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Etnográfica

versão impressa ISSN 0873-6561

Etnográfica vol.27 no.2 Lisboa ago. 2023  Epub 22-Ago-2023

https://doi.org/10.4000/etnografica.13509 

Artigo original

Nhemongarai: ritual, gênero e outros encaixes entre os Guarani

Nhemongarai: ritual, gender and other fits among the Guarani

Ana Maria Ramo y Affonso1  , conceptualización, investigación, metodología, redacción - borrador original, redacción - revisión y edición
http://orcid.org/0000-0002-8148-4830

1 Profesora asociada, Facultad de Geografía e Historia, Universidad Complutense de Madrid, Espanha, aramo@ucm.es,


Resumo

Este artigo é a tentativa de fazer aparecer aspectos do Nhemongarai, ritual de nominação e de consagração de alimentos dos Guarani-Mbya. O Nhemongarai é encontro, cruzamento, composição; modos em que o movimento se manifesta, fazendo brotar perante o nosso olhar pessoas e relações. É também uma celebração coletiva da vida que tem como finalidade favorecer fluxos específicos entre deuses e humanos, entre territórios e entre parentes. Tal definição nos permite vincular a descrição do Nhemongarai às elaborações sobre ritual e performance na Antropologia e oferecer breves reflexões sobre os modos em que ações e relações aparecem enquanto performance etnográfica, mobilizando a imagem da efetivação de encaixes singulares entre corpos e categorias a partir da elaboração de bordas. Nos permite, também, aproximar o nosso entendimento e a nossa sensibilidade ao mbaraete dos Mbya - força, potência,vigor vivificante.

Palavras-chave: Guarani-Mbya; Nhemongarai; ritual; gênero; performance; etnografia

Abstract

This article is an attempt to bring out some aspects of Nhemongarai, the children naming and food consecration ritual of the Guarani peoples. Nhemongarai is encounter, crossing, articulation, composition, interference, interlacing, plot; ways in which movement manifests itself, making people and relationships spring up before our eyes. It is also a collective celebration of life that aims to promote specific flows between gods and humans, between territories and between relatives. This definition allows us to link the description of the Nhemongarai to the elaborations on ritual and performance in Anthropology and to offer some brief reflections on the ways in which actions and relationships appear ethnographically, mobilizing the image of the effectuation of singular fittings between bodies and categories from the elaboration of edges. It also allows us to bring our understanding and sensitivity closer to the Mbya’s mbaraete - strength, potency, life-giving vigor.

Keyword: Guarani-Mbya; Nhemongarai; ritual; gender; performance; ethnography

Prelúdio

Para adentrar a profunda beleza que o Nhemongarai oferece ao nosso pensamento, faz-se imprescindível perscrutar o lugar onde a memória encontra a sua fonte e, ali, avistaremos impreterivelmente os deuses: os Nhanderu ete kuery (“nossos pais verdadeiros”) e as Nhandexy ete kuery (“nossas mães verdadeiras”). Foram eles que fizeram a Yvy Rupa (Terra) para que os Guarani-Mbya pudessem vir a existir nela, junto com todos aqueles que aqui se encontram. E são eles os pais e mães verdadeiros dos nhe’ẽ kuery, os espíritos-nome (Benites 2015), princípios anímicos de origem celeste, enviados à Terra para erguer os corpos dos Guarani-Mbya, fazê-los caminhar, falar e para cuidá-los pelos caminhos que incessantemente percorrem.1

O cosmos guarani é povoado por uma multiplicidade de divindades imperecíveis - os Nhanderu ete kuery e as Nhandexy ete kuery - que formam parentelas e se distribuem pelos amba, cidades situadas nas plataformas celestes. O trânsito entre elas e a Yvy Rupa (Terra) é a possibilidade da vida: é delas que os casais divinos enviam os seus filhos (os nhe’ẽ) para a Terra, outorgando-lhes um corpo para cuidar, em meio a todo tipo de seres assustadores, violências e penúrias, para que possam se fortalecer junto com os seus parentes. Neste sentido, o parentesco ou socialidade guarani, aquilo que os coletiviza e os singulariza, é o exercício deste fortalecimento mútuo - mbaraete - constantemente atravessado pelos olhares de seres outros, ávidos por parentes.

De forma a adentrar nas complexidades semânticas e existências do mbaraete, ofereço neste artigo uma reflexão sobre as formas possíveis em que o Nhemongarai pode ser descrito, tornado manifesto, elucidado, por meio de uma performance etnográfica que expressa uma estética particular definida a partir da imagem das relações como encaixes. A ideia que apresento a seguir é a de que os diversos componentes do Nhemongarai, pessoas incluídas, se relacionam pela articulação - o encaixe - de suas diferenças, sendo a diferenciação necessária para a eficácia do ritual (ou eficácia da vida), para ter e promover o mbaraete, o “fortalecimento”. Com este intuito, e na tentativa de delinear contornos teóricos que nos permitam falar do Nhemongarai como um ritual, o que não deixa de ser uma redução analítica, retomo de Macedo (2013) a abordagem espinosista da socialidade guarani, tematizando os efeitos dos encontros (encaixes) entre corpos em termos de afeções que “podem aumentar ou diminuir a potência de agir de um sujeito” (Macedo 2013: 182) em correspondência com o “que Espinosa chamou de afeto, ou afecto (affectus)” (idem: 185).

O mbaraete solicitado aos deuses em momentos rituais alude a uma potência de ação em prol da manutenção da vida entre parentes Guarani-Mbya, da repetição dos bons encontros, com todos os desafios que isto implica. Entretanto, o fato de que o mbaraete precise ser constantemente evocado e solicitado aos deuses é em si sinal dos atravessamentos de “maus afetos”, doenças e tristeza que definem parcialmente a existência na Terra. Ao focar a atenção e a sensibilidade no ritual como artefato para a alegria coletiva, e pensá-lo a partir dos encaixes que o efetivam, opero um corte seletivo que não posso reparar. Resta, entretanto, dizer que, ainda que maus encontros se multipliquem na Terra desde os tempos antigos, as potências da alegria re(ex)sistem a cada canto que emerge dos intervalos de silêncio profundo que ocupam as opy e as noites.

Os Nhemongarai

Os Nhemongarai compõem um ciclo ritual complexo que articula as existências e movimentos dos seres celestes/divinos - Nhanderu ete kuery e Nhandexy ete kuery, dos princípios anímicos e/ou espíritos auxiliares - nhe’ẽ kuery -, das pessoas - os mbya - e dos espectros dos mortos - os ãgue -, com os ciclos de reprodução dos animais e de maturação das plantas e dos frutos. Estes rituais marcam as transformações entrecruzadas dos ciclos a partir dos dois tempos que definem o calendário guarani: Ara Yma, o tempo velho, antigo, primigênio, e Ara Pyau, o tempo novo, renovado.2

Estes tempos são, também, espaços, e/ou movimentos que criam o espaço, sendo ara uma palavra que indica tanto “o céu” e “as nuvens” como “o dia”. Segundo Cadogan, Ara Yma pode ser traduzido como “tempo-espaço originário”, coincidindo com o inverno; o “Ara Yma ñemo-kandire”: “ressurgimento ou ressurreição do tempo-espaço em que apareceu Ñande Ru, o retorno do tempo-espaço primitivo” (1959: 18, tradução nossa). O tempo devém espaço pelo movimento de diferenciação de Nhanderu Tenonde (nosso pai primeiro) que faz emergir, a partir de seu desdobramento, um corpo-terra que habitar e percorrer (Cadogan 1959; Pesquisadores Guarani 2015).

