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Etnográfica

Print version ISSN 0873-6561

Etnográfica vol.27 no.2 Lisboa Aug. 2023  Epub Aug 22, 2023

https://doi.org/10.4000/etnografica.14041 

Memória

Abreise aus Berlin: os últimos meses de Jorge Dias na Alemanha (1943-1944)

João Leal1  , concetualização, aquisição de financiamento, investigação, administração do projeto, visualização, redação do rascunho original, redação - revisão e edição
http://orcid.org/0000-0002-0513-103X

1 CRIA/ Universidade NOVA FCSH, Portugal, joao.leal@fcsh.unl.pt,


António Jorge Dias (1907-1973) iniciou a sua carreira universitária na Alemanha, onde foi sucessivamente leitor de português em Rostock - em 1938 e 1939 -, em Munique - 1939 a 1942 -, e em Berlim - 1942 a 1944. Essa sua estadia na Alemanha foi decisiva. Foi lá que Jorge Dias encontrou, se enamorou e casou com Margot Schmidt (Dias) (1908-2001), com quem teve, ainda na Alemanha, dois dos três filhos do casal (Lopo e Karin Dias). Foi também na Alemanha que, com a ajuda de Margot Dias, descobriu a etnologia e se doutorou, em 1944, na Universidade de Munique, com uma tese intitulada Vilarinho da Furna: Um Povo Autárquico na Serra da Amarela (Dias 1944)  1.

Para quem conhece a bibliografia consagrada à obra de Jorge Dias, estes factos são sabidos. As cartas para o seu grande amigo e companheiro de pesquisa Ernesto Veiga de Oliveira publicadas em Energia da Antropologia (Leal 2008) documentam o seu encontro com Margot Dias, que é também evocado no filme Margot, de Catarina Alves Costa (2022). Quanto à sua tese de doutoramento sobre Vilarinho da Furna, é recorrentemente referida em publicações que abordam o papel de Jorge Dias no desenvolvimento da antropologia em Portugal (Pina-Cabral 1991; Leal 2000, 2006) ou que se concentram na sua obra (Oliveira 1974; Lupi 1984; West 2006; Sobral 2007; Leal 2014, 2021).

Fonte: cortesia de Júlia Dias e Catarina Alves Costa

Figura 1 Margot Dias nos anos 1930  

Fonte: cortesia de Karin Dias e Catarina Alves Costa

Figura 2 Jorge Dias nos anos 1930  

Mas, para além destes dois aspetos, os quase cinco anos em que Jorge Dias ensinou (e pesquisou) na Alemanha são pouco conhecidos. É essa lacuna que a publicação da documentação que se segue visa ajudar a preencher. Os “anos alemães” de Jorge Dias encontram-se, de facto, relativamente bem documentados tanto na correspondência que manteve com Ernesto Veiga de Oliveira, como nos arquivos do Instituto Camões relativos ao Instituto de Alta Cultura (IAC). Para além de outras funções - designadamente de apoio à pesquisa - o IAC era o organismo estatal que, durante o Estado Novo, supervisionava os leitorados de português no estrangeiro e o Arquivo do Instituto Camões conserva os relatórios de atividade e a correspondência trocada entre os diferentes leitorados e os serviços e a direção do IAC. Guarda por isso a documentação relacionada com as atividades de Jorge Dias como leitor de português na Alemanha entre 1939 e 1944. Essa documentação permite ter uma visão detalhada das atividades de Jorge Dias nos sucessivos leitorados que assegurou na Alemanha. Ficamos a saber que cursos ensinou, o número de estudantes que teve, as atividades culturais por ele promovidas no âmbito do leitorado, os livros que solicitava para as suas atividades de ensino, os nomes e atividades de alguns dos seus interlocutores alemães, etc.

