectativas sobre si e sobre o outro. Poderíamos pensar, ainda, que a força física seria, ao mesmo tempo, reguladora de comportamentos e constituinte de sujeitos, no sentido de que visaria estimular e constranger condutas, ensejando sobre mulheres que podem responder de maneiras diversas, confirmando ou dissuadindo as fantasias de poder que as envolvem (Gregori 1993).

Por fim, se tomamos o uso da força como ato comunicacional, que busca informar, compor e manter posições assimétricas, podemos realçar nuances dos arranjos relacionais que combinam conexões afetivas, desbalanços, intimidades, expectativas, desejos, codependências, etc. Isso é particularmente importante nos contextos onde a judicialização tem se apresentado para a pacificação social por meio da vitimação e da atomização dos conflitos. Perceber as conexões entre a dimensão relacional, o aspecto comunicacional e as estratégias de judicialização destes conflitos ajuda a levantar novos debates sobre a mobilização política da categoria violência doméstica. Auxilia também a tomar o recurso à força física não como quebra da ordem social, mas como estratégia de manutenção de relações generificadas, oportunizando, ainda, reflexões sobre a composição de fantasias dos sujeitos sobre poder e identidade, agenda urgente para futuras pesquisas etnográficas e para debates teóricos acerca da violência.

Bibliografia

ASIA FOUNDATION, 2012, “Ami Sei Vitima Beibeik”: Looking to the Needs of Domestic Violence Victims. Dili: The Asia Foundation. [ Links ]

BARSTED, Leila Linhares, 2016, “O feminismo e o enfrentamento da violência contra as mulheres no Brasil”, in Cecília M. B. Sardenberg, e Márcia S. Tavares (orgs.), Violência de Gênero contra Mulheres: Suas Diferentes Estratégias de Enfrentamento e Monitoramento. Salvador: Editora da Universidade Federal da Bahia, 17-40. [ Links ]

BRASIL, 2006, “Lei n.º 11.340, de 7 de agosto de 2006”, Disponível em Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm (última consulta em outubro de 2022). [ Links ]

DEBERT, Guita Grin, 2006, “Delegacias de defesa da mulher: judicialização das relações sociais ou politização da justiça?”, in Mariza Corrêa e Érica R. de Souza (orgs.), Vida em Família: Uma Perspectiva Comparativa sobre “Crimes de Honra”. Campinas: Pagu - Núcleo de Estudos de Gênero, 15-64. [ Links ]

DEBERT, Guita; e Tatiana Santos PERRONE, 2021, “Direito penal da vítima e a violência doméstica”, in Theophilos Rifiotis e Fernanda Cardozo (orgs.), Judicialização da Violência de Gênero em Debate: Perspectivas Analíticas. Brasília: ABA Publicações, 47-66. [ Links ]

DEBERT, Guita , e Marcella Beraldo OLIVEIRA, 2007, “Os modelos conciliatórios de solução de conflitos e a ‘violência doméstica’ ”, Cadernos Pagu, (29): 305-337. [ Links ]

DUMONT, Louis, 1985, O Individualismo: Uma Perspectiva Antropológica da Ideologia Moderna. Rio de Janeiro: Rocco. [ Links ]

ERRINGTON, Shelly, 1990, “Recasting sex, gender, and power: A theoretical and regional overview”, in Jane Atkinson e Shelly Errington (orgs.), Power & Difference: Gender in Island Southeast Asia. Stanford: Stanford University Press, 1-58. [ Links ]

FOUCAULT, Michel, 1995, “O sujeito e o poder”, in Paul Rabinow e Hubert Dreyfus (orgs.), Michel Foucault - Uma Trajetória Filosófica: Para Além do Estruturalismo e da Hermenêutica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 229-250. [ Links ]

FOUCAULT, Michel, 1997, Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal. [ Links ]

GREGORI, Maria Filomena, 1993, Cenas e Queixas: Um Estudo sobre Mulheres, Relações Violentas e a Prática Feminista. Rio de Janeiro: Paz e Terra. [ Links ]