Ara Pyau, o “tempo novo”, a “época nova”, é a renovação, o movimento de transformação, a primavera no nosso calendário. Ara Pyau começa com uma ventania, o yvytu, e termina com um trovão, o yapua - trovão com relâmpago e sem chuva que é o signo de que Ara Pyau chegou ao fim dando passo a Ara Yma; este é também “o sinal de Nhanderu kuéry de que eles estão recolhendo-se” (Ladeira 2008: 170-172). Tanto o yvytu (vento) como o yapua (trovão) são sinais dos movimentos do povo do alto, os yvategua va’e. Enquanto Ara Pyau - época em que os Nhanderu vêm com mais freqüência à Terra - é o tempo do plantio, o tempo de florescimento e maturação dos frutos, Ara Yma - época em que os Nhanderu se “fecham” dentro da opy (casa de reza) dos amba (lugares, cidades) celestes - é mais favorável à caça, pois é a época em que os animais não estão se reproduzindo.

Ladeira (1999), diz Calazans, “argumentou convincentemente que a concepção de eternidade mobilizada pela cosmologia guarani é aquela dos ciclos que se renovam indefinidamente, e não aquela das formas estáveis e imutáveis de Platão” (2013: 136). A inesgotabilidade dos “elementos originais” que povoam a yvy marã e’ỹ - terra onde “nada tem fim” - é o efeito da “renovação dos ciclos” (Ladeira 2008: 126-127). Dentre tais “elementos originais”, o milho ocupa um lugar especial para a continuidade da vida dos Guarani-Mbya.

“Assim que Nhanderu Tupã teve o filho aqui na Terra, ele já criou avaxi etei (milho verdadeiro). Nhanderu Tupã é o dono do milho, por isso que, se você não batizar as sementes antes de plantar, como faz o jurua [não indígena], o avaxi etei pode desaparecer; pode crescer, mas sem as espigas. […] O avaxi é para o nhe’ẽ ficar na Terra. Foi pra isso que Nhanderu criou o avaxi.” [Xamõi Augustinho da Silva - Karai Tataendy Oka (Tekoa Guyra’i tapu, Parati/RJ), em Pesquisadores Guarani 2015: 25]

O Nhemongarai é o ritual de “batismo das sementes” a que se refere o xamõi (avô, ancião, sábio), ilustração dos efeitos das proximidades realizadas - entre as diversas parentelas dos seres divinos que habitam as plataformas celestes e os humanos, entre o milho e o mel, os homens e as mulheres, os velhos e os jovens, o tabaco e os corpos, etc. Se durante todo o ano os movimentos de humanos e de deuses, de seres visíveis e invisíveis, de corpos e duplos estão em constante influência e interferência mútua, os Nhemongarai aparecem como a mais alta elaboração estética das políticas que tais interferências ativam.

Primeiro ato: a culinária ritual

Mbojape e Kaguijy: a culinária feminina

O que vem a seguir é fruto de minha participação em diversos Nhemongarai de várias aldeias situadas nos estados de Rio de Janeiro, São Paulo e Santa Catarina, no Brasil. Vou me concentrar, entretanto, nos Nhemongarai conduzidos por um casal de anciões e xamãs, Karai Tataendy Roka e Para Mirim, que residem em uma aldeia situada no município de Paraty, no Rio de Janeiro, onde tenho realizado a maior parte do meu trabalho de campo desde 2010.3 Esta aldeia é conhecida em português como Araponga (o seu nome em língua guarani é Guyraitapu) e nela reside apenas uma família extensa. Em Araponga são realizados dois Nhemongarai por ano: o Mbojapemongarai, ou Nhemongarai do mbojape (pão feito de milho), junto com o Eimongarai, Nhemongarai do ei (mel), que acontece no meio de Ara Pyau (em janeiro), tempo novo e época da colheita, e o Ka’amongarai, Nhemongarai da erva-mate, que se realiza em julho, no final de Ara Yma (tempo velho), antecedendo o plantio. Dada a complexidade destes rituais, vou tratar aqui somente do Nhemongarai do mbojape e do mel, começando pela exposição de um fragmento do ritual relativo à culinária.

São três os alimentos utilizados na realização dos Nhemongarai na aldeia Araponga: o avaxi etei (milho guarani), o ei (mel) e o ka’a (erva-mate). Por meio do “batismo” destas sementes, plantas e alimentos é que as pessoas são também “batizadas”: os nhe’ẽ (espíritos-nome; princípios anímicos de origem celeste) contam os seus nomes aos onhemboery va´e, os nominadores. Para poder ter uma mínima noção do que o termo “batizado” - Nhemongarai - está dizendo aqui é necessário, entretanto, que percorramos todo o ritual. Comecemos, então, pelo milho e pelo mel. Entre eles muitas inversões se imprimem e se expressam, ligadas aos homens e às mulheres e mostrando, por meio de uma cascata de metonímias e metáforas, a necessária articulação das diferenças e a necessária diferenciação de usos, corpos, fazeres e lugares, o que mobiliza uma imagem da diferença que evita o que o filósofo Henri Bergson descreve como fraqueza dos dualismos ordinários, a saber, a dificuldade de “ver como um [termo] é enxertado [grafted upon] sobre o outro” (2004 [1896]: 297, tradução nossa). Nesta perspectiva, e partindo do pressuposto de que “a materialidade é ela mesma um encaixe [entanglement]”, entende-se que diferenciar é fazer conexões - “agential separability” (Karen Barad inDolphijn e van der Tuin 2012: 69, tradução nossa).

Mergulhemos as nossas atenções no Nhemongarai. No dia que antecede à madrugada em que os nomes das crianças serão ouvidos pelos atentos onhemboery va’e (os karai nominadores), são preparados os alimentos cuja presença é um convite para a aproximação desses espíritos - os nhe’ẽ - que haverão de revelar os seus nomes. Costumam ser somente as mulheres (com as crianças e alguns adolescentes solteiros) que vão à roça colher o avaxi etei (milho) e são elas (ou o karai, xamã) que o debulham. Aquelas espigas mais bonitas serão penduradas em cima do amba  4 da opy onde vão ser “defumadas” com a fumaça do petyngua (cachimbo) por cerca de dois meses. Depois serão debulhadas e os grãos guardados até o momento do plantio. Após escolher as espigas mais bonitas, as mulheres debulham as outras, aquelas destinadas à cozinha. Então, moem os grãos em pilões que chegam mais ou menos à altura da cintura, revezando umas com outras, pois é um árduo trabalho. O milho moído é passado por uma peneira feita de takuara (bambu) por Para Mirim, a kunha karai (xamã). São normalmente as mulheres mais velhas, as que podem literalmente ser chamadas jary (avó), que realizam a maior parte do trabalho, organizando as atividades das jovens. São elas que, em geral, fazem (moldam) os mbojape (pães de milho) e os assam nas cinzas.

