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Etnográfica

versão impressa ISSN 0873-6561

Etnográfica vol.26 no.3 Lisboa dez. 2022  Epub 30-Jan-2023

https://doi.org/10.4000/etnografica.12504 

Artigo Original

Surras, pisas e coças: práticas familiares de criar pessoas em Canto do Buriti, Piauí, Brasil

Surras, pisas and coças: practices of creating persons in Canto do Buriti, Piauí, Brazil

Ana Clara Damásio1  , concetualização, análise formal, aquisição de financiamento, investigação, metodologia, administração do projeto, validação, visualização, redação do rascunho original, redação - revisão e edição
http://orcid.org/0000-0001-7426-7486

1Pós-graduação em Antropologia Social, Universidade de Brasília (UnB), Brasil, anaclarasousadamasio@gmail.com


Resumo

O presente artigo surge de uma pesquisa antropológica de cunho etnográfico realizada em Canto do Buriti, Piauí (Brasil) no primeiro semestre de 2019, que tinha como foco discutir, através das relações familiares, classificações associadas ao curso de vida, ao “envelhecimento” e às categorias de periodização da vida. Nesse contexto algumas cenas emergiram, dentre elas as que eu inicialmente classificava enquanto “práticas violentas”. Ao final da pesquisa foi possível compreender como as surras, pisas e coças eram práticas corpóreas e corporificadoras que atravessavam o curso de vida e apresentavam significados próprios. O que interessa ao presente artigo é apresentar como, através das interferências de fisicalidades múltiplas de pessoas sobre pessoas nas formas de surras, pisas e coças em relações interpessoais, intergeracionais e de gênero, eram formuladas estratégias cotidianas para criar pessoas.

Palavras-chave: antropologia; etnografia; violência; curso de vida

Abstract

The present article arises from an anthropological research of ethnographic nature carried out in Canto do Buriti, Piauí (Brazil) in the first half of 2019 that focused on discussing, through family relationships, classifications associated with the course of life, “aging” and the categories of periodization of life. In this context some scenes emerged, among them those that I initially classified as “violent practices”. At the end of the research it was possible to understand how spanking, stepping, and scratching were corporeal and embodied practices that crossed the course of life and had their own meanings. What interests in this article is to present how, through the interference of multiple physicalities of people on people in the forms of beatings, stomping, and scratching in interpersonal, intergenerational, and gender relations, daily strategies to create people were formulated.

Keywords: anthropology; ethnography; violence; life course

Canto do Buriti

A região onde está localizada a área que é compreendida como Canto do Buriti no estado do Piauí, Nordeste brasileiro, surgiu com a ascensão e exploração da borracha por volta de 1900 e,1 após a chegada de algumas famílias, oriundas de São João do Piauí, o local virou o intitulado povoado de Guaribas. Apenas em 1915 o povoado ganhou estatuto de município e foi nomeado como Vila Canto do Buriti. Com o declínio da produção da borracha o município perdeu autonomia e voltou a ser território de São João do Piauí. Já em 1938 a região conquistou mais uma vez autonomia e foi elevada ao estatuto de município com o nome de Canto do Buriti e assim permaneceu. Atualmente a economia gira em torno da agricultura de cana-de-açúcar, milho, melão, manga, apicultura e comércios locais. Canto do Buriti fica localizada no sudeste piauiense e tem como bioma a caatinga. De acordo com o último censo demográfico a cidade tinha 20.020 habitantes, sendo que apenas 8,8% possuía alguma ocupação formal (um total de 1854 pessoas).2

As famílias de Canto do Buriti 3 são criadas 4 entre o mundo e a origem. “Origem” é sempre utilizada para aludir a Canto do Buriti. Era aquilo que trabalhava em oposição ao mundo. Esse último é circunscrito em oposição e em relação à origem. O “mundo”, entretanto, era denominado principalmente enquanto São Paulo e Brasília. Essas famílias faziam parte do projeto de expansão econômica e capitalista do país que visava também uma nova configuração e reordenação do espaço urbano e rural (Sarti 1994). O ato de migrar para uma periferia de São Paulo resvalava, também, na expectativa de “melhorar de vida”, que estava atrelada intimamente à condição de pessoa migrante nesse contexto. As “famílias origem-mundo”, como chamo, são as famílias que surgiram em decorrência do processo migratório que ocorreu na cidade a partir de 1970 em direção a São Paulo, tendo como motivo a grande seca dos anos 70. Antes disso, havia migrações esporádicas dos homens para localidades próximas para executar serviços para latifundiários, mas sempre visando um retorno à origem.

Nesse grande fluxo, homens e mulheres, que à época da migração dos anos 70 tinham entre 12 e 20 anos, foram para esse mundo mais distante, novo e incerto virar mão de obra assalariada. As mulheres trabalhando majoritariamente como empregadas domésticas e os homens como serventes e pedreiros na construção civil. Com o crescimento da família na capital paulista, as famílias formadas no mundo acabavam adquirindo a “vida da correria”, apesar de terem na origem uma “vida parada”. Uma vida da correria é composta, principalmente, pela capacidade de as pessoas se adaptarem às grandes metrópoles e lá conseguirem viver. Nessa vida fica incluída a capacidade de se acostumarem ao transporte público, aos grandes deslocamentos diários, a poucas horas de sono, às longas jornadas de trabalho. Já a vida parada é regida pelas “relações de criação” 5 (Virgílio 2018) que envolvem bichos, terras e plantas.

Essas “famílias origem-mundo” agenciam esses espaços a partir de múltiplos trânsitos, não devendo ser tomadas como formadas pela mera dicotomia entre o lá e o cá, mas como famílias que possuem um processo de formação de suas relações de parentesco através de um estar-em-fluxo (Lobo 2018). Existem poucas famílias efetivamente de origem na cidade, pois a migração é parte constituinte das famílias de Canto do Buriti. Por mais que uma família fosse de origem, possuía algum parente 6 no mundo. Entretanto, há considerável número de famílias que, com o fluxo migratório dos anos 70, acabaram perdendo as origens e estão “soltas no mundo”. Nesse contexto de fluxo essas famílias buscam criar estratégias para executar a manutenção dos vínculos familiares, que serão aqui destrinchadas.