Para além desta informação, ficamos também a conhecer outros aspetos do percurso de Jorge Dias na Alemanha. Por exemplo, a sua ida para a Alemanha, em 1939, foi antecedida de uma deslocação mais curta a Hamburgo em 1935, onde frequentou um curso de férias. A sua ida para Rostock foi precedida de uma candidatura falhada ao leitorado de Munique, logo após ter terminado a sua licenciatura em Filologia Germânica na Universidade de Coimbra 2. Ficamos também a saber que, antes da sua conversão à etnologia, ocorrida em 1941, Jorge Dias se interessou pela psicologia e aprofundou os seus estudos de germanística, frequentando vários seminários em Rostock e em Munique 3. Podemos acompanhar alguns aspetos do desenvolvimento da sua tese de doutoramento sobre Vilarinho da Furna. Apesar de se tratar de uma aldeia que já conhecia das suas anteriores andanças pelas montanhas do norte de Portugal, foi objeto de uma pesquisa mais intensiva de terreno entre 1941 e 1943, no quadro das suas estadias em Portugal durante as férias escolares na Alemanha. Ficamos a saber que foi contrariado que aceitou, em 1942, a mudança do leitorado de Munique para o leitorado de Berlim. Não só não gostava de Berlim 4, como vivia então com Margot em Bernau - a cerca de 100 km de Munique -, e era na Universidade de Munique que estava a realizar o doutoramento.

Em conjunto com a correspondência que manteve com Ernesto Veiga de Oliveira, a documentação relativa a Jorge Dias arquivada no Instituto Camões permite, em resumo, que conheçamos melhor o que fez durante os seus “anos alemães”.

Berlim em chamas

É parte dessa documentação que é de seguida publicada. A opção foi a de eleger alguns documentos referentes aos meses finais da estadia de Dias na Alemanha, entre dezembro de 1943 e março de 1944, e aos seus primeiros meses em Portugal, depois do seu regresso de Berlim. Os documentos selecionados compreendem sete cartas de Jorge Dias para Medeiros Gouveia (então secretário do IAC) (documentos 1, 2, 3, 5, 7, 8, 9), uma carta deste para o diretor da alfândega de Lisboa (documento 4), o relatório sobre a sua atividade em 1943-1944 no leitorado de Berlim (documento 10), a página final da sua tese de doutoramento sobre Vilarinho da Furna (documento 6) e uma carta escrita para Jorge Dias já depois do final da II Guerra Mundial, por Gerhard Rohlfs (documento 11), um romanista da Universidade de Munique, cuja importância no percurso científico de Jorge Dias ficará mais evidente à frente 5.

É esta carta de Rohlfs que fecha a seleção de documentos, que abre com uma carta que, presumivelmente em novembro de 1943 (documento 1), Jorge Dias envia a Medeiros Gouveia. Nessa carta escreve da sua relutância em voltar para a Alemanha, que se havia tornado, desde março de 1943, um dos alvos principais dos bombardeamentos aliados. Apesar disso, Dias comunica mais tarde ao secretário do IAC, em carta de 9 de dezembro de 1943, a sua intenção de regressar, com Margot, à Alemanha (documento 2). Mas, prudentemente, os dois filhos do casal ficariam no Porto, com os pais de Jorge Dias. O que move Jorge Dias, para além do cumprimento do dever, é a vontade de concluir a sua tese de doutoramento, que estaria já num estádio avançado. Como me disse Karin Dias - filha de Jorge Dias - em entrevista,

“o meu pai só ficou lá [na Alemanha] (a minha mãe era alemã, não tinha outro remédio), o meu pai só ficou lá, porque aqui não havia a possibilidade de acabar uma coisa que ele gostava de fazer e para ele - acho para mim - o que era mais importante era o trabalho, não a política.” [Karin Dias, entrevista com o autor e Catarina Alves Costa, 2022].

Uma das cartas que Jorge Dias escreve já de Berlim para Medeiros Gouveia, em 8 de janeiro de 1944, confirma os receios que havia expressado: os bombardeamentos aliados haviam tornado insuportável a vida na capital alemã (documento 3). Jorge Dias vê-se forçado a dormir em condições precárias, em quartos sem condições de habitabilidade. Como escreve no relatório do leitorado de Berlim de 1943-1944 (documento 10), “várias vezes perdemos o quarto em que nos abrigávamos. Tivemos de dormir inúmeras noites em quartos sem vidraças”. Por toda a cidade grassa a destruição: “pelas ruas em ruínas e semidesertas [seguem] vultos sombrios, transportando em malas ou pastas os seus últimos haveres. Raras [são] as casas intactas”. Berlim tinha-se transformada “num mar de chamas e em montões de ruínas” e as condições de trabalho de Jorge Dias agravam-se. No final de 1943, o Instituto para Portugal e Brasil, que alojava o leitorado português da Universidade de Berlim

“apresentava um aspeto lastimoso; entre esqueletos de casas, erguia-se ainda, com os tetos esburacados, os vidros estilhaçados e as portas rebentadas. Mas era agora um refúgio para muitos, e davam aulas ali vários outros professores, que tinham ficado sem seminário, ou instituto.”