Esta atividade da culinária ritual feminina - processo de transformação do avaxi etei (o milho verdadeiro) - encontra sua imagem espelhada em uma outra, também feminina: o preparo do kaguijy, bebida de milho que antigamente era fermentada e que está sempre presente no Nhemongarai de janeiro na aldeia Araponga. São as adolescentes pré-púberes (que ainda não menstruaram, incluindo-se, em algumas ocasiões, meninas que já menstruaram, mas que ainda são solteiras) as encarregadas de seu preparo.5 Assim, o milho faz aparecer algumas inversões no grupo das mulheres. Se o mbojape é preparado de dia, na cozinha, o kaguyjy é preparado à noite, dentro da opy (ou no interior de alguma casa). O primeiro é um alimento sólido, formatado com as mãos, enquanto o segundo é um alimento líquido. Ambas as qualidades de “cozinheiras” (mulheres idosas e moças pré-púberes) se encontram nas margens exteriores de um continuum que expressa a capacidade de ter filhos: umas estão além, por já não poderem mais e outras aquém, por não poderem ainda. Assim, se em um eixo sincrônico as posições de ambas coincidem (ambas não podem ter filhos), em um eixo diacrônico, relativo à idade, as posições diferem (elas não podem ter filhos por motivos diferentes e opostos: umas ainda não podem e as outras já não podem mais).6 As mulheres adultas, por sua vez, ainda os estão criando. São fundamentalmente estas as que vão encarregar-se de pilar o milho, de forma que possa depois ser transformado tanto no mbojape como no kaguijy.

A proposta deste artigo é imaginar estas aparentes oposições como encaixes: a diferença entre as maneiras de transformar o milho - fazer mbojape e fazer kaguijy - são a substância do encaixe entre a mulher idosa e a pré-púbere. É a relação diferencial que cada uma delas mantém com o milho que permite o encaixe entre elas, ao modo da peça de um quebra-cabeça: se a idade instaura uma diferenciação interna neste contexto same sex (Strathern 2006 [1988]), é o milho que, eventualmente, faz a borda.

Por outro lado, se durante a preparação do alimento ritual as mulheres constituem um grupo que pode ser percebido, dadas as suas atribuições, em oposição complementar (diferença positiva) ao dos homens, é possível aventar que as diferenças entre elas, internas a este grupo, podem se manifestar nos termos de suas relações diferentes com eles: possíveis esposas / possíveis sogras / esposas efetivas, no caso da afinidade, avós / mães / netas / filhas / sobrinhas, no caso da afinidade, avós/mães/netas/filhas/sobrinhas, no caso da consangüinidade. Outro tanto poderia se dizer dos homens: o que os diferencia entre si (no caso a idade), pode ser expresso pelo que os diferencia (diferentemente) das mulheres, por exemplo uma relação específica com o mel (e, por extensão, com a mata). Assim, é (eventualmente) o encaixe singular com o mel que os homens têm de acordo com a sua idade - só homens jovens e adultos vão procurar o mel na mata - que faz a borda para o encaixe, desta vez, com as mulheres. No seu reverso, é a relação específica que as mulheres têm com o milho de acordo com suas diversas idades que constitui as bordas que definem um encaixe específico com os homens. Por fim, o encaixe entre o milho feminino - a borda elicitada pelas mulheres - e o mel masculino - a borda elicitada pelos homens - delineia o que chamei acima de culinária ritual.

À procura de mel: o roubo masculino

De dia, no pátio, vemos alguns homens mais velhos conversando, trocando palavras, contando dos parentes que estão longe. Alguns homens jovens, fundamentalmente aqueles que têm filhos pequenos, saem em direção à mata à procura do ei, o mel. Nestas incursões percebe-se um clima de “guerra jocosa”, pois são permeadas por uma profusão de brincadeiras cuja temática é a contenda travada com as abelhas - caso se conseguisse o mel sem nenhum incidente grave, os jovens, alegres, se dizem vencedores. Se os homens carecem, via de regra, da capacidade culinária das mulheres,7 eles podem, no entanto, roubar o alimento “culinário” da natureza, o mel (Lévi-Strauss 2004 [1967]). Este roubo8 adquire as feições, insinuadas nas brincadeiras, de uma batalha. Para tal façanha, os jovens cortam a árvore onde se encontra a colmeia e acendem uma pequena fogueira cuja fumaça dispersa as abelhas.

O fogo e seus desdobramentos - cinzas e fumaça - estão presentes durante todo o Nhemongarai. As mulheres assam os mbojape (pães de milho) nas cinzas; os homens voltam da mata com o mel que se consegue utilizando fumaça para dispersar as abelhas. Eles distribuem este mel em vasilhas feitas de pedaços de bambu e seladas com cera. Cada homem vai ter uma destas vasilhas, assim como cada mulher terá o seu mbojape - as mulheres também pegarão os das suas filhas pequenas e os homens os dos seus filhos menores. Assim sendo, na tarde do Nhemongarai, as mulheres e os homens, um grupo de cada vez, entram na opy (casa de reza, local onde se realiza, depois do entardecer, o ritual) segurando o mbojape, no caso das mulheres, e o ei (mel) no caso dos homens. Eles circulam em sentido anti-horário - nheovanga -, cumprimentam o karai, e se aproximam do amba (altar) para depositar os seus “objetos”, para colocá-los “em fila”, dizendo “este é meu” (xemba’e, minha coisa). Os homens, em lugar de depositá-los em cima do amba, os penduram (também em fileiras) ao lado.

Se durante o dia a culinária separa homens e mulheres, depois de uma noite de cantos e discursos no interior da opy, quando os Nhamandu trazem a alvorada marcando o fim do ritual, os casais juntar-se-ão para comer o mbojape acompanhado de ei (pão de milho e mel, respectivamente). Como explica Karai Nhe’ery:

“No dia seguinte à cerimônia esse alimento é compartilhado. Consumir esse mbojape com mel fortalece o nhe’ẽ do xondaro e da xondaria,9 para serem saudáveis. Porque o alimento sagrado, quando consumido, torna a pessoa feliz e fortalecida fisicamente e espiritualmente. Para isso que a cerimônia é feita, para as mulheres fazerem o alimento sagrado” ( D. Silva 2020: 30)

E também Floriano da Silva:

“[…] a doçura do milho no corpo e na alma tornam as pessoas dóceis, fortes, justas e saudáveis.” (F.Silva 2020: 5)

Efetivar aproximações singulares entre corpos de homens e mulheres, velhos, adultos, jovens e crianças, com o milho e o mel, é fortalecer - mbaraete. O xamoĩ Karai Tataendy Roka me explicou que é necessário pedir para Nhanderu a força que faz crescer o avaxi etei (milho guarani), assim como o adubo fortalece as plantações jurua (não indígenas). “Ninguém tem mais sementes”, se queixava e, mesmo podendo ser um exagero de sua parte, não deixa de ser verdade que a condição das terras em que se situam muitas das aldeias Guarani-Mbya não são boas para o plantio. Mas não era só a isto que ele estava se referindo. Pelo rumo da conversa, pude entender que as mudanças nos costumes (teko), na alimentação e certa evasão das opy (casas de reza) são as causas pelas quais Nhanderu está deixando de “olhar” as plantações dos Guarani-Mbya, levando as plantas que outrora ele mesmo deixou. É para atrair o olhar de Nhanderu que se deve continuar fazendo o Nhemongarai, cantando, dançando e fumando petyngua (cachimbo), pois o “olhar” de Nhanderu é condição para o fortalecimento e saúde das pessoas e do avaxi ete (milho verdadeiro). Neste sentido, o Nhemongarai é uma performance que instiga e emula o olhar divino, um elaborado protocolo de aparições (ou formas de aparecer) que manifesta a intrínseca constituição recíproca da ética e da estética na filosofia guarani. Trata-se de fazer bordas entre corpos ao tempo em que se afirma que singularidades são bordas entre modos de aparecer, ou seja, eventos. Assim também, a culinária ritual feminina e o roubo masculino a que nos referimos são imagens etnográficas, modos de expressão que traduzem, antes que acontecimentos, efeitos dos movimentos dos Guarani-Mbya perante um olhar etnográfico que carrega a sua própria historiografia.