A partir do exposto é necessário frisar que as famílias aqui analisadas não são tomadas enquanto unidades naturais, mas como historicamente e socialmente produzidas. Ao mesmo tempo, não são lidas como unidades autônomas ou isoladas, mas como gestoras locais de forças nacionais 7 que são expressas em relações interpessoais (Fonseca 2007). Por outro lado, o presente artigo não busca apenas considerar a produção de famílias através de um contexto histórico, geográfico e político específico, mas compreender, também, como os arranjos familiares podem ser reprodutores sociais de pessoas,8 manejando, para isso, estratégias e recursos particulares. Isso nos obriga a situar a discussão sobre a ideia de reprodução em sentidos amplos, não apenas em seus termos biológicos, mas também sociais, econômicos e políticos (Fonseca 2007) Ao mesmo tempo, os casos e análises aqui considerados dizem respeito a um local - Canto do Buriti - que ainda não delegou ao sistema judiciário a gestão e regulamentação de práticas sociais que em outros contextos são tidas como “violentas” (Rifiotis 2021).

Na primeira secção deste artigo apresento as relações de vizinhança e como elas fazem eclodir cenas cotidianas ligadas às surras, pisas e coças. Na segunda secção emergirá a discussão acerca de como as surras são práticas relacionais. Na conclusão, elucidam-se os desdobramentos entre curso de vida e as práticas de criar pessoas por meio das surras, discutindo como esses alinhamentos não podem ser tratados como “práticas violentas”. Em suma, esse artigo pretende compreender como o processo de criar pessoas em meio às relações das “famílias origem-mundo” é atravessado pelo uso da força física empregada pelo próprio corpo com a utilização de instrumentos como calçados, pedaços de plantas resistentes como o cipó, as mãos, pedaços de mangueira, tecidos e até mesmo pedaços de madeira, resultando em práticas localmente nomeadas como surras, pisas e coças. Essas últimas são categorias êmicas e sinônimas,9 compreendidas enquanto castigos físicos que uma pessoa poderia administrar em outra, mediante o gênero, curso de vida e as relações intergeracionais postas.

Vizinhança

A casa da Lúcia (73 anos),10 minha principal interlocutora, fica localizada no Bairro Matadouro. Soube por ela que o bairro tinha esse nome por causa do matadouro que ali existia, mas que havia sido fechado e transferido para um local longínquo. A casa dela fica em uma das esquinas desse bairro, assim como a casa de Cora. Cora mora na única casa de taipa e chão batido da rua,11 onde há muitas redes espalhadas pelos dois cômodos que abrigam dez moradores. Há apenas uma televisão que serve de distração e entretenimento dos meninos e meninas.12

As filhas-mulher de Cora são constantemente criticadas pelos vizinhos por não “ajudarem” a mãe e só “prestarem pra parir”. Cora é a principal cuidadora das crianças (seus filhos e netos) 13 e chegou a perder dias de faxina quando alguma das crianças adoecia. Se perdia a faxina do dia, menos dinheiro entrava em casa. Com menos dinheiro, menos comida no prato de todos e esse era um assunto recorrente durante algumas conversas que tive com Cora. Como as filhas-mulher não contavam quem eram os pais das crianças, Cora ficava impossibilitada de “ir atrás, pedir pelo menos um saco de arroz, um leite”.

Geralmente era algum grito de Lucas e de João que me acordava. Os dois eram os filhos mais novos de Cora. Lucas foi o primeiro menino a falar comigo no meu primeiro dia em Canto do Buriti. Sempre ficava na grade do portão espiando o que ocorria dentro da casa da Lúcia ou puxando conversa comigo. Ele tinha por volta de quatro anos de idade. Às vezes eu não entendia bem o que Lucas falava, pois a chupeta em sua boca fazia com que as palavras saíssem bagunçadas. João era mais velho do que Lucas e um pouco maior que esse último. João era o companheiro de Lucas nas brincadeiras da rua e tinha aproximadamente oito anos de idade. Em um dos dias de campo em que me sentei na varanda, vi o dia em que João soltou um dos jumentos dos ciganos que estavam amarrados a um poste na esquina, montou no lombo do animal, ainda em pele, saiu gritando pela rua e batendo na traseira do bicho. Lucas acompanhou com suas pequenas pernas, ainda que ligeiras, a correria do jumento e do seu irmão. Não vi aonde foram parar naquele dia.

Como conta Lúcia, quando Cora, com cerca de 45 anos de idade, se mudou para a rua, não tinha todas suas filhas-mulher que já viraram mães e, tampouco, era avó. Assim como não possuía a cicatriz que atravessa sua testa de fora a fora e que é decorrente de um acidente de carro que quase a matou. Certo dia, enquanto estava sentada na varanda de Lúcia, acompanhei quando Lucas, filho-homem de Cora, pegou a chave da casa deles, trancou-a quando todos estavam na varanda e jogou a chave no meio do matagal que fica ao lado da casa deles.

Quando Cora percebeu o que Lucas havia feito, colocou todos os que estavam na porta da sua casa para procurar a chave no meio do matagal às dezenove horas da noite. Lucas resolveu também ajudar na caça à chave enquanto era jurado de pisa por sua mãe e irmãos. Não satisfeito, Lucas foi até sua casa e voltou com uma enxada para cavar o matagal no escuro. O irmão de Lucas, João, gritou: “Lucas, tu vai enterrar a chave!” Lucas deu duas batidas no mato a esmo com a enxada quando sua mãe também gritou: “Para com isso menino ou eu vou arrebentar tua cara!” Lucas abandonou suas tentativas mal sucedidas com a enxada e saiu correndo. Ao fim de aproximadamente meia hora tentando achar a chave e sendo mal sucedidos, Cora pegou emprestada uma marreta com outro vizinho e quebrou a fechadura da porta de casa para que pudessem entrar. Como não ouvi nenhum grito, creio que Lucas não levou a tão jurada pisa.

Um dia perguntei a Lúcia quantos anos Cora tinha e ela me contou: “Ela não é véia não. Vai trabalhar na casa dos outros. Lava, passa, limpa muro. Se não fosse o diabo da bebida… Tudo que aparece ela faz. É trabalhadeira que só. Tá com essas bichonas em casa.” As “bichonas” é como Lúcia se refere às filhas-mulher da Cora. Cora é a única que trabalha fora de casa e sustenta todas as suas quatro filhas-mulher além dos dois filhos-homem, Lucas e João. Cora também cuida das duas netas recém-nascidas e de outra neta, da idade de Lucas, que possui as “pernas tortas”.