Mas o pior estava para vir: no início de 1944, o instituto seria “devorado pelas chamas”, tornando impossível a permanência de Jorge Dias em Berlim. Ele próprio havia perdido nove caixotes de livros, além de vários outros com pertences que tinham ardido “devido a um ataque aéreo” (documentos 5, 7, 8, 9). Dar aulas em Berlim tornava-se agora impossível, mas Jorge Dias fica na Alemanha, porque queria entregar e ver aprovada a sua tese de doutoramento. Como afirma no relatório do leitorado de Berlim de 1943-1944 (documento 10),

“Com o desaparecimento do Instituto tornava-se desnecessária a nossa estada em Berlim, e, se bem que em contacto com a Universidade, resolvemos ir até Munique, tentar, num esforço desesperado, concluir o doutoramento, que a nossa transferência para Berlim tinha interrompido. Tudo indicava que os aliados fariam um desembarque na Europa, o que podia representar um corte das comunicações com Portugal, e resolvemos, portanto, levar a cabo o doutoramento em péssimas condições de trabalho.”

Tendo conseguido defender em março de 1944 a sua tese de doutoramento, já nada o prendia à Alemanha, e é em Trás-os-Montes - “onde tenho estado a descansar, por prescrição médica, visto estar com os nervos bastante tensos” (documento 8) - que se tenta recompor das aflições e temores que havia sofrido nos seus últimos meses em Berlim. Entretanto, tinham chegado a Portugal os caixotes de livros que escaparam às chamas e o piano de Margot. A viagem deste último da Alemanha para Portugal passou por algumas peripécias burocráticas. A carta de Medeiros Gouveia para o diretor da alfândega de Lisboa (documento 4) agora publicada é apenas um de vários outros documentos em que o tema á abordado. Quanto aos livros “ardidos”, Jorge Dias insiste repetidamente com o IAC para que lhe fosse dado algum apoio financeiro que permitisse minorar a sua perda (documentos 5, 7, 8, 9).

O regime nazi e a guerra

Para além de acompanharem os últimos meses de Jorge Dias na Alemanha, os documentos agora publicados permitem esclarecer alguns aspetos da sua permanência neste país.

Contribuem, por exemplo, para aclarar melhor a sua posição perante o regime nazi e, em particular, perante a guerra que este havia desencadeado. Já foi afirmado que Dias não tinha simpatias pelas ideias nazis (Pina-Cabral 1991: 34; Sobral 2007: 512; Pereira 2021: 397) e não parece haver, tanto nos seus escritos publicados, como na correspondência com o IAC e com Ernesto Veiga de Oliveira, algo que coloque em causa essa afirmação. Entretanto, o que a correspondência de Dias com o IAC permite é conhecer melhor o modo como lidou com a Alemanha em guerra.

Na carta de novembro de 1943 para Medeiros Gouveia (documento 1), Jorge Dias mostra estar a par da existência de campos de concentração, quando escreve, sobre os riscos do seu regresso à Alemanha, que “o mais importante seria poder regressar à Pátria em caso de força maior, sem me ver na contingência de ficar num campo de concentração”.

Mas o documento mais expressivo é o relatório de atividades do leitorado de Berlim de 1943-1944 (documento 10). Dias resume aí a sua posição perante a guerra como sendo de neutralidade (era essa a posição oficial do governo de Salazar), autodefinindo-se como “português e neutral” (os itálicos são meus). E acrescenta:

“Se a princípio a nossa missão era a de propagar a Cultura Portuguesa, mesmo com risco da própria vida, agora só nos restava manter uma boa diplomacia, de maneira a que, sem fazermos um jogo que não era o nosso, não fôssemos ferir o orgulho dum povo, com quem Portugal queria manter boas relações, e a quem intelectualmente muito devemos.” (os itálicos são meus)

Numa outra passagem do relatório, Dias elogia a capacidade que tinham os alemães - ou mais precisamente os alemães que conhecia da universidade - de viver em dois mundos separados e que não comunicavam entre si: a universidade e a guerra. Como escreve,

“O moral universitário mantém-se, mercê da especial formação mental deste povo, que consegue encerrar em secções estanques da vida psíquica, as diferentes atividades do espírito, não as deixando interferir no domínio das outras. Assim, apesar de conscientes da gravidade da situação, continuam a concentrar no estudo uma atenção, que por vezes, mais parecia uma fuga, como de quem procura na ciência um refúgio, contra a ameaça do grande cataclismo que à sua volta estruge.”