Segundo ato: na Opy

“Nhandereko”: tecendo com linhas de diferenciação

A epistemologia altamente pragmática (ou a práxis altamente reflexiva) da qual estou tentando oferecer um pequeno esboço, se expressa na língua guarani pelo termo “nhandereko” (literalmente, nosso teko) e tem como uma de suas características fundamentais a sua qualidade estética. Dada a sua dimensão performática, o Nhemongarai nos oferece um excelente contexto para a percepção dos processos de diferenciação do mbyareko, o sistema de vida guarani. Além do gênero (masculino e feminino) e da idade, há ainda outras duas linhas de diferenciação cruciais para compreender a trama sócio-cosmológica dos Guarani-Mbya: os nomes e as funções (papéis, posições, modos de agência, etc.). Ao descrever o desenrolar do Nhemongarai noite adentro no interior da opy (casa de reza), perceberemos com clareza a importância das diversas funções. Sobre os nomes, eis o que explica Karai Nhe’ery:

“Nós guarani mbya temos nossas peculiaridades, que fazem parte da nossa história. Assim, o tery [nome] é muito sagrado para todo nosso povo guarani mbya, porque o teryete [nome verdadeiro] traz significados para fortalecimento. Cada tery tem seus significados que definem a personalidade de cada indivíduo, ou seja, as características de cada pessoa.” (D. Silva 2020: 36)

Os nomes verdadeiros - teryete - são revelados pelos próprios nhe’ẽ (espíritos-nome) durante o Nhemongarai e indicam a cidade ou plataforma celestial de origem de cada nhe’ẽ, informando sobre a parentela divina à qual pertencem; eles “são ligados aos pontos cardeais” (D. Silva 2020: 40). Como nos conta Benites (2015: 17), “nhe’ẽ kuery estão no amba, em quatro amba na realidade, partes que são lugares sagrados de onde vem o nhe’ẽ. O amba é divino, limpo, de onde vem o nhe’ẽ porã. Ele está acima de yvy rupa - nosso leito, suspenso, está no plano espiritual.” Existem nomes femininos e masculinos. Quando o nhe’ẽ revela o seu nome ele afirma um vínculo forte com os seus pais aqui na Terra (os pais da criança que portará esse nome), pois ele poderá ser chamado, reconhecido em suas singularidades (o seu teko, o seu modo de ser), respeitado em seus gostos e vontades, contentado e, assim, aparentado.10

Se os nhe’ẽ provêm de diversas direções, locais e parentelas, aqui na Yvy Rupa (Terra) eles passam a conviver entre si de novas formas, sendo a organização social de toda a comunidade fruto da composição dos nhe’ẽ que erguem as pessoas que nela habitam. Cada aldeia é, neste sentido, uma composição peculiar e singular, pelo que é comum entre os Guarani a afirmação de que cada aldeia é em si uma variação (a este respeito ver Benites e Pereira 2021; e Ladeira 2007). Assim, a organização social guarani é fruto tanto das relações de parentesco entre as pessoas, postas constantemente a variar pela afinidade (casamentos e separações), como das relações de parentesco entre os nhe’ẽ e das formas como se articulam os seus gostos e habilidades.

Quanto às funções, o próprio vocabulário ritual expressa a diferenciação das ações realizadas. Como explicado pelo xamõi (ancião, homem sábio) Kuaray Mirim, foi Nhanderu quem determinou o modo pelo qual os seres divinos deveriam se chamar entre sí: yvyraija, karai, kunha karai. “Esses mesmos nomes, esses mesmos jeitos de chamar, nós devemos usar” (Darella et al. 2018: 29). Assim, os nomes relativos ao tipo de ação que se tem na opy, interceptam o uso dos termos de parentesco - pai, mãe, irmão, esposo, esposa, filho, filha - diluindo as diferenças entre parentes consanguíneos e afins no interior da opy: a organização social da opy (casa de reza) e a da oka (pátio) se interferem, mas não são homólogas. Tais termos, por sua vez, se entrecruzam com as diferenciações por idades, formando o que pode ser vislumbrado como uma orquestra (composição). Os jovens e as jovens, assim como as crianças que cantam nos corais e que dançam, são chamados respectivamente xondaros e xondarias; são os guerreiros e as guerreiras. Em palavras de Werá Tupã:

“O termo Xondaro serve tanto para designar um tipo de movimento corporal utilizado para preparo físico (dança), uma variedade de músicas (algumas cantadas e outras apenas instrumentais) e também serve para fazer referência às pessoas que praticam este ritual, bem como é recorrente para elogiar um bom amigo ou amiga.” (Gonçalves 2020: 15)

Os homens adultos que pegam o violão (mbaraka) para fazer os seus cantos na frente do amba, são chamados yvyraija. Também se chama yvyraija àquele que dirige o coral. Os xamãs mais velhos são chamados karai e kunha karai, sendo aplicado o termo nhanderu e nhandexy tenonde àqueles que formam o casal que se encontra à frente na organização do ritual e que são orientadores espirituais da comunidade. Opita’i va’e kuery são aqueles karai que realizam trabalhos de extração de objetos patogênicos dos corpos com o uso do tabaco. Já o onhemboery va’e é o karai que descobre os nomes dos nhe’ẽ. Para completar a “orquestra” não podemos deixar de lembrar dos músicos que tocam o mbaraka (violão), a raveka (violino) e o mba’epu (tambor), assim como a importância crucial do mbaraka mirim (chocalho) e o takuapu (instrumento de percussão feito com bambu e tocado pelas mulheres). As diferenças quanto às ações que cada um realiza (de acordo com sua idade, o gênero e o lugar de origem de seu nhe’ẽ - nome -, fundamentalmente) são a matéria para a composição do que poderíamos considerar como um só ato: se fazer “ouvir” - monhendu.

Além das pessoas e dos instrumentos, há ainda outros elementos que ocupam um lugar central no ritual, e que são todos considerados “objetos sagrados”, segundo as palavras dos próprios Guarani-Mbya.

“A opy não é como a farmácia dos brancos. O nosso remédio verdadeiro é o nosso petỹgua [cachimbo], takuapu [instrumento de percussão feminino] é remédio, mbaraka mirim [chocalho, instrumento masculino] é remédio, popyguai   ajuda a curar. O avaxi ete (milho) que nós temos aqui é sagrado mesmo. Sem Nhanderu não poderíamos ter este milho […]. Por isso que ele tem que ser respeitado, tem que usar bem, não deixar estragar, porque é sagrado, porque Nhanderu que deu pra nós.” [Xamõi Augustinho da Silva - Karai Tataendy Oka (Tekoa Guyra’i tapu, Parati/RJ), em Pesquisadores Guarani 2015: 84]

Os encaixes entre todos estes elementos e pessoas conformam o Nhemongarai. Encaixes entre sons (palavras, cantos e os sons dos instrumentos musicais), corpos, alimentos (milho, mel e erva-mate), e antialimentos (tabaco e fumaça do tabaco) - movimentos que seguem padrões convencionais e/ou modelos estéticos de distribuição das diferenças: as linhas e os círculos.