Entretanto, a história que Lúcia mais conta sobre Cora é a de um dia em que seu atual marido “correu atrás dela [Cora] pra surrar ela”. Cora correu para dentro da casa de Lúcia e lá se escondeu. “Perguntei pra ele se ia entrar pra surrar ela aqui dentro da minha casa. Nisso eu tava parada na porta e ela lá dentro”, contou Lúcia. O marido de Cora não entrou e ficou esperando do lado de fora. Lúcia tampouco mandou Cora embora e afirmou que Cora, “ficou até quando ela quis”. Ao final da história, eu não soube se Cora foi surrada ou não. Em algum momento desses diálogos com Lúcia, ela me disse: “Hoje as meninas dela não deixam mais ele fazer isso. Tanto que ele nem vive mais aí com medo delas, vive lá pro interior.” O “isso”, ao qual Lúcia se refere, eram as surras que Cora levava do marido.

Apesar de os casos acima apresentados aludirem a diversas práticas que poderiam ser compreendidas enquanto “violência doméstica”, “violência contra a mulher” ou “violência contra a criança”, não havia, por parte das minhas interlocutoras, menção a tais categorias e classificações. Como as pesquisas etnográficas tocadas por Maria Filomena Gregori (2021: 76) apontam, houve um crescente reconhecimento público de que a violência entre casais não deveria ser encarada apenas como um problema privado ou de casal, mas sim como uma questão pública. Ainda que a criação das delegacias de defesa da mulher e a institucionalização da Lei n.º 11.340/2006 (Lei Maria da Penha) tenham impacto em explicitar que tais agressões configurariam crimes e “violência doméstica”, em Canto do Buriti as nominações do uso da força (surras, pisas e coças) não se enquadram nesse panorama.

Como Maria Filomena Gregori (2021: 78) apontou, o termo “violência” incorre em um reconhecimento social e “[não apenas legal] de que certos atos constituem abuso, o que exige decifrar dinâmicas conflitivas que supõe processos interativos atravessados por posições de poder desiguais entre os envolvidos”. Como será visto à frente, as hierarquias e as assimetrias de poder estão preestabelecidas em Canto do Buriti através das relações de gênero (homens e mulheres), relações intergeracionais (adultos e crianças, netos/filhos e avós) e nas relações conjugais (marido e mulher). Os atos e gestos (surras, pisas, coças) que derivam dessas relações hierarquicamente estruturadas e assimetricamente construídas não são vistos nesse contexto como um tipo de “violência” passível de judicialização. As surras, pisas, e coças são lidas, ao contrário, como um processo de criar pessoas, justamente por não haver um reconhecimento social local das mesmas enquanto tipos de agressões que deveriam ser resolvidas pelo Estado ou por pessoas que não são da “família”.

Lúcia me disse abertamente que não concordava com as surras que Cora levou do marido, mas em nenhum momento as caracterizava como “violência doméstica” ou “violência contra a mulher”. Meu apontamento é de que isso se dava justamente porque essas práticas não eram exclusivas da “violência contra a mulher”, mas eram encaradas como práticas características de todas as relações interpessoais naquele contexto. Havendo a legitimidade local para o uso da força nas formas de surras, pisas e coças de pessoas sobre pessoas em suas relações cotidianas em diferentes configurações hierárquicas, dificulta-se que tais práticas sejam compreendidas socialmente, neste contexto, como “violentas”.

Talvez eu pudesse fazer uma tradução dessas práticas enquanto violentas, mas isso encerraria outros significados atribuídos localmente a essas práticas. Por isso, opto estrategicamente por não usar o termo “violência” como categoria analítica nesse contexto e lidar com as compreensões locais do campo. Não usar “violência” como categoria analítica advém, também, do alerta de Rifiotis (2021: 105-106) de que a “violência” teria se tornado uma espécie de “significante vazio” que acolhe historicamente novos significados e situações múltiplas. Ao mesmo tempo, o autor frisa que a “negatividade” atribuída de forma genérica à “violência” faz com que possamos deixar de fora fenômenos que evocam o “caráter plural e multiforme” da categoria em nossas análises. Abrir mão da “violência” enquanto categoria de análise aqui também advém de outra lição valiosa da antropologia, a de que é o campo que atualiza a teoria e não o contrário (Leach 1996). É o campo que mostra a possibilidade de pensar as teorias vigentes e em curso. Não há como apenas encaixar o campo em nossas concepções e categorias prévias, sobretudo quando nos deparamos com categorias moralizantes e que pressupõem juízos de valor particulares.

Ressalvas feitas, adentro novamente em outro dia notório em Canto do Buriti que ajuda a elucidar o que tenho aqui apresentado. Era por volta das 23 horas quando me deitei para dormir. Pensei que estivesse sonhando com gritos, mas ao acordar tomei consciência de que os gritos que eu escutava não derivavam de um sonho, mas eram reais. Me concentrei na voz: “Para, papai! Para, papai! Você vai matar minha mãe!”. Não era a primeira vez que eu tinha contato com esse tipo de cena na cidade. À noite é comum ouvir alguma briga se desenrolando pela vizinhança e durante o dia também. Quando a manhã vinha após esses episódios noturnos, as notícias chegavam através das vizinhas de Lúcia, que apontavam com precisão de quais casas os gritos haviam partido, quem apaziguou os conflitos, as lesões e os envolvidos.

Pela manhã, logo após o episódio em que ouvi a criança gritar, falei com uma vizinha de Lúcia e ela disse que escutou a mesma briga na noite anterior. Ela contou que a briga era próxima à rua dela e que o homem que surrou a mulher morava em São Paulo e já tinha sido abandonado por uma esposa lá. Essa esposa foi embora e deixou o homem com quatro filhos. Pouco depois os quatro filhos o abandonaram também, “não aguentaram”, afirmou ela. Ele seguiu para Canto do Buriti e casou novamente. A mulher que foi surrada na noite anterior era sua nova esposa. A criança gritando, sua filha:

“Ele bebeu e quebrou tudo. Um filho que ‘tava lá dentro segurou ele. Senão tinha sido pior. Mora um véi que ‘tá 90 anos numa cama que é pai dele.14 Uma senhorinha que é mãe dela correu pra acudir e caiu, a coitada. Fiquei com dó da menininha gritando pedindo socorro. Domingo o povo fecha a casa cedo. Ninguém abriu as portas.” [Diário de campo, abril de 2019]

Mais tarde me contou outra vizinha da rua de Lúcia que a mulher surrada foi vista enterrando facas que estavam em sua casa na areia do quintal, enquanto seu marido saiu. De acordo com ela, a mulher deveria estar “com medo de ser furada, né. Quando ele chegou continuou surrando ela até os véi chegar.” Foi o filho do homem que surrou a esposa que apaziguou o conflito de um lado. Do outro lado, foi a mãe da mulher surrada que chegou para “acudir”. Foram pessoas da família que fizeram a contenção do conflito e que por ele também foram afetadas.