GREGORI, Maria Filomena, 2021a, “Pensando violência e os limites da sexualidade: trajetória e influências”, in Theophilos Rifiotis e Fernanda Cardozo (orgs.), Judicialização da Violência de Gênero em Debate: Perspectivas Analíticas . Brasília: ABA Publicações , 27-46. [ Links ]

GREGORI, Maria Filomena, 2021b, “Violência e gênero: paradoxos políticos, deslocamentos conceituais”, in Theophilos Rifiotis e Fernanda Cardozo (orgs.), Judicialização da Violência de Gênero em Debate: Perspectivas Analíticas . Brasília: ABA Publicações , 67-90. [ Links ]

MARTÍNEZ-MORENO, Marco J., 2018, Civilizar a Cultura: Questões de Modernização e a Afirmação da Dignidade entre Homens Acusados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher. Brasília: Universidade de Brasília, tese de doutorado em Antropologia Social. [ Links ]

MATIAS, Krislane de Andrade, 2015, Lei, Justiça e Judicialização de Conflitos a Partir de Relatos de Mulheres no Distrito Federal. Brasília: Universidade de Brasília, dissertação de mestrado em Antropologia Social. [ Links ]

MEDEIROS, Carolina Salazar L’armée Queiroga de, 2015, Reflexões sobre o Punitivismo da Lei “Maria da Penha” com Base em Pesquisa Empírica Numa Vara de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher do Recife. Recife: Universidade Católica de Pernambuco, dissertação de mestrado em Direito. [ Links ]

MOORE, Henrietta, 1994, “The problem of explaining violence in the social sciences”, in Penelope Harvey, e Peter Gow (orgs.), Sex and Violence: Issues in Representation and Experience. Londres e Nova Iorque: Routledge, 138-155. [ Links ]

MOORE, Henrietta, 1997, “Compreendendo sexo e gênero”, in Tim Ingold (org.), Companion Encyclopedia of Anthropology. Londres: Routledge, 813-830. [ Links ]

MOORE, Henrietta, 2000, “Fantasias de poder e fantasias de identidade: gênero, raça e violência”, in Henrietta L. Moore (org.), A Passion for Difference: Essays in Anthropology and Gender. Bloomington e Indianapolis: Indiana University Press, 49-70. [ Links ]

OLIVEIRA, Luís Roberto Cardoso de, 2008, “Existe violência sem agressão moral?”, Revista Brasileira de Ciências Sociais, 23 (67): 135-146. Disponível em Disponível em http://www.scielo.br/pdf/rbcsoc/v23n67/10.pdf (última consulta em outubro de 2022). [ Links ]

PASINATO, Wânia, 2010, “Lei Maria da Penha: novas abordagens sobre velhas propostas. Onde avançamos?”, Civitas, 10 (2): 216-232. [ Links ]

RIFIOTIS, Theophilos, 2008, “Judiciarização das relações sociais e estratégias de reconhecimento: repensando a ‘violência conjugal’ e a ‘violência intrafamiliar’”, Katálysis, 11 (2): 225-236. Disponível emDisponível emhttps://periodicos.ufsc.br/index.php/katalysis/article/view/S1414-49802008000200008 (última consulta em outubro de 2022). [ Links ]

RIFIOTIS, Theophilos, 2014, “Judicialização dos direitos humanos, lutas por reconhecimento e políticas públicas no Brasil: configurações de sujeito”, Revista de Antropologia, 57 (1): 119-144. Disponível emDisponível emhttp://www.revistas.usp.br/ra/article/view/87755 (última consulta em outubro de 2022). [ Links ]

RIFIOTIS, Theophilos, 2017, “Judicialização das relações sociais”, Cadernos da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, 2 : 26-39. [ Links ]

RIFIOTIS, Theophilos, 2021, “Entre alavanca e arena: aporias da judicialização da ‘violência de gênero’ no Brasil (tópicos de pesquisa)”, in Theophilos Rifiotis e Fernanda Cardozo (orgs.), Judicialização da Violência de Gênero em Debate: Perspectivas Analíticas . Brasília: ABA Publicações , 91-155. [ Links ]