Performando corpos em movimento: as linhas e os círculos

Encontros e despedidas dão o tom ao Nhemongarai de Araponga. De outras aldeias vêm os corais acompanhando os karai e as kunha karai, em geral parentes de um dos anfitriões: ora de Karai Tataendy Roka, ora de Para Mirim. Invariavelmente, seja de dia ou de noite, a chegada do pessoal de outra aldeia para participar do Nhemongarai é esperada no interior da opy, lugar onde os visitantes deverão ser recebidos. As pessoas que estão dentro esperam formando uma fila em modo de semicírculo. O primeiro da fila dos homens costuma ser o karai Karai Tataendy Oka; a primeira da fila das mulheres (continuação do lado dos homens) é a kunha karai Para Mirim. Eles são tenonde, os que se encontram à frente. Os visitantes que estão chegando também formam uma fila, os homens primeiro e as mulheres depois. Um xondaro da aldeia que recebe, encabeça, ao entrar, o grupo dos que chegam; ele deve mostrar como é a o teko (regra) daquela opy, o modo correto de cumprimentar - xarura. O popygua (par de varinhas de madeira) em sua mão não deixa de tocar. Depois de dar duas ou mais voltas, o primeiro da fila dos que chegam cumprimenta o primeiro da fila dos que estão dentro e vai passando. Os que o seguem fazem o mesmo; um por um vão cumprimentando todos e cada um daqueles que os esperavam no interior da opy. Aqueles que estão em posição tenonde, à frente, realizam o xarura, um diálogo cerimonial que permite aos viajantes, dentre outras coisas, relatar o percurso realizado e oferecer breves notícias dos parentes deixados nas aldeias de origem. O xarura conecta pessoas através da troca de palavras, do encontro de memórias e da continuidade entre a linha (fileira) e o círculo.

Trânsitos e movimentos acontecem na práxis semiótica do Nhemongarai segundo dois modelos privilegiados: as fileiras (linhas) e os círculos - nheovanga e nhechyrõ, os quais guardam profundos sentidos da estética ritual e social (Ramo y Affonso 2020). É em fileiras - nhechyrõ - que as pessoas se sentam na opy de Araponga, homens separados de mulheres, que as crianças se posicionam quando se levantam para cantar nos corais e que se colocam os mbojape (pão de milho) e as cumbucas de mel, ou os ramos de ka’a (erva-mate) e os potinhos com os grãos de milho, no amba (altar) da opy. É em círculos - nheovanga, com direção anti-horário, que os xondaro dançam, sempre antes de entrar ou sair da opy, e que as pessoas omoatãxi, isto é, vão soprando a fumaça do tabaco sobre os bambus com mel, os ramos de ka’a (erva-mate), as espigas ou as cumbucas de milho, os mbojape (pães feitos de milho), os popygua (varinhas de madeira) pendurados no amba (altar), os takuapu (instrumentos musicais femininos) e sobre o próprio amba.

Existe, ainda, a possibilidade do trânsito aparentemente livre e aleatório, mas este acontece unicamente em momentos específicos da cura. A performance corporal na opy permite entrever uma sócio-praxis preocupada com a evitação de certos cruzamentos, especialmente passar entre aqueles que iniciam o tarova (canto) e o amba (altar), lugar por excelência do trânsito de palavras, vozes e nhe’ẽ. Passar no meio é análogo a cortar o fluxo de comunicação. Entre alinhamentos e circularidades, o universo, o cosmos, continua a se renovar, e os novos dias continuam a levantar novamente aos Guarani-Mbya; sorrindo, se tiverem sorte. Danças e cantos, atualizando os limites, as diferenciações escolhidas, apostam por mais um dia, na sequência - de novo, o novo. A direção em que ocorre o movimento circular é sempre, impreterivelmente, em sentido anti-horário, mesmo sendo o passar das horas o que vaticina premeditadamente. As filas, as linhas, convergem e alternam com os movimentos circulares. Ñeỹchyrõ, segundo Cadogan, é “se repetir, se posicionar em filas ou linhas” (1959: 27, tradução nossa). Ayvu reko rã ĩ, tory reko rã ĩ omonhexyrõ katu ĩ. “As futuras normas (teko) da palavra, as futuras normas dos sorrisos são enviadas em fila, sem obstruções” (idem). Notemos a estética do movimento aqui postulada: em fila supõe um alinhamento específico que permite o fluxo e a concatenação e que remete à repetição e à replicação - tempo e memória se mesclam. “Em virtude delas [as palavras indestrutíveis que voltam a pronunciar de manhã, a cada dia, um dia após o outro], que nos seja permitido nos levantarmos repetidas vezes” (oração matutina em Cadogan 1959: 24, tradução nossa). Continuidade, repetição e duração são não somente expressas, como permitidas pelos alinhamentos, pelos movimentos “em fila” que remetem à estética dos movimentos do povo do alto, dos movimentos do Sol e da Lua, do caminho da anta (Via Láctea), etc.: “A Karai Ru Ete, a Karai Chy Ete, no centro de teu paraíso aos Karai Bons, aos Jakaira Bons, aos Tupã Bons, colocados em fileiras vos abriga”, reno’ã remimoñeỹchyrõ; “Por conseguinte, em direção àqueles que lembramos […] fazei com que dirijam os seus olhares” (Cadogan 1959: 95, tradução nossa).

Olhares incitam outras trocas. As palavras se movimentam constantemente na opy, seja nos mborai (cantos dos corais), seja nos tarova (cantos-reza), seja nas nhemongueta (falas de aconselhamento). A pessoa que se dispõe a aconselhar se debruça sobre a experiência da vida, sobre a existência na plataforma terrestre, espaço povoado por uma multiplicidade de seres em constante interferência mútua. Os discursos vão se concatenando um após o outro, se complementando e se compondo mutuamente. Nhemongueta é troca de palavras, uma fala prolongada que se estende até aos mitos, as histórias dos Nhanderu, das divindades.

“Nós, povo guarani, viemos transmitindo a nossa história desde o início do mundo, quando Nhanderu nos criou para vivermos aqui na Terra. A nossa palavra caminha com a gente, pois ela manifesta, ali para onde vamos e cada vez que nos encontramos, a fonte de nossa sabedoria ancestral. Quando um tamoi [avô], quando uma jaryi [avó] se levanta para falar no meio de nós, a sua fala repete outras falas, ouvidas durante a infância de seus avôs e avós, os quais, por sua vez, traziam as palavras ouvidas dos seus próprios avôs e avós, e assim sucessivamente. É a mesma palavra milenar, infinita, que guardamos e carregamos em nossos corações, geração após geração. O conhecimento dos antigos nunca vai ser contado inteiro, de um dia para o outro, pois são muitas coisas para contar. No entanto, hoje em dia é importante contarmos um pouco para que os não-indígenas possam aprender a respeitar o nosso sistema, o Mbyareko.” (Falas dos anciãos e anciãs, Darella et al. 2018: 28)

Como o movimento das pessoas que se deslocam para se encontrar no Nhemongarai, e o movimento dos nhe’ẽ, que instaura as conexões e os fluxos entre as plataformas celestes e terrestre, as palavras passadas na opy se encontram e se constituem mutuamente, de forma a manter a memória de uma história comum que é também substância do parentesco: “É a mesma palavra milenar, infinita, que guardamos e carregamos em nossos corações, geração após geração”. Uma após a outra, as histórias de vida, assim como as suas narrativas, se repetem e renovam, se inspiram e compõem reciprocamente. E dessa forma, palavra, memória, parentesco e política esboçam a mutualidade do ser 12Guarani-Mbya, renovada a cada Nhemongarai.