Os véis e véias, além de serem provedores de parte considerável da renda das famílias através de suas aposentadorias nesse contexto, já que são poucos os postos de serviços remunerados na cidade, também atuam como figuras conciliadoras, apaziguadoras e administradoras dos conflitos familiares. Isso vai ao encontro da outra memória acionada por Lúcia para falar do seu passado sempre que eu perguntava sobre as surras que ocorriam na cidade. Ela lembrava do dia em que seu cunhado acertou várias facadas em seu peito e a única pessoa a intervir foi justamente um primo que ouviu seus gritos e correu para ajudá-la. Ao mesmo tempo, quando parava para reviver essa memória dizia: “Ninguém na rua abriu as portas pra me acudir. Se não fosse meu primo eu tinha morrido bem ali mesmo.” Além disso, o “ninguém abriu as portas” nesse contexto revela que, independentemente do que ocorresse e apesar dos detalhes das surras circularem nos ambientes públicos no dia seguinte, ninguém (de fora da família) ousava intervir.

Em Canto do Buriti as mulheres mantêm uma preocupação grande e constante com o que chamam de boatos e mexericos. Estes, em uma cidade tão pequena, ainda são extremamente perigosos, principalmente para as mulheres. Em primeira instância poderiam fazer com que as mesmas fossem surradas pelos seus maridos e, em última, com que fossem banidas da cidade, como ocorreu com Itamar. Itamar, que tinha 63 anos, foi vítima de um boato quando era moça em meados de 1970. O boato poderia ser sumarizado no fato de que ela não mais possuía sua “virgindade”. Isso foi capaz de acabar com a “respeitabilidade” e a “moral” de Itamar enquanto uma moça com potencial para encontrar maridos e companheiros. Após os boatos, sua entrada em muitos estabelecimentos na cidade passou a ser negada. Esse episódio culminou em um estado psíquico e emocional que ela categoriza enquanto “depressão”. Itamar contava que após o afastamento das pessoas começou a evitar sair de casa e ir à rua. Elencou que a perda da respeitabilidade culminaria em apenas dois caminhos possíveis naquele cenário: enquanto mulher negra e pobre lhe restava a prostituição ou a saída da cidade. Com a morte da sua avó e o distanciamento da sua mãe, Itamar escolheu o caminho do mundo. Contou-me ainda: “Fui-me embora dessa cidade virgem, namorar eu até namorei com uns, teve um que até morreu, mas nunca fui pra cama com nenhum deles aqui.” Itamar verbalizava essa frase com orgulho genuíno, mas ainda contendo os resquícios de raiva e mágoa.

Em Canto do Buriti não fui a bares, pois eram espaços majoritariamente masculinos, e também não saí à noite. Mesmo tantas décadas depois eu sentia o peso de, em 2019, vivenciar na cidade as restrições e prescrições para ser uma moça inclusa em categorias morais de respeitabilidade. Como Cláudia Fonseca (2000: 41) aponta em etnografia realizada na Vila do Cachorro Sentado, de grupos de camada popular em Porto Alegre:

“A fofoca envolve, pois, o relato de fatos reais ou imaginários sobre o comportamento alheio. Ela é sempre concebida como uma força nefasta, destinada a fazer mal a determinados indivíduos. Ninguém se considera fofoqueiro, mas todo mundo concorda em dizer que há fofoca constantemente na vizinhança.”

A vizinhança é o espaço onde as relações próximas são dadas, onde as histórias são contadas, onde os problemas são conhecidos, onde é possível escutar antes do meio dia quais panelas estavam “chiando” e quais panelas não tinham o que colocar dentro para que chiassem.15 Onde cada um, apesar de negar, acaba sabendo e “cuidando da vida alheia”, como apontou uma vizinha de Lúcia. Tais relações de vizinhança podem ser encaradas como características sobretudo de cidades pequenas. Como pondera DaMatta (1997: 8), os espaços não podem ser lidos apenas como espaços geográficos, mas também como espaços sociológicos, entidades morais e “por causa disso, capazes de despertar emoções, reações, leis, orações, músicas e imagens esteticamente emolduradas e inspiradas”.

Ana (54 anos), filha de Lúcia, me disse que quando era menina, sempre que sua mãe ia surrá-los, ela e seus irmãos corriam para adentrar a casa da avó paterna para que Lúcia não realizasse seu intuito. A avó paterna servia como uma espécie de protetora contra as surras que os netos poderiam levar. Em outro dia, sentada mais uma vez na varanda de Lúcia, vi quando um menino que tinha por volta de cinco anos e que morava nas redondezas chegou para brincar com Lucas e João. Pouco depois a mãe desse menino apareceu com uma sandália na mão direita e disse: “Passa pra casa seu filho de jumento com calango!” Enquanto proferia as palavras, acertava as costas e pernas do menino com a sandália de borracha. Essa mãe continuou: “Quando chegar em casa tu vai levar uma coça!” Ouvi o choro do menino ecoar pela rua e ao chegarem em casa foi possível ouvir o pai do mesmo dizer: “Já falei que não quero você brincando com aquele povo!”16 O choro continuou, assim como a coça.

Me espantava o uso da força física empregada em um menino tão pequeno, mas como ninguém ousava dizer nada, eu também nada poderia dizer. É assim que o tempo em campo vai matizando nossas preconcepções. Essas surras ocorrem tanto dentro de casa (como apontei no caso de Cora e de outra vizinha das redondezas), quanto nas ruas (como no caso de meninos e meninas, como pode ser visto nas lembranças de Ana e agora com o caso desse menino que saiu de casa para brincar na rua). Essas delimitações espaciais me indicavam que essas práticas estavam amarradas às cenas do cotidiano público e privado.