De uma certa maneira, nesta passagem, Jorge Dias parece não estar apenas a falar dos alemães, mas de si próprio. De facto, tudo indica que, também para ele, esses dois mundos eram distintos e que era no mundo da universidade alemã que, apesar da guerra, se encontrava.

Elogios aos alemães de sentido similar ao do relatório de 1943-1944 encontram-se noutros relatórios e cartas que enviou ao IAC. Mas são elogios ao povo e à cultura alemã. Não me foi possível detetar na documentação compulsada formulações de simpatia pelo regime nazi. Karin Dias também me afirmou em entrevista que os seus pais “detestavam a política nazi, e aliás nem está com a natureza do meu pai, uma coisa daquelas, não está, nem da minha mãe” [entrevista com o autor e Catarina Alves Costa, 2022]. É numa direção idêntica que apontam algumas passagens da obra de Jorge Dias em que o regime nazi é referido. Assim, em 1960, no âmbito do Relatório de Campanha de 1959 (Moçambique, Angola, Tanganhica e União Sul-Africana), numa secção violentamente crítica do apartheid sul-africano (Dias, Guerreiro e Dias 1960: 35-47), escreve que

“Os únicos emigrantes de quem os africanders nacionalistas gostam é dos alemães, e principalmente dos alemães partidários do nazismo. A simpatia dos africanders nacionalistas […] pelo nazismo, é uma consequência da sua política racista, convicta da superioridade da raça ariana.” (Dias, Guerreiro e Dias 1960: 43).  6

Mais tarde, num artigo sobre a comunidade suábia de Entre-os-Rios (Curitiba, Brasil), constituída por 2500 suábios que, depois de expulsos da Hungria, da Roménia e da Croácia, na sequência da derrota alemã na II Guerra Mundial, se haviam fixado no Brasil (ver Leal 2021: 57-58), Dias volta a referir-se criticamente ao regime nazi. Mencionando as dificuldades das populações de origem suávia após a II Guerra Mundial, escreve ter sido “a política imponderada dos responsáveis do Terceiro Reich [que deu] lugar a enormes deslocações de populações rurais suavas, há muito fixadas em países balcânicos” (Dias 1993 [1966]: 319; os itálicos são meus).  7

O orientador alemão do doutoramento de Jorge Dias

Ao mesmo tempo que são suscetíveis de aclarar melhor a posição de Jorge Dias perante o regime nazi e, em particular, perante a guerra que este havia desencadeado, os documentos que a seguir se publicam permitem esclarecer a sua relação com a Volkskunde nazi, dominante em muitas universidades alemãs.  8 Este foi um tema abordado por Harry West (2006: 178). Mais recentemente, José Manuel Sobral (2007), embora concorde que Jorge Dias não tinha simpatia pelos ideais nazis, referiu-se também ao facto de o orientador de Jorge Dias ter sido Otto Höfler (informação que vai buscar à biografia que Ernesto Veiga de Oliveira escreveu sobre Jorge Dias em In Memoriam Jorge Dias; cf. Sobral 2007: 512; Oliveira 1974: 12). Ora, como sublinhou Sobral, Otto Höfler (1901-1987), germanista nascido na Áustria, era um universitário nazi, ligado às SS, que depois da II Guerra Mundial, devido ao seu comprometimento com o regime, foi afastado da Universidade de Munique (onde mais tarde seria readmitido).  9 Estaria aí um eventual ponto de ligação de Jorge Dias não apenas à Volkskunde nazi, mas também a um universitário que ocupava altas posições no regime.