A circulação de pessoas promovida pelo Nhemongarai emula a natureza comunicativa de todo o ritual, sendo a comunicação entre as plataformas celestes e a plataforma terrestre efetivada pelo trânsito dos nhe’ẽ, os espíritos-nome. No final de Ara Yma (tempo velho) Nhanderu chama todos os nhe’ẽ (espíritos-nome) para fazer uma reunião em sua opy, na qual ele pergunta a cada um sobre a sua vontade de retornar à Terra por mais um ano. Quando o nhe’ẽ, cansado das penúrias da vida na Terra, não quer mais transitar os caminhos que ligam as plataformas celestes dos Nhanderu e a plataforma terrestre, ele fica no amba (cidade, lugar) de Nhanderu e a morte se achega para a pessoa na Terra. Enquanto Nhanderu celebra esta grande reunião em seu amba, os Guarani-Mbya realizam o Nhemongarai em suas aldeias, sendo nestas ocasiões que os nhe’ẽ, espíritos-nome, comunicam a sua decisão de retornar ou não à Terra, manifestando o estado de saúde de cada um dos participantes. Tais revelações se fazem visíveis quando os opitai va’e kuery (aqueles que fumam) fazem circular a fumaça de seus cachimbos sobre os mbojape e os bambus com mel (também as cumbucas de milho e os ramos de erva-mate) depositados e pendurados, reciprocamente, sobre o amba (altar). Os opitai va’e kuery sabem qual “objeto/alimento” corresponde a cada pessoa. Ao espalhar a fumaça dos seus cachimbos sobre cada um deles observam atentamente o que acontece: se a fumaça brincar - nheovanga - lentamente, quer dizer que o dono ou dona está sadio, mas se a fumaça se elevar rapidamente, afastando-se, é sinal de que o nhe’ẽ não quer mais retornar. A relação entre o “objeto/alimento” e a fumaça torna visível (objetifica, replica e/ou substitui, ver Strathern 2007 [1988]) a relação entre o nhe’ẽ e o corpo, pois a fumaça do tabaco perfaz, em outro espaço e outro tempo, o caminho do nhe’ẽ.

Encontros e comunicação

Movimento e comunicação são conceitos mutuamente implicados nesta apreensão do Nhemongarai como ritual, feita de olhar etnográfico, palavras guarani, texto e histórias subliminais do pensamento antropológico, com algumas pinceladas inevitáveis de filosofia. Aderindo à proposta de Edmund Leach, para quem o ritual é um conceito, devendo a sua definição ser operacional e estando o seu mérito no modo como é utilizado (Leach 1968: 521, tradução nossa), proponho enraizar as reflexões teóricas a seguir na imagem dos nhe’e, espíritos-nome encarregados de transportar palavras entre as plataformas celestes e terrestres, epítome da função comunicativa do ritual que, segundo Schechner, se dá tanto entre pessoas e grupos como através de linhas ontológicas (2009: 779, tradução nossa).

Nos mundos guarani, de acordo com a apreensão que pude obter dos mesmos, a transmissão de mensagens depende da aproximação entre corpos: “o meio […] é ele mesmo uma mensagem, ou melhor, uma metamensagem” (Rappaport 1999: 38). Conter discursos que possam definir as distâncias entre os modos de existência humanos e divinos não é suficiente; é preciso alcançar potências (mbaraete) que permitam às palavras transpor territórios ontologicamente diferenciados. Quiçá a visão de Leach segundo a qual “Do ponto de vista do ator, os ritos podem alterar o estado do mundo porque eles invocam poder”, (Leach 1968: 524, tradução nossa), poderia ser re-escrita extirpando da ideia de “poder” o controlo de posições relacionais (hierarquia) por meio de restrições nos comportamentos sociais (ver Mary Douglas em Bell 2006: 401) e evitando emular modelos que exorcizem a desordem. A formatação de atitudes (Bell 2006: 405) é antes instrumento de convocação de eventos e encontros do que efeito ou eficácia do ritual.

Como alternativa complementar ao conceito de poder hierárquico, faz-se agir o conceito spinozista de “potência”, apreciando encontros singulares entre corpos que aumentam a vontade de agir no mundo e favorecem alterações exercidas transversalmente. A abordagem pretende-se alheia a funcionalismos: consciente da impossibilidade de explicar ou definir o Nhemongarai, tento entender o conceito de mbaraete a partir de uma tessitura alternante entre a descrição etnográfico-reflexiva e a performance antropológica. A questão a respeito da agência é extraída do campo dos formalismos simbólicos 13 em favor de uma práxis dos movimentos que situa o encaixe de corpos no centro das atenções: formalidades e atos de eficácia física se tornam dificilmente discerníveis (Rappaport 1999: 50). Encontros entre corpos tanto são promovidos por afetos e “padrões de sensibilidade” (Innis 2004), como são promotores dos mesmos, sendo o Nhemongarai antes uma cartografia pragmática de movimentos, aqui na Terra e entre planos ontologicamente diferenciados, do que um marco, contexto ou fundo subsidiário afirmando dualismos e oposições. As separações entre palavra e ato, ou significação e fisicalidade, têm enquanto imagens conceituais pouco a acrescentar. Antes que formatar atitudes preestabelecidas, o que o Nhemongarai faz é impelir agenciamentos singulares, fazendo aparecer bordas finamente delineadas entre corpos e entre planos ontologicamente diferenciados e parcialmente conectados; diferenças ontológicas são, nesta perspectiva, multiplicidades: continuidade entre heterogêneos (Deleuze 1966). Argumento, então, que o Mbya arandu, a epistemologia, conhecimento, sabedoria e/ou memória guarani vem há séculos elaborando práticas complexas e altamente eficazes para elicitar encontros que favoreçam as potências da alegria: mbaraete e py’a guaxu, o que nos faz pensar em “re-elaborações da complexa interseção entre corpos e poder” (Rosi Braidotti, em Dolphijn e van der Tuin 2012: 21, tradução nossa), formas de comunicação que permitem a estes povos prescindir da necessidade pungente de controlo sobre a vida em suas mais diversas manifestações.