O que era lido por mim apenas como “práticas violentas” no início do campo foi sendo matizado e relativizado com o tempo. Não posso chamar de “práticas violentas” as surras, pisas e coças, pois elas não eram assim nominadas ou lidas pelas interlocutoras. Fazer essa transposição é extremamente perigoso e apaga as potencialidades de pensar como as pessoas criam umas às outras nesse contexto por meio das surras, pisas e coças. O campo é o cerne e a partir desta perspectiva discutirei como as categorias que emergem apresentam suas próprias especificidades, considerando que a “etnografia não é apenas um método, mas uma forma de ver e ouvir, uma maneira de interpretar, uma perspectiva analítica, a própria teoria em ação” (Peirano 2008).

Por conseguinte, é preciso também que fiquemos atentos para a transposição de categorias que possuem adesão e significado em contextos urbanos e metropolitanos, para contextos rurais e interiores. Muitas vezes essas transposições rápidas não deixam vazão para apreender como a linguagem e as categorias êmicas comunicam coisas outras (ou como não comunicam o que achávamos previamente). Assim, a análise das surras a partir da categoria analítica e moral “violência doméstica” não serviria para interpretar as experiências vividas em campo com e pelas interlocutoras. Dessa forma, o que me interessa aqui é explicitar como, através do uso da força física e do manejo de fisicalidades de pessoas sobre pessoas, em suas relações interpessoais, intergeracionais e de gênero, são criadas estratégias para criar pessoas.

Como demonstrei através dos casos etnográficos na vizinhança, mais especificamente a partir de Lúcia, Cora, Lucas, João, Ana, do menino da rua de baixo e da vizinha surrada pelo marido, ocorria uma delimitação reconhecida socialmente de quem poderia exercer esse mecanismo de punição através do recurso à força física por meio das surras, pisas e coças e quem poderia recebê-las. Ao mesmo tempo ocorria a delimitação de quem poderia ou deveria administrá-las, o que nos casos aqui analisados foram os parentes próximos (avós, filhos, pais e companheiros).

Entretanto, por mais que minhas interlocutoras não estejam falando de “violência contra a mulher”, “violência de gênero”, “violência doméstica”, “violência conjugal” ou “violência familiar”, evidencia-se como, na estruturação das relações cotidianas que também são hierárquicas, se utilizam designações geracionais e de gênero, para definir quais são os corpos autorizados a ministrar as surras e aqueles que as receberão, já que a definição dessas hierarquias nas relações interpessoais tem como base eixos de desigualdade (Gregori 2021). Estes se mesclam para criar maior vulnerabilidade para determinados grupos (mulheres, crianças e idosos). Essa mesma configuração informa que as surras, pisas e coças que estão espraiadas em tantas relações cotidianas não são vistas localmente como “violências” passíveis de judicialização, mas sim como práticas para criar pessoas (que serão apresentadas abaixo), orientar tipos esperados de comportamentos ou apenas viabilizar a vazão da raiva, frustração e descontentamento.17

No momento em que tais práticas se dão na família, vivenciada como a detentora do poder de definir o que é um gesto de violência e um gesto de criar, evidencia-se que nesse contexto o domínio jurídico não possui força ou autonomia para transformar processos de criar pessoas que se assentam em fisicalidades múltiplas e hierarquias, em gestos de “violência”. Exemplo disso foi um importante dado que me foi confiado em uma conversa com Rosa (64 anos), uma das minhas principais interlocutoras em Canto do Buriti. Ela me disse que a delegacia da cidade não abre aos finais de semana: “Aqui se uma casa for assaltada ou alguém morrer, só na segunda-feira pra alguém fazer alguma coisa. Isso se fizer.” As famílias administravam os próprios conflitos, surras, pisas e coças, bem longe do domínio jurídico.

Surras, pisas e coças

Qualquer pessoa pode ser surrada? Há uma prescrição e hierarquia de gênero, geração e conjugalidade que localiza circunstancial e relacionalmente quem aplica a surra e quem recebe. Como apresentei na secção anterior, é mais comum que crianças sejam surradas por adultos, e mulheres por homens. O que nos interessa aqui não é a “violência simbólica” (Bourdieu 2002), mas sim a conformação de determinados corpos enquanto dóceis e passíveis de controle a um procedimento de sanção normalizadora (Foucault 2009).

É por isso que a análise do curso de vida tem considerável peso para a compreensão sobre as surras. As categorias locais de classificação atreladas à periodização da vida possuem sentidos particulares e tendem a definir as posições dos sujeitos dentro do esperado. Vale ressaltar que sempre há exceções, mas o que me interessa aqui é o modelo ideal do curso de vida, o prescritivo, o que as pessoas esperam que seja cumprido. Divido as principais categorias locais relacionadas ao curso da vida em Canto do Buriti em: menino e menina, moço e moça, homi e muié, véi e véia.18 Os significados dessas categorias e as distinções entre elas seguem regras ligadas, principalmente, às relações de gênero, à vida reprodutiva e à capacidade das pessoas de executar alguns trabalhos.

O menino e a menina são lidos localmente como aqueles que, em termos de carreira erótica, ainda não mantêm relações sexuais, mas podem vir a executar pequenas tarefas e favores dentro e fora de casa, como guardar a louça, levar recados a alguém, ir à rua, comprar algo no supermercado, varrer a casa, fazer companhia aos avós quando outros familiares precisam se ausentar. A moça e o moço, por sua vez, já passaram desse estágio e começam a sair com mais frequência e sem tanta vigilância e supervisão dos adultos. Eles podem frequentar espaços que eram costumeiramente de homes e muiés, como festejos, idas à igreja, “movimentos”. Esses últimos são reuniões que ocorrem à noite, preferencialmente nos finais de semana, com som automotivo e ingestão de bebidas alcoólicas. É nesses momentos que os primeiros namoros ocorrem, e essas pessoas são lidas como capazes de executar trabalhos na roça ou em algum outro serviço remunerado fora de casa.

Em seguida, os homi e muié surgem quando capazes de, no primeiro caso, ser “pai” e “trabalhador”, e no segundo de ser “mãe” e poder ter um “marido”. A formação de uma nova família passa a ser a principal preocupação nesse momento do curso da vida e em seguida a aquisição ou construção da casa que irá abrigar a nova família. Entretanto, alguns arranjos vão sendo feitos. Até a aquisição de uma casa os filhos do casal poderiam já ter nascido. Quando isso acontecia, geralmente, o casal acabava morando na casa dos pais ou construindo uma casa no terreno destes.