A este respeito, o primeiro aspeto que a documentação a seguir publicada revela é que, contrariamente ao que escreveu Veiga de Oliveira, não foi Höfler o orientador de Jorge Dias, mas sim Gerhard Rohlfs (1892-1986). Rohlfs era um conhecido filólogo alemão da área da romanística, interessado, como era então corrente, não apenas na filologia românica, mas na filologia em geral, no estudo da linguagem popular, em particular nas suas variedades dialetais. Um dos seus grandes temas de pesquisa - para além dos dialetos pirenaicos - foram os dialetos populares da Calábria (sul de Itália), em particular o italiota-grego, que Rohlfs defendia ter uma origem anterior ao período bizantino (Gemelli 1990). Apesar de contestada por folcloristas italianos próximos do regime fascista (Gemelli 1990: 104, 111), a sua pesquisa gozava e, depois da Guerra, continuou a gozar, de grande prestígio entre muitos dos seus colegas italianos (Gemelli 1990: 105-106, 111-112).  10

Rohlfs tinha ensinado em Tübingen, mas em 1939 dava aulas na Universidade de Munique, onde era catedrático. Por recomendação de Harri Meyer (1905-1990), um romanista alemão então ligado à Universidade de Rostock,  11 é de Rohlfs que parte, em 1939, o convite para que Dias trocasse o leitorado de Rostock pelo leitorado de Munique - criado de propósito para ele (como é referido nos agradecimentos publicados na página final da sua tese de doutoramento) (documento 6).  12 O convite é aceite e é na sua sequência - e também no seguimento do seu encontro com Margot Dias - que surge pela primeira vez nos relatórios de Dias para o IAC uma referência ao projeto de fazer a sua tese de doutoramento sobre Vilarinho da Furna - sob a orientação, justamente, de Rohlfs.  13 Por isso, quando Jorge Dias é forçado pelo IAC a trocar Munique por Berlim, há um protesto de Rolhfs, alegando que Jorge Dias era seu orientando em Munique.  14 Por isso - mas também porque Jorge e Margot Dias viviam em Bernau, perto de Munique - Jorge Dias, apesar de colocado em Berlim, manteve os seus laços com a Universidade de Munique e com Rohlfs.

Dois dos documentos publicados de seguida ilustram justamente o que tenho vindo a escrever. O primeiro é a carta de Dias para o IAC de 8 de janeiro de 1944, em que refere que planeia ir a Munique para falar com Rohlfs sobre o seu doutoramento (documento 3). O segundo, mais explícito, corresponde à página final da tese de doutoramento apresentada por Jorge Dias em Munique (documento 6). Embora toda a tese esteja escrita em português, a página final é escrita em alemão e inclui, para além de uma breve biografia de Jorge Dias, uma lista final de agradecimentos. Nesta escreve:

“Durante a minha estadia em Munique, frequentei por seis semestres a faculdade de filosofia e produzi uma tese de doutoramento com o senhor professor Rohlfs. Devo-lhe a minha imensa gratidão pelos seus conselhos e sugestões extremamente preciosos.”  15

Parecem, pois, restar poucas dúvidas de que foi Rohlfs o orientador alemão de Jorge Dias. Este dado, para além de desmentir que tenha sido Höfler o orientador, coloca Dias fora do campo da Volkskunde nazi.

Sendo assim, porque é que Höfler é dado como orientador de Dias na biografia que lhe consagrou Veiga de Oliveira? Para responder a esta questão é importante olhar de novo para Rohlfs, recorrendo à biografia que lhe consagrou Salvatore Gemelli (1990).

Aí é referido de forma desenvolvida um episódio marcante da vida de Rolhfs: o seu afastamento da Universidade de Munique durante o III Reich, entre o início de 1944 e o fim da guerra (Gemelli 1990: 115-116; 119-120). Na base desse afastamento esteve uma conversa que Rohlfs manteve com um oficial nazi e com a sua mulher, com quem partilhou “os seus receios sobre a situação económica e bélica da Alemanha e as suas aversões políticas” (Gemelli 1990: 116). Falaram da “possibilidade de uma grande tragédia final para a sua pátria [e] Rohlfs também se referiu às atrocidades cometidas pelos seus compatriotas contra o povo judeu na Polónia e na Rússia, sobre as quais havia recebido confidências secretas” (Gemelli 1990: 119). Embora Gemelli (1990: 119) sublinhe posições antifascistas anteriores às de Rohlfs,  16 esta conversa é também um reflexo do estado de espírito cada vez mais cético de sectores significativos da população alemã em relação ao regime nazi, resultante tanto da derrota alemã na frente leste como dos próprios bombardeamentos aliados em solo alemão (cf. Evans 2021[2008]).