Teorias do ritual que partem de uma distinção entre ideia-significação-palavra e corpo-expressão-ato são interpretações feitas de fora do ritual. Na tentativa de evitar replicar esta atitude analítica, ensaio uma performance antropológica que encaixe com aspectos do Nhemongarai e que prescinda de “foras”, numa abordagem transversal e, certamente, parcial. Corpos, encaixes entre os nhe’ẽ e os corpos dos Guarani-Mbya são bordas singulares, eventos de algum olhar que os faz aparecer conforme um modo agentivo que, a efeitos de interlocuções filosóficas, podemos aproximar do encontro entre o conceito intra-act de Karen Barad - “interações a partir das quais sujeito e objeto emergem” (Dolphijn e van der Tuin 2012: 55, tradução nossa) e os processos de eclipsamento (Strathern 2007 [1988]). A compreensão da agência como “encenação”, “uma questão de possibilidades de reconfigurar emaranhados [entanglements]” (Karen Barad em Dolphijn e van der Tuin, 2012: 54), encaixa suave e profundamente na maneira como o Nhemongarai surge na performance antropológica que proponho. Entretanto, é ainda importante insistir no fato de que os encaixes, no Nhemongarai, são intencionalmente promovidos segundo protocolos mais ou menos flexíveis e, ao menos, centenários; estes protocolos são máquinas do tempo, afirmando alternâncias - frio/calor; opy (dentro)/oka (fora); jovem/velho; homens/mulheres; deuses/humanos; Ara Yma (tempo antigo) / Ara Pyau (tempo novo) - que se incitam mutuamente.

O trabalho de Marilyn Strathern a respeito da relacionalidade nas Terras Altas da Nova Guiné (Melanésia) faz aparecer o gênero como demarcação de diferentes tipos de atuação (2007 [1988]: 152), aludindo concomitantemente a tipos de diferenciação (idem: 19) e a formas concretas que assumem os eventos (idem: 41), a “relações internas entre partes das pessoas” e à exteriorização de tais relações enquanto “relações entre pessoas” (idem: 279). O gênero se manifesta no trabalho de Strathern como uma amálgama de agência e de aparência, constituindo performances que alternam simetrias e assimetrias, expressas reciprocamente como relações de mesmo sexo e relações de sexo oposto - o que, no caso do Nhemongarai guarani tal como o apresento é ampliado por linhas de diferenciação operadas, além de pelo sexo, por nomes, funções e idades.

O encaixe entre homens e mulheres varia contextualmente; na imagem que ofereço, consiste em duas bordas - a do lado feminino é gerada pela relação diferencial que as meninas e as mulheres idosas mantêm com o mbojape/kaguyjy (milho), e a do lado masculino é efeito de sua relação diferencial com o mel (e com a mata) segundo a sua idade. Expandindo a imagem do encaixe extraída da culinária ritual, o que uma análise do Nhemongarai nos permite entrever é que no seio de cada categoria - sexo, nome, idade e função - as diferenças se delineiam e expressam em função das outras categorias. O aparecimento de assimetrias no seio dos agrupamentos de mesmo sexo, idade, nome ou função (simétricos ou homólogos neste sentido), gera uma borda e essa borda constitui a possibilidade do encaixe em cada uma destas quatro formas singulares de gerar coletivos - dos homens e das mulheres, dos jovens e dos velhos, dos distintos nhe’ẽ de acordo com suas regiões celestes, e das diversas funções que se articulam para a produção do ritual, em termos de formas singulares de aparecer ou, em outras palavras, de atos performáticos. O mesmo poderia ser pensado para o caso do encaixe entre as categorias; em qualquer caso, é necessário constituir bordas para tornar-se visível. No caso da performance ritual do Nhemongarai, as bordas supõem encaixes entre os corpos que elicitam o olhar dos deuses ao fazer o mundo coincidir com a perspectiva dos nhe’ẽ. Eis que assim, diriam os Guarani-Mbya, nhanhemombaraete: nos fortalecemos!

Atrair o olhar dos deuses supõe atualizar bordas que, de alguma forma, renovam as possibilidades da vida pela alternância do Ara Yma (Tempo Velho) e do Ara Pyau (Tempo Novo), manifestando o profundo e complexo entrelaço entre o movimento e o tempo. Movimentos dos Nhanderu nas plataformas celestes, dos ventos, dos nhe’ẽ, dos Guarani-Mbya se trasladando de uma aldeia a outra, do milho (da roça para a cozinha) do mel (da mata para o pátio onde é distribuído em pequenos envases de bambu), promovem e possibilitam variações nas aproximações e afastamentos entre corpos, moduladas graças à possibilidade de replicar e afirmar bordas específicas, práticas materiais que articulam e ressincronizam o tempo (Karen Barad em Dolphijn e van der Tuin 2012: 66). O que aconteceria se não se fizesse mais o Nhemongarai? Distanciamento, proliferação de outros entre Nhanderu e os Guarani-Mbya, esquecimento: Nhanderu não enviaria mais o milho à Terra, antecipando o fim da vida guarani, o estancamento no fluxo de dádivas entre as plataformas celeste e terrestre.

As dádivas em movimento - o milho, o mel, o tabaco, os instrumentos musicais, os tipos de canto (mborai e tarova) - promulgam e encarnam (enactment) as bordas entre os Nhanderu e os Guarani-Mbya. Longe de reificar relações (ou implementar qualquer tipo de substituição simbólica), estas dádivas divinas convocam ações diferenciadas segundo o sexo, a idade, a função ou o nome, extraindo tais linhas de diferenciação das pessoas e tornando-as visíveis aos deuses.

A performance etnográfica que ofereço manifesta a impossibilidade de categorização definitiva das diferenças, a modo de identidades estáticas. Esta condição de impossibilidade, afinada a certo malabarismo relacional que o jogo (ou semiótica) do eclipsamento nos permite imaginar (Strathern 2007 [1988]), se tornam condições para a circulação da força e para a intensificação da potência dos corpos - mbaraete, problemas conceituais, por assim dizer, que o próprio ritual guarani coloca. Assim, não parece possível postular um par de termos (homens/mulheres, jovens/velhos, homens/deuses, corpo/nhe’ẽ, milho/mel, etc.), cuja oposição seja uma fonte de homologias e/ou analogias para todas as outras posições. O que aparece são diferenças interferindo umas nas outras, complicando-se, traduzindo-se, compondo-se. A ideia de encaixe foi mobilizada para responder a este apelo, permitindo ampliar a ação conceitual da imagem das oposições complementares ao se deslocar da linearidade analógica dos pares em direção à proliferação diferencial das multiplicidades. Foi o modo, em qualquer caso, que me permitiu acessar a complexidade poética do ritual guarani.

Finale

O ritual do Nhemongarai evoca e convoca corporalidades eventuais, potentes: é uma complexa tecnologia biossocial (uma práxis fisiológica) que acompanha e produz movimentos e encontros entre diversos modos de existência, articulando ontologias. Conceber o Nhemongarai nos termos guarani é, no mínimo, fazer corpos. Conceber o Nhemongarai nos termos que eu proponho aqui é, no entanto, pensar através das coisas (Henare, Holbraad e Wastell 2006) - experimentar composições de pensamento que me permitam produzir e transmitir mensagens e imagens da socialidade guarani para e na Antropologia. Trata-se de usar a performance, enquanto elicitação de olhares e/ou modo de aparição textual, como abordagem - uma prática, um evento, um comportamento (Schechner 2002). Ao ocupar o campo entre o estético e o social a performance antropológica permite atingir tanto o sensível quanto o inteligível, emulando, ainda que de longe, o pensamento selvagem levistraussiano, e vinculando o Nhemongarai aos operadores de proliferação de dualismos existenciais do Ocidente. As imagens provocadas e evocadas seriam mais ou menos assim: a diferença entre o kaguyjy (bebida de milho) e o mbojape (pão de milho) expressa simultaneamente diferenças entre idades e diferenças entre gêneros. Já a diferença entre homens e mulheres no processo de preparo do Nhemongarai expressa, simultaneamente, as diferenças entre o milho e o mel, entre a culinária e o roubo, entre as cinzas (onde se assa o mbojape) e o tronco das árvores (de onde se retira o mel, ei). Por outro lado, ao “expressar” essas diferenças, as ações de homens e mulheres e de meninas e velhas relacionam esses termos: é necessário que se faça o Nhemongarai para que o mel e o milho entrem em zona de vizinhança,14 assim como são necessárias as árvores e as roças para que o façam homens e mulheres.