Temos então os véis e véias. Estes pertencem a um universo de quem já passou pelos momentos anteriores, criaram uma “família”, tiveram os filhos-homens e filhas-mulheres e, então, estão aguardando a chegada dos netos. É após o estabelecimento dos filhos e dos netos em uma nova família que as pessoas passam a se autonomear como véis e véias ou a assim serem nomeados por outros. A etariedade não é a principal marca para localizar alguém enquanto véi ou véia, mas sim os acúmulos desses papéis (avô/avó). Ademais, caso não viessem a ser avós, é o “acúmulo de idade” que englobava essas pessoas nessas categorias e enquanto uma “pessoa de idade”. O cumprimento do curso de vida que apontei acima não é visto apenas como a expressão de um caso individual ou isolado, mas de como as pessoas, em Canto do Buriti, idealizam o cumprimento do curso de vida.

Por conseguinte, a argumentação que Carlos Eduardo Henning (2016) faz sobre “tempo” é essencial, pois a “temporalidade” guia em parte a perspectiva ocidental de que “no início” existe um campo de possibilidades e no fim do curso de vida a limitação e finitude aparecem no quadro da existência. Ariès (1981) ressalta que as categorias falam em um tempo de classificação da periodização da vida e são construídas de acordo com as relações demográficas, interesses políticos, econômicos e morais. Dessa forma, ele apresenta como a ideia de “juventude” foi a privilegiada ainda no século XVII, posteriormente a “infância” no século XIX, e por último a “adolescência” no século XX. Nenhuma dessas categorias de periodização da vida está desligada dos interesses mais amplos do seu tempo e contexto. E em Canto do Buriti elas têm adesões próprias, como apresentei acima.

A hierarquia de quem pode dar ou levar surras é definida, também, pelo curso de vida. A mudança de estatuto, que vem com o deslocamento no quadro da periodização de vida, ocorre em conjunto com a aquisição de direitos e deveres, e um desses estava atrelado à possibilidade de administrar surras em determinados corpos. Entretanto, os corpos mais atingidos nesse processo são os dos que estavam na etapa inicial do curso da vida, os meninos/meninas, pois todos os adultos que mantêm relações de parentesco com esses meninos/meninas (principalmente mãe, avó, pai, avô e irmãos mais velhos), podem surrá-los. Nestes, as surras, pisas e coças são usadas com o intuito de docilizar e domesticar com um sentido pedagógico de criar as crianças.

Em que consiste o criar? Em Canto do Buriti é muito comum escutar as pessoas apontando que: “Foi ela que me criou!”, “Criei você pro mundo!” Criar está intimamente relacionado ao universo feminino. É necessário sinalizar que em Canto do Buriti as práticas heteronormativas são as reguladoras das regras que estabeleciam a reprodução, idealização e normatização do curso de vida. A divisão sexual, o trabalho e toda a vida social são estabelecidos em consonância com o estabelecimento de quem é homi e muié, quem é o filho-homem e quem é a filha-mulher. Concomitantemente, as mulheres são as principais responsáveis pelos espaços de criação. Esses espaços são delimitados por um conjunto constituído por filhos, bichos, casas, casamentos, trabalhos, parentes. Além disso, as mulheres são as responsáveis por fazer a manutenção dessas criações e garantir que os vínculos entre casa, pessoas, matrimônios, roças e bichos sejam mantidos. Elas, então, o fazem através de um saber-fazer (Foucault 1972), um saber-criar e, consequentemente, um saber-surrar. Nesse sentido, elas eram literalmente as responsáveis por criar tanto materialmente quanto simbolicamente. Em suma, uma das estratégias e práticas de criação nesse contexto passa pelo manejo de surras, pisas e coças. A esse respeito e em pesquisa realizada a partir do projeto de lei contra castigos físicos na educação de crianças no Brasil e das práticas educativas e disciplinares observadas nas comunidades ribeirinhas da região do Tapajós, Medaets (2013: 1) afirma que “os castigos físicos integram o repertório de dispositivos disciplinares”. Em Canto do Buriti ocorre o mesmo, mas não são empregados apenas em crianças, eles se espraiam para todo o curso de vida de uma pessoa.

Não quero, com isso, sugerir que as mulheres são responsáveis por construir um sistema que produz surras de outros tipos, como dos homis contra as muié, que elas poderão sofrer posteriormente. Há uma diferença entre as surras, pisas e coças ministradas nos meninos e meninas e as aplicadas pelos homis contra as muié, principalmente na intensidade. É impensável, por exemplo, que uma surra em um menino/menina ou em um véi/véia seja tão severa ao ponto de comprometer alguma capacidade física ou intelectual dos mesmos. Entretanto, isso poderia ocorrer com as muié. Como me contou Maria (54 anos), filha de Lúcia, uma de suas lembranças mais marcantes quando menina em Canto do Buriti foi justamente a de uma muié que levava surras do marido com certa frequência e que teve sua orelha direita cortada, procurando abrigo na casa de sua mãe. Os parentes da muié souberam do fato. Entretanto, esses últimos haviam migrado e dessa forma acabaram abrigando-a em São Paulo. Ela nunca mais voltou para Canto do Buriti.

Isso mostra que nesse contexto as surras, pisas e coças podem ser encaradas como estratégias e gramáticas para criar pessoas como os meninos/meninas, ao mesmo tempo que são mecanismos de gênero onde homis fantasiam (Moore 1997, 2000) autorização para exercer fisicamente controle sobre os corpos das muié. Percebo que as surras nos meninos/meninas também são formas de controlar aqueles corpos, conformando-os a certos comportamentos. Da mesma forma, as surras nas muié também são formas de estimular determinados comportamentos, mas também podem ser reflexo apenas de um marido que chegou frustrado em casa depois de um dia de trabalho e resolveu descontar as frustrações na esposa após beber muito, como me contou Lúcia sobre uma antiga vizinha que tinha um companheiro alcoólatra. As surras poderiam assim ter o mesmo nome, mas eram empregadas com diferentes intuitos e intensidades.