Pressionado pela sua mulher “fanática nazi” (Gemelli 1990: 119), o oficial denunciou Rohlfs à Gestapo, acusando-o de “propaganda anti-nazi e subversiva” (Gemelli 1990: 120). Na sequência, Rholfs foi interrogado e levado a julgamento. E, como medida punitiva, foi afastado da Universidade de Munique (Gemelli 1990: 119). Na carta que Rohlfs escreveu a Jorge Dias depois do final da guerra (documento 11), esse episódio é referido nos seguintes termos:

“Depois de ter sido suspenso pelos Nazis e de um sensato procurador do Ministério Público [Staatsanwalt] ter poupado, com muita argúcia, o ‘réu Rohlfs’ ao campo de concentração, fui o primeiro professor catedrático da Universidade de Munique a ser confirmado no meu posto pelos americanos no ano passado.”

Em março de 1944, mês em que Jorge Dias defendeu a sua tese de doutoramento na Universidade de Munique, Rohlfs estava, portanto, impossibilitado de integrar o júri. Terá sido por essa razão que o nome de Höfler aparece ligado à tese de Jorge Dias. Ocupando posições de chefia na Universidade de Munique, provavelmente terá sido ele o professor indicado para substituir Rohlfs no júri, de que fazia também parte como “referent” (arguente) Hans Rheinfelder (1889-1971), um outro romanista da Universidade de Munique de quem Dias era próximo. É nesse sentido que aponta a seguinte passagem do relatório de atividades do leitorado de Berlim de 1943-1944 (documento 10) referente à conclusão da tese de doutoramento de Jorge Dias na Universidade de Munique:

“De maneira nenhuma queríamos ficar com a impressão de ter falhado, vindo sem concluir aquilo que uma vez tínhamos iniciado. Metemos ombros à empresa, e apesar de serem substituídos professores à última hora, conseguimos realizar com sucesso as provas de doutoramento, apresentando uma tese sobre “Vilarinho da Furna”, monografia dum povo autárcico na Serra da Amarela.” (os itálicos são meus)

Não é também por acaso que no final do mesmo relatório, Jorge Dias não inclua o nome de Höfler nos seus agradecimentos a vários professores alemães, entre os quais Harri Meier, Rheinfelder e Rohlfs.

O carácter administrativo dessa presença de Höfler no júri de Dias deve, portanto, ser admitido com alta probabilidade. Höfler era um filólogo e etnólogo germanista interessado na demonstração das continuidades culturais entre os antigos germanos e os atuais alemães, mas era estranho aos estudos romanísticos.  17 Nada indica que soubesse português e é um nome que nunca aparece na documentação do IAC sobre os anos alemães de Jorge Dias. Não faz também parte da lista dos inúmeros correspondentes alemães de Jorge Dias que constam do Arquivo Jorge e Margot Dias (MNE).

Tudo isto não explica cabalmente porque Veiga de Oliveira indicou Höfler e não Rohlfs como orientador de Dias. Mas parece-me, no estado atual da pesquisa, ser esta a explicação mais plausível. Tendo substituído Rohlfs no júri de Dias, Höfler terá sido dado, erradamente, como orientador de Dias. Seja como for, parece claro que não foi ele, mas Rohlfs, o orientador.

Convite à leitura

Ao mesmo tempo que permite aclarar aspetos importantes da estadia de Jorge Dias na Alemanha - designadamente quanto à sua posição perante o regime nazi, e em particular perante a guerra que este havia desencadeado - a documentação agora publicada permite também retificar informações menos exatas relativas à sua relação com a Volkskunde nazi. É essa uma das virtudes da pesquisa em arquivos: reunir informação mais segura sobre episódios relevantes, mas mal conhecidos, da vida e da obra dos “arquivados”. Outras das suas virtudes prendem-se com o modo como os arquivos nos permitem conhecer melhor a pessoa por detrás da obra e entrever aspetos relevantes dos bastidores desta. Também em relação a estes dois aspetos, a documentação agora reunida é - creio - bastante eloquente, como mostra, só para acrescentar mais um exemplo, a apaixonada defesa de etnografia feita por Jorge Dias no final do relatório de atividades do leitorado de Berlim de 1943-1944 (documento 10). Fica, por isso, o convite para uma leitura atenta dos 11 documentos agora reunidos.