Há ainda algo a dizer sobre as bordas que permitem encaixes e a ideia dos limites. Assim como o movimento circular dos xondaro, que dançam na oka (pátio) ao entardecer - na passagem entre o dia e a noite, e cada vez que a porta da opy (casa de reza) se abre - no trânsito entre o dentro e o fora, a tataxina (fumaça do tabaco) é um importante limite fazedor de bordas especiais, um separador entre o corpo e tudo aquilo que é para ele axy (doença, mal-estar, invasão). Os limites seriam a dimensão negativa das bordas, promovendo afastamentos além de encaixes. Bordas e limites são inconstituíveis de modo permanente, dada a sua natureza performática. Tal condição de inconstituibilidade das bordas e dos limites promove um movimento permanente de explicitação e atualização das diferenças, um delineamento constante a efetuar encaixes singulares: aldeia/mata; milho/carne/mel; animal/humano/divino; carne e sangue/ossos e palavra; homens/mulheres; velhos/crianças; pais/filhos; consanguíneos/afins; irmão mais velho / irmão mais novo; nhe’ẽ (espíritos-nome)/ ãgue (espectros dos mortos); marã (perecível) / marã e’ỹ (imperecível); céu/terra; em cima / em baixo, etc., cada uma destas oposições duplas ou triplas servindo para configurar os modos pelos quais as outras podem se encaixar.

A ideia do encaixe foi inspirada por Djatchuka (Celita Antunes), uma amiga guarani que, em certa ocasião, explicava a relação entre o homem e a mulher como um encaixe. Para ilustrar o seu argumento utilizou como referência o cachimbo: o encaixe entre a haste, feita de bambu, e o depósito do tabaco, feito ora de madeira, ora de cerâmica/barro. Levei o seu exemplo adiante e fui percebendo a proliferação dos encaixes que constituem o ato de fumar: do recipiente e do tabaco, do tabaco e do fogo, da fumaça e da haste de bambu (takuara), da haste e da boca, e assim por diante. Uma sequência de encaixes permitindo e fazendo aparecer a sequência de atos pelos quais se pode definir uma composição de relações: o uso do tabaco entre os Guarani. Assim, e considerando que “o uso de tabaco entre os Guarani” se encaixa em (e com) outra série de atos, elementos e relações, se compreende a oportunidade de olhar o ritual do Nhemongarai nos e pelos seus encaixes.

Termino, então, pedindo licença para certo grau de devaneio poético. No Nhemongarai a ação persegue a criação de condições para a circulação da força nos e pelos corpos, [entre corpos] de modo a efetuar bons afetos (Macedo 2013): mbaraete (força) e py’a guaxu (coragem). Tal ação varia de acordo com diversas singularidades, de forma que o kaguijy (bebida fermentada de milho) põe em relação a diferença entre a adolescência das meninas e a velhice dos homens (são os homens, principalmente os velhos, que hoje em dia tomam o kaguijy); o mel põe em relação a guerra dos homens com a culinária das mulheres, o outro do mato com o mesmo da cozinha; o avaxi (milho) põe em relação a aguyje (maturação) dos alimentos com a morte dos humanos (“Nascemos e morremos como o milho”, me disse um karai), a confinação na Terra com o movimento nos céus; o som do mbaraka (violão) tocado pelo yvyraija põe em relação a condição marã e’ỹ (imperecível) dos nhe’ẽ e dos Nhanderu com a condição teko axy (humana) dos Guarani-Mbya; as vozes das crianças no coral põem em relação a sabedoria dos nhe’ẽ recém-chegados, com o conhecimento dos velhos prestes a partir. E assim por diante, numa cascata perpétua de metáforas e metonímias a ensaiar uma performance antropológica.

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1 Agradeço à Maria Dorothea Post Darella pela revisão e pelos preciosos comentários.

2Ara Yma é o tempo frio e coincide parcialmente com o inverno no hemisfério sul (vai de abril a julho, aproximadamente); Ara Pyau coincide, também parcialmente, com a nossa primavera e se estende pelo verão. Ver Moreira e Moreira (2015).

3As informações e elaborações que apresento neste trabalho, à excepção daquelas que retiro de materiais publicados, foram gentilmente transmitidas pela população da aldeia Araponga ao longo de vários anos de relação, dos quais os três primeiros fizeram parte de uma pesquisa doutoral que contou com o aval do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ) as devidas autorizações da comunidade indígena e posterior validação pela Fundação Nacional do Índio (Funai), de acordo com os protocolos de consulta livre, prévia e informada no Brasil.

4Aqui amba se refere a uma estrutura de madeira formada por uma vara transversal apoiada sobre diversas hastes, na qual se colocam os instrumentos litúrgicos dos Guarani. Trata-se de um ponto de intensificação de fluxos, movimentos e comunicação entre domínios ontológicos.

5Por ser um aspecto do ritual que costuma ser realizado em locais afastados dos olhares e que é em ocasiões vedado aos homens, evitarei descrever aqui o preparo do kaguijy.

6Importante ressaltar que estas diferenciações posicionais são ideais e que a qualidade de -jary (avó) pode em ocasiões ser contemporânea à posição de mãe. Relevante para a compreensão dos movimentos de diferenciação que aqui nos interessam, pensados a partir de diversas funções e capacidades agentivas, são os modos como avós e moças pré-púberes são chamadas.

7O que aqui chamo de “carência” está mais próximo de uma separação de funções periodicamente subvertida durante a menstruação das mulheres, momento em que os alimentos por elas cozinhados são fontes potenciais de mal-estares para os homens.

8Culinária e roubo são dois modos como as relações com o milho e o mel apareceram dentro do quadro reduzido que a minha atenção etnográfica permitiu. Entretanto, importantes trabalhos, como o de Tania S.Lima (2005) e Nicole Soares-Pinto (2017), exploram as capacidades predatórias da bebida fermentada processada pelas mulheres, oferecendo interessantíssimas análises das relações entre gêneros nas socialidades Yudja e Djeoromitxi, respectivamente.

9Jovens guerreiros e guerreiras.

10Sobre a relação entre alegria e parentesco, ver, entre outros, Pissolato (2007), Heurich (2011) e Ramo y Affonso (2014, 2018).

11Instrumento utilizado pelos xondaro, consiste em duas varetinhas de madeira unidas por uma de suas extremidades, que são batidas uma contra a outra.

12Sobre este conceito, ver Sahlins (2013).

13Como exemplo do papel outorgado aos símbolos na interpretação do ritual, ver por exemplo a seguinte afirmação de Geertz: “In a ritual the world as lived and the world as imagined, fused under the agency of a single set of symbolic forms, turns out to be the same world” (Geertz 1973: 112).

14Sobre este conceito, ver Deleuze e Guattari (1997).

Recebido: 10 de Novembro de 2020; Revisado: 28 de Junho de 2022; Aceito: 22 de Dezembro de 2022

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