ROCHA, Henrique Romanó, 2018, “Agora Fazemos Assim”: O Projeto Mobile Courts e Outras Faces do Processo de Transposição da Modernidade no Timor-Leste Contemporâneo. Brasília: Universidade de Brasília, trabalho de conclusão de curso de bacharelado em Antropologia. [ Links ]

SANTOS , FILHO Miguel Antonio dos, 2016, A Conformação de Uma Sociedade Civil e a Consolidação da Violensia Domestika: Faces da Transposição da Modernidade em Timor-Leste. Brasília: Universidade de Brasília, trabalho de conclusão de curso de bacharelado em Antropologia. [ Links ]

SANTOS FILHO , Miguel Antonio dos, 2017, “O combate à violensia domestika na Fokupers: práticas de mediação e de transposição da modernidade em Timor-Leste”, in Lucía Eilbaum, Patrice Schuch e Gisele F. Chagas (orgs.), Antropologia e Direitos Humanos, 7. Rio de Janeiro: Associação Brasileira de Antropologia, 149-179. [ Links ]

SANTOS, FILHO Miguel Antonio dos, 2019a, Justiça, Reconhecimento e Modernização: A Judicialização da Violência Doméstica e Seus Dilemas no Brasil e em Timor-Leste. Brasília: Universidade de Brasília, dissertação de mestrado em Antropologia Social. [ Links ]

SANTOS, FILHO Miguel Antonio dos, 2019b, “Dramas, socializações e treinamentos: as pedagogias jurídicas em uma ONG no Timor-Leste contemporâneo”, Etnográfica, 23 (3): 755-744. [ Links ]

SANTOS, FILHO Miguel Antonio, 2020, “Embracement and legal support for survivors of domestic violence: The praxis of Fokupers in Timor-Leste", in Kelly Silva (org.), Performing Modernities: Pedagogies and Technologies in the Making of Contemporary Timor-Leste. Rio de Janeiro: ABA Publicações, 79-97. Disponível em Disponível em http://www.aba.abant.org.br/files/000157_00134636.pdf (última consulta em outubro de 2022). [ Links ]

SHOWDEN, Carisa Renae, 2011, Choices Women Make: Agency in Domestic Violence, Assisted Reproduction, and Sex Work. Minneapolis, MN: University of Minnesota Press. [ Links ]

SILVA, Kelly, 2010, “Riqueza ou preço da noiva? Regimes morais em disputa nas negociações de casamento entre as elites urbanas timorenses”, in Wilson Trajano Filho (org.), Lugares, Pessoas e Grupos: As Lógicas do Pertencimento em Perspectiva Comparada. Brasília: Athalaia: 207-223. [ Links ]

SILVA, Kelly, 2012, As Nações Desunidas: Práticas da ONU e a Estruturação do Estado em Timor-Leste. Belo Horizonte: Editora da UFMG. [ Links ]

SILVA, Kelly, 2015, “Marriage exchanges, colonial fantasies and the production of East-Timor indigenous socialities in the 1970s Dili”, in Hannah Loney, Antero Benedito da Silva, Nuno Canas Mendes, e Alarico da Costa Ximenes and Clinton Fernandes (orgs.), Proceedings of the Understanding Timor-Leste 2013 Conference, Liceu Campus, National University of TimorLorosa’e (UNTL), Dili, Timor-Leste. Díli: Swinburne Press, 228-233. [ Links ]

SILVA, Kelly, 2017, “Women, gender and power among indigenous peoples of Portuguese Timor”, Anuário Antropológico, 42 (2): 183-205. [ Links ]

SILVA, Kelly, e Daniel SIMIÃO, 2016, “Pessoa como dívida? Controvérsias sobre dádiva, dívida e redes sociais na construção da pessoa em Timor-Leste: uma aproximação”, in Júlio Aurélio Vianna Lopes, Paulo Henrique Martins e Alda Lacerda (orgs.), Dádiva, Cultura e Sociedade. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 115-117. [ Links ]