Há um limite, uma ética de quem pode/deve tomar surras, tão severas ao ponto de perder uma parte do corpo, como uma orelha, e quem pode/deve tomar surras com o único intuito pedagógico. Entretanto, a partir do momento que a menina modifica seu estatuto e passa a ser uma moça e posteriormente muié, fica suscetível a graus mais elevados e severos de surras. Com o passar do tempo, caso venha a adquirir o estatuto de véia, essa muié então adentra mais uma vez no espaço em que seu corpo passa a ser visto como menos surrável pelo marido, mas ainda é um corpo suscetível a surras de netos, filhos e sobrinhos. Isso porque a surra que pode receber em âmbito domiciliar “é expressão e consequência de vivências ou conflitos que se armam, basicamente, na esfera das relações intergeracionais” (Motta 2009: 8). Como me contou Lúcia, algumas discussões com sua falecida sogra eram acirradas ao ponto de a mesma dar um “tapa” em sua sogra:

“Essa véia [sua sogra] me encheu o saco. Nesse tempo eu já morava na minha casa. Não tinha muro como hoje, era de cerca no quintal. Tinha uma cerca de madeira. Pra não ser obrigado a ir pela frente, foi aberto um buraco pela cerca. Nós discutimos. Ela do lado do muro dela e eu do meu. Nesse dia eu tava do meu lado e ela tava do lado do muro dela. Dei um tapa nessa véia. Mas morro negando que não aconteceu. Luizim tava trabalhando esse dia.” [Diário de campo, maio de 2019]

Assim, apesar de os véis/véias adentrarem espaços da periodização da vida que resguardam seus corpos de surras mais severas como no caso das muiés, uma véia poderia cair e sofrer uma lesão ao tentar intervir na surra que uma nora leva (como apresentado na secção anterior). Ou como Lúcia mostra, por mais que os véis não pudessem mais ser surrados publicamente, isso não impedia que episódios como o “tapa” ocorressem longe de outros olhares. Os véis/véias não estão isentos de sofrerem reverberações causadas pelas surras, pisas e coças em terceiros ou até mesmo modalidades de castigos físicos de parentes.

A família, como apontam Debert (2013) e Britto da Motta (2013) em seus respetivos contextos de pesquisa, pode muitas vezes ser o espaço principal em que esses sujeitos velhos podem estar expostos a “violências” de diversas ordens e tipos. Por mais que eu não utilize “violência” como principal categoria analítica, é importante compreender como as interferências de fisicalidades múltiplas de pessoas sobre pessoas também são operantes em contextos relacionais. As surras são ministradas tanto na rua quanto dentro de casa. Se ocorrem na rua e ninguém nada fala é porque, de alguma forma, as pessoas regulam e normatizam essas práticas, como o menino tocado pra casa a chineladas pela mãe no meio da rua ou como a mulher da vizinhança que escondeu as facas. As surras nesse contexto podem ser compreendidas também como uma maneira de fazer a manutenção de poder e de compreender as relações de gênero e raciais (Moore 1994).

Se por um lado a família pode ser lida como uma parentela de duas gerações que agem de forma coordenada sob a chefia de um indivíduo (DaMatta 1987), ela também pode ser entendida como constituidora de um valor moral que é estabelecido de acordo com regras de reciprocidades e obrigações dentro do grupo e contexto (Mauss 1974[1923-24]). Se trato as surras como forma de comunicação, é porque elas faziam parte de uma teia construída cotidianamente a partir de reciprocidades. Troca-se comidas, substâncias e afetos, mas também surras, pisas e coças dentro dessas famílias. Assim, as famílias não podem ser compreendidas como organismos que funcionam em plena harmonia. Pelo contrário, devem ser pensadas como configurações complexas (Bilac 2006), onde dimensões de gênero, sexualidade, trabalho, valores, poder, geração, conflitos, escolaridade e assimetrias coexistem no mesmo fenômeno.

Ainda que haja práticas estatais que buscam reconfigurar narrativas do corpo e do gênero enquanto práticas “violentas”, como ocorre no processo de construção narrativa da violência doméstica (Simião 2006), isso não ocorre na socialidade local em Canto do Buriti. Ou melhor, as práticas corporificadoras não eram vistas como “violentas”, mas como mecanismos de criar pessoas, por meio do exercício de poder, de controle e domesticação. É na complexidade de criar pessoas através de surras, pisas e coças que a vida em família com suas relações geracionais e de gênero é, também, criada no cotidiano.

Conclusão

A questão central do artigo está localizada em como surras, pisas e coças são peças centrais para compreender as relações em família, gênero e curso da vida em Canto do Buriti. É relevante sinalizar que, apesar de as surras serem tão disseminadas ao longo do curso de vida das pessoas e serem uma prática aplicada em muiés, meninos/meninas e nos véis, elas não devem terminar com a morte daquele que foi surrado. Talvez esse seja o limite dessas interferências de fisicalidades múltiplas de pessoas sobre pessoas. Por outro lado, as surras são um reflexo da vida em família e, por outro lado ainda, elas são encaradas como mecanismo corretivo, educacional e socializador dos meninos e meninas. Estes últimos crescem dominando a gramática das surras, pois elas podem ser administradas em seus corpos por praticamente qualquer parente mais velho que ele. Eles são criados sob o recurso a essas práticas como parte do cotidiano familiar.

As surras perpassam todo o curso de vida das pessoas, biografias e vida em família. Todos sabem falar sobre surras, pisas e coças. Se uma menina é surrada para que de alguma forma não voltasse a repetir determinado comportamento, acaba levando uma coça do marido, e poderia ainda ser surrada quando fosse uma véia por algum parente mais novo. Nesse sentido, não é por acaso que as interlocutoras em campo possuíam uma habilidade em falar tanto das surras que levaram, quanto das que aplicaram, pois eram histórias e lembranças que estavam no cerne das trocas cotidianas e familiares. Com o atravessamento dessas práticas através de todo o curso de vida, pude perceber que a constituição, comunicação e manutenção das relações familiares se davam inclusive através dessas práticas de uso da força física (surras, pisas e coças).