Documentos 18

Documento 1

Arquivo do Instituto Camões, PT/MNE/CICL/IC-1/01377/03, doc. 112

(manuscrito, sem data, com carimbo de entrada de 11 de novembro de 1943)

Exmo. Senhor Doutor António de Medeiros Gouvêa,

Já há muito que resolvi os problemas de família, que me obrigavam a ficar em Portugal mais uns dias, mas até hoje ainda me não foi enviado o passaporte, que o senhor Ferreira ficou encarregado de arranjar. Queria, pois, lembrar a V. Exª., que não é culpa minha o facto de partir tão tarde para a Alemanha, e que, logo que me seja entregue o passaporte, arranjarei os vistos necessários e partirei instantaneamente. Se bem que considere absolutamente indispensável, que um Leitor compareça à abertura das aulas, não me parece que hoje isso faça grande diferença, pois a situação é bastante anormal. Se conseguir arranjar todas as trapalhadas relativas à viagem, cá pelo Porto, então irei a Lisboa, pois vou apanhar o comboio a Pampilhosa. Pedia, portanto, a V. Exª. que conforme o prometido, informasse a legação em Berlim, pedindo o seu auxílio e proteção. V. Ex.ª compreende que a ida hoje para a Alemanha, sobretudo para Berlim, representa um grande risco e sacrifício de todas as comodidades; mesmo renúncia a coisas indispensáveis à saúde. Se V. Ex.ª mostrar empenho, creio que me será possível conseguir uma situação mais segura e uma alimentação mais compatível com as necessidades normais. Mas, o mais importante seria poder regressar à Pátria em caso de força maior, sem me ver na contingência de ficar num campo de concentração.

Logo que tenha tudo em ordem, participarei a minha partida, esperando que V. Ex.ª me dará desde já instruções, caso alguma modificação deva ser feita no programa até hoje seguido. Também pedia a V. Ex.ª empenho na ida de alguém, que me sirva de auxiliar, a fim de ter a possibilidade de concluir o meu doutoramento no correr deste ano letivo.

Sem mais, sou de V. Ex.ª, com os melhores agradecimentos e a mais subida consideração

Ant Jorge Dias

Documento 2

Arquivo do Instituto Camões, PT/MNE/CICL/IC-1/01377/04, doc. 5

(manuscrito)

Porto, 9-XII-43

Exmo. Senhor Doutor António de Medeiros Gouvêa,

Afinal, resolvi partir quanto antes para a Alemanha. Tenho a impressão que a situação vai piorando de dia para dia, sem contudo chegar a uma fase decisiva rápida, e eu vou tentar aproveitar o tempo, para ver se ainda consigo fazer o doutoramento.

Bem sei que isto é um pouco aventureiro, mas a morte é que dá significado à vida…

Tenciono passar por Berlim, se for possível, e dirigir-me depois para o Sul da Alemanha, onde continuarei os meus trabalhos, mantendo contacto com Berlim e recomeçando as aulas, se eles acharem necessário e se o sacrifício for justificado.

V. Ex.ª poderá escrever sempre para Bernau am Chiemsee, Flachshof, que é mais seguro, pois nem sei, depois do último bombardeamento, se a minha habitação em Charlottenburg ainda existe.

Sempre às ordens de V. Ex.ª e muito reconhecido por todas as atenções, desejo a V. Ex.ª festas felizes e um Novo Ano mais próspero em promessas (pelo menos).

com a mais subida consideração

[Ass. Ant Jorge Dias]

Documento 3

Arquivo do Instituto Camões, PT/MNE/CICL/IC-1/01377/04, doc. 1

(manuscrito)

Berlin, 8-I-44

Exmo. Senhor Doutor António de Medeiros Gouvêa:

Eis-me desde há dias nesta desoladora cidade, lutando com toda a espécie de dificuldades. O meu quarto está inabitável pelo que consegui com dificuldade um quarto num hotel, aliás, pouco confortável, pois alguns vidros estão partidos. Até hoje ainda não consegui descobrir o Assistente Lüher, porque o Seminário Românico não existe e a sua antiga habitação também não. O nosso instituto está de pé; depois duma série ininterrupta de casas arruinadas, lá se encontra ele em equilíbrio instável. Os vidros estão quebrados, os estuques caídos e as portas estoiradas, mas como tudo é relativo, temos que dar graças a Deus.