SIMIÃO, Daniel Schroeter, 2007, “ ‘Madam, it’s not so easy’: modelos de gênero e justiça na reconstrução timorense”, in Kelly Silva e Daniel S. Simião (orgs.), Timor-Leste por Trás do Palco: A Cooperação Internacional e a Dialética da Formação do Estado. Belo Horizonte: Editora da UFMG , 210-233. [ Links ]

SIMIÃO, Daniel Schroeter, 2015a, As Donas da Palavra: Gênero, Justiça e a Invenção da Violência Doméstica em Timor Leste. Brasília: Editora Universidade de Brasília. [ Links ]

SIMIÃO, Daniel Schroeter, 2015b, “Reparação, justiça e violência doméstica: perspectivas para reflexão e ação”, Vivência: Revista de Antropologia, 1 (46): 53-74. [ Links ]

SIMIÃO, Daniel Schroeter, e Luís Roberto Cardoso de OLIVEIRA, 2016, “Judicialização e estratégias de controle da violência doméstica: suspensão condicional do processo no Distrito Federal entre 2010 e 2011”, Revista Sociedade e Estado, 31 (3): 845-874. [ Links ]

TIMOR-LESTE, 2010, Lei Kontra Violensia Domestika. Disponível em Disponível em https://jsmp.tl/wp-content/uploads/2013/08/LeiKontraViolenciaDomestika-No-7-2010-Tetum.pdf (última consulta em outubro de 2022). [ Links ]

1Este trabalho é fruto da dissertação de mestrado elaborada com recursos disponibilizados pela Capes por meio de bolsa de pesquisa segundo o edital Capes/AULP 54-2014.

2Na ONG que etnografei, apresentada adiante, seus agentes institucionais e os mecanismos legais (Timor-Leste 2010) reconhecem toda a diversidade de expressões da violência doméstica (física, sexual, psicológica e econômica). Contudo, ao falar em violência doméstica me restrinjo, neste trabalho, aos conflitos enquadrados como violência física. Essa delimitação é feita porque minhas interlocutoras na Casa Abrigo e a literatura na qual me baseio neste texto tratavam sobretudo de conflitos deste tipo.

3Há, certamente, uma série de outras previsões na Lei Maria da Penha vigente no Brasil, mas que escapam aos limites desta discussão. Para conhecer melhor seus serviços e instituições pode se ver, além de seu texto integral (Brasil 2006), trabalhos de Medeiros (2015), Simião (2015b) e Martinez-Moreno (2018).

4A menos que feita em uma audiência específica e solicitada com tal finalidade (Brasil 2006).

5Forum Kuminkasi Untuk Perempuam Timor-Lorosa’e (Fórum de Comunicação para Mulheres Leste-timorenses). A organização foi fundada em 1997, período no qual o território de Timor-Leste e seu povo passava pela anexação forçada à Indonésia, que durou de 1975 a 1999. Neste período foi compulsória a utilização da língua indonésia, o que implicava que a adoção dos nomes de organizações da sociedade civil seguisse as imposições do governo. Atualmente, idos de 2022, o acrónimo permanece o mesmo, mas as dirigentes apresentam a ONG como Fórum Komunikasaun ba Feto Timor-Leste, na língua tétum, idioma nacional e segunda língua oficial do país (a primeira é a língua portuguesa). Em 2015, período no qual a pesquisa de campo em que se baseia este artigo foi realizada, a Fokupers ainda se apresentava com o nome por extenso em sua forma na língua indonésia, razão pela qual mantenho como utilizada por minhas interlocutoras.

6Para uma leitura mais ampla dos serviços prestados pela Fokupers e suas interações com as mitra, conferir Santos Filho (2017, 2019b). As atividades compõem pedagogias jurídicas que visam aproximar as mulheres de um conhecimento sistematizado sobre seus direitos e sobre o acionamento de mecanismos institucionais operantes no Estado, mediando as relações entre indivíduos e não entre os grupos corporados que compõem as socialidades locais e seus complexos de regulação da vida local.

7Todos os nomes pessoais são fictícios a fim de proteger suas identidades.