As relações familiares não podem ser consideradas apenas em seus aspectos positivos, é preciso levantar, e é o que o presente artigo faz, que esses aspectos “negativos” (surras, pisas e coças) de fazer família que não viraram práticas corpóreas judicializadas, também constituem parte considerável de como uma família consegue docilizar determinados corpos, conformá-los, e com isso empreender sua reprodução enquanto grupo ao longo do tempo. Não é apenas o carinho, amor, compreensão e paz que fazem a vida em família. Esses momentos também existem, mas a família é também espaço de conflito e faz tipos de pessoas a partir de suas práticas atravessadas pelas surras.

Ademais, friso que é importante considerar que as pessoas dentro das suas próprias famílias são também consideradas, pesadas, lidas, mensuradas e entendidas em seu fazer-família, relação e relacionalidade (Carsten 2000). Elas estão agindo cotidianamente através de relações que foram construídas ao longo de uma vida através da efetivação de trocas de substâncias, comidas, afetos e conflitos (Carsten 2014). Sigo também a compreensão de que não podemos tomar a família como lócus de análise perpassada apenas em seus termos positivos, mas considero que os (des)afetos, mentiras, fracassos, surras, pisas e coças são parte desse fazer-família (Lobo 2020). Surras, pisas e coças lecionam gramáticas variáveis aos contextos, podem ser compreendidas como práticas criadoras de pessoas, corpos e comportamentos. Nesse sentido, nenhum conceito, seja das surras, pisas, coças ou “violência”, é fechado, exclusivo e tampouco generalizante. Eles são o que são, partes possíveis do fazer vida, família e relações.

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1 O presente artigo deriva da dissertação intitulada Fazer-Família e Fazer-Antropologia: Uma Etnografia sobre “Cair pra Idade”, “Tomar de Conta” e Posicionalidades em Canto do Buriti-PI (Damásio 2020). Piauí é um dos nove estados que compõem a região Nordeste do Brasil.

2Dados do Censo 2010. Disponível em https://cidades.ibge.gov.br/brasil/pi/canto-do-buriti/panorama (última consulta outubro de 2022).

3Essa etnografia foi escrita a partir de pesquisa de campo realizada em Canto do Buriti acompanhando algumas famílias da cidade, mas principalmente a família Silva Sousa.

4Todas as palavras em itálico estão escritas de acordo com a pronúncia e os significados atribuídos pelos sujeitos com quem dialoguei/convivi em campo.

5As “relações de criação”, nesse contexto, envolvem incialmente a relação de uma mulher (a criadora) com seus bichos (criação). Essa relação se desdobra para outros espaços onde a criadora cria mais do que bichos, mas também filhos, maridos, casas, em suma, um povo.

6“Parente”, nesse contexto, é a nominação dada às pessoas que descendiam de um mesmo antepassado em comum (Augé 1978).

7Nesse sentido aqui utilizado é possível apreender como nenhuma relação social familiar é isolada de contextos amplos de interesse, como os interesses do próprio Estado-nação. Já que essas famílias são germinadas historicamente, geograficamente e socialmente.

8O presente artigo lida também com a categoria de criar pessoas (ponto que será complexificado mais abaixo), noção que esbarra na categoria de pessoa de acordo com Mauss (1974[1938]). A pessoa é composta de relações, é aquele que tem uma história, uma origem, que tem redes sociais, que possui uma “dignidade/honra”. A pessoa não é uma “qualquer”, ela é “alguém” constituída de maneira relacional. O que varia socialmente e culturalmente são as formas de construção da pessoa. No presente caso, a forma de criação dessas pessoas passa em meio as surras que buscam ensinar sobre hierarquias, expectativas de condutas, e reproduzir esquemas de sociabilidade, gênero, geração, autoridades, etc. A noção de pessoa é aqui considerada enquanto produto da criação em Canto do Buriti.

9Surras, pisas e coças são categorias sinônimas. No contexto de pesquisa não há uma demarcação rígida que diferencie uma surra de uma coça ou de uma pisa, por exemplo. Por esse motivo, opto por me referir apenas às surras para maior fluidez do texto. Mudarei a forma de nominar apenas quando eu estiver me referindo especificamente a uma coça ou pisa nomeadas enquanto tais pelos interlocutores.

10Todos os nomes dos interlocutores aqui utilizados são fictícios.

11Taipa é o processo de construção de paredes que utiliza barro amassado para preencher os espaços criados por uma espécie de gradeamento com paus, varas, bambus, caules de arbustos, etc.

12Todas essas categorias atreladas ao curso de vida em Canto do Buriti serão destrinchadas mais abaixo.

13Chamo em alguns momentos os mesmos de filhos-homem e em outro de meninos. Isso ocorre por ser a forma como contextualmente eram lidos e nominados. Um filho-homem é assim nominado por todo seu curso de vida, mas perde o status de menino conforme o curso de vida segue.

14A expressão é aqui utilizada para comunicar que o “véi” vivia adoecido, por isso tanto tempo na cama.

15Chiar era utilizado pelas interlocutoras para descrever o barulho que as panelas, principalmente as de pressão, faziam.

16Ressalto que a família de Cora era, de muitas formas, condenada moralmente pelos vizinhos. Ela era conhecida como uma pessoa que “bebia demais” e suas filhas tinham filhos fora do matrimônio, atos condenáveis moralmente pela vizinhança. Assim como as festas que ela fazia e as brigas que tinha com suas filhas após ingestão de álcool. Como ressaltei no texto, a casa de Cora era a única de taipa da rua, enquanto as outras eram de alvenaria. Isso tudo fazia com que ela e suas filhas acabassem sendo estigmatizadas pela vizinhança, como na expressão pejorativa utilizada “aquele povo”.

17É importante sinalizar que ao longo do campo tive majoritariamente acesso aos espaços femininos de socialização. Entretanto, as mulheres não falavam abertamente que estavam sendo surradas pelos respetivos companheiros. No plano discursivo as surras sempre apareciam como parte da relação de uma outra mulher com seu companheiro, mas nas práticas interativas, no cotidiano, olhando para o que as pessoas estavam fazendo e não dizendo, as surras funcionavam como parte de construção formativa das agências em Canto do Buriti.

18As interlocutoras eram em sua maioria analfabetas e organizavam seu mundo através da oralidade. Em campo, entretanto, percebi que “mulher” não era o mesmo que “muié”, assim como as demais categorias do curso de vida. Esse assunto é mais bem discutido na dissertação já assinalada na primeira nota de rodapé.

Recebido: 08 de Janeiro de 2021; Revisado: 07 de Maio de 2022; Aceito: 02 de Agosto de 2022

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