Naturalmente que farei todo o possível por lutar, enquanto vir que do meu sacrifício resulta alguma vantagem para a nossa terra. Falei com o Decano que me deu plenos poderes aceitando qualquer resolução que tome. Como ainda não começaram as aulas vou de novo à Baviera, para ver se consigo expedir os meus livros e outros valores para Portugal, assim como falar com o Prof. Rohlfs acerca do meu possível doutoramento.

Hoje o Snr. Conde de Tovar deve vir a Berlim e aproveito para lhe falar, pois é-me necessário o seu concurso, para aqui poder ficar. De contrário seria arriscar a saúde, ou mesmo mais do que isso.

Pedia a V. Ex.ª o favor de enviar toda a correspondência para Bernau am Chiemsee, Flachshof Obb., pois aqui é tudo muito incerto e ainda não sei onde virei a ficar.

O Sr. Steiger Garção já deve ter chegado a Lisboa e por ele terá V. Ex.ª a oportunidade de ouvir o relato duma testemunha ocular.

Sem mais e sempre às ordens de V. Ex.ª

Sou com a maior consideração e estima

[Ass. Jorge Dias]

Documento 4

Arquivo do Instituto Camões, PT/MNE/CICL/IC-1/01377/04, doc. 14

(datilografado)

Exm.º Senhor Diretor da Alfândega de Lisboa

O Senhor Dr. António Jorge Dias desde há longo tempo que tem estado na Alemanha, primeiro como bolseiro deste Instituto de colaboração com a Fundação Alexander von Humboldt-Stiftung. depois como leitor de português na Universidade de Munique e ultimamente transferido para a de Berlim, na qual exerce agora as suas funções.

O Senhor Dr. Jorge Dias é casado e possui a sua casa na Alemanha, onde tem vivido com a família, mas os acontecimentos internacionais obrigaram-no a transferi-la para Portugal, para onde está a fazer transportar vários objetos que possui, de uso quotidiano, tais como: roupas, a biblioteca, músicas e um piano de concerto “Steinway & Sons, Hamburg, New York”, de 2,11 m., n.º 268.747.

Os livros e o piano silo instrumentos profissionais do Dr. Jorge Dias e da esposa, que é pianista-concertista, e deles necessitam para o exercício das suas atividades em Portugal.

Da bagagem a trazer para o País, encontram-se já para despacho, no posto alfandegário do Aeroporto Internacional (Portela de Sacavém), chegados no avião da “Lufthansa” e remetidos pelo Consulado de Portugal em Munique à consignação do Dr. António Jorge Dias, 5 cartões e 2 caixas, que contêm livros e músicas, com o peso total.de 139,5 quilos.

Tratando-se de objetos de uso pessoal, indispensáveis a quem há longos anos faz uma vida de estudo e de ensino de interesse para Portugal, venho rogar a V. Ex.ª o subido obséquio de autorizar o levantamento das referidas caixas e cartões, com isenção do pagamento de direitos alfandegários, se tal for possível.

Permita-me V. Ex.ª que deixe já aqui expresso idêntico pedido deste Instituto para o levantamento de novas remessas de artigos do Dr. Jorge Dias, de cuja chegada darei oportunamente conhecimento a V. Ex.ª.

Com agradecimentos antecipados pela benévola atenção que se dignar de dispensar a este assunto, aproveito a oportunidade para apresentar a V. Ex.ª os meus cumprimentos.

A bem da Nação

Lisboa, 9 de fevereiro de 1944

O Secretário,

Documento 5

Arquivo do Instituto Camões, PT/MNE/CICL/IC-1/01377/04, doc. 15

(manuscrito)

Berlin 14-II-44

Exmo. Senhor Doutor António de Medeiros Gouvêa,

Tive há poucos dias um dos maiores desgostos, que um homem de estudo pode ter: perdi quase todos os livros que juntara na