8Timor-Leste é dividido em 12 municípios mais um enclave na porção indonésia na ilha de Timor. Cada município é composto por um conjunto de suku (aglomerado de aldeias).

9A celebração de casamentos enquanto fenômeno que engloba grupos mais do que indivíduos implica uma série de eventos rituais, principalmente se uma união for a primeira entre duas famílias que não são parceiras em alianças matrimoniais. Kelly Silva (2010: 209) demonstra alguns rituais possíveis de serem adotados até que se celebre a união entre um casal e, consequentemente, suas famílias: hamós dalan (limpar caminho), tuku odamatan (bater à porta) e koñese malu (conhecer-se). Nestes rituais se prepara o caminho para a chegada da família do noivo, se prestam as devidas deferências à família da noiva e se criam as primeiras negociações sobre os termos da união. Celebrado o casamento, as famílias criam um vínculo duradouro que será revigorado ao longo dos nascimentos dos filhos, da celebração de outros casamentos de membros dessas famílias e dos rituais fúnebres que ambas protagonizarem. São estes mesmos grupos que performarão nos processos de mediação de conflitos (justiça tradicional), quando ocorrerem.

10Esse arranjo é comum nas unidades domésticas leste-timorenses, sobretudo naquelas das zonas rurais. A entrada de novas mulheres nas lisan garante tanto o alargamento das relações de parentesco quanto novas divisões de trabalho, em especial entre as mulheres. As noras que entram nas casas são responsáveis pelos cuidados que um dia foram executados por suas sogras, o que gera um cenário onde, à medida que as mulheres ficam mais velhas, vão sendo autorizadas a dividir o trabalho entre suas filhas e, posteriormente, noras. Uma discussão a esse respeito foi elaborada por Kelly Silva (2017), que analisou como a agência feminina articula, localmente, diferentes níveis e possibilidades de exercício de poder em suas relações ao longo da vida.

11Sistematizei com mais detalhe as narrativas de quatro mulheres dentre as abrigadas na Fokupers no momento da pesquisa que estão disponíveis em outros trabalhos (Santos Filho 2016, 2020). Em todas era notável a presença de fatores diversos que contribuíam para a irrupção de conflitos, podendo se relacionar às relações com a família do marido, com o desejo de mudança do casal para outro espaço, a insatisfação com a poligamia, etc. As dinâmicas entre esses aspectos e certos determinantes de gênero, de geração e de divisão do trabalho nas unidades domésticas precisarão ser discutidos em trabalhos futuros. Faço essa nota justamente para porpor que estes elementos sejam incorporados nas análises feitas desde uma perspectiva relacional sobre a violência doméstica, especialmente no contexto leste-timorense.

12Coletivo feminista sediado em São Paulo que produzia atos públicos e mobilizações sobre os direitos das mulheres. O grupo fazia plantões de atendimento e orientação para mulheres sobre seus direitos e sobre aspectos legais envolvendo divórcios, agressões, etc.

13Um ponto importante da argumentação da autora é sobre a necessidade de se concentrar na análise sociológica dos conflitos e das narrativas apresentadas pelas mulheres, escapando de eventuais psicologizações sobre suas situações, o que não seria função das ciências sociais.

14Uma discussão sobre fantasias envolvendo debates sobre os sistemas de prestações matrimoniais em Timor-Leste nos anos 1970 foi elaborada por Silva (2015), discutindo que as representações sobre as práticas locais eram narrativamente disputadas por diferentes sujeitos que ora defendiam, ora criticavam a reprodução das mesmas. Tal debate se assentava em fantasias que agentes de ambos os lados projetavam sobre a questão. Essa discussão inspira os esforços analíticos aqui empreendidos.

15O que não exclui que se pense sobre as relações mãe-filha, pai-filho, cunhado-cunhado, cunhada-cunhada, etc. Ver, por exemplo, Damásio neste dossiê.

Recebido: 08 de Janeiro de 2021; Revisado: 07 de Maio de 2022; Aceito: 02 de Agosto de 2022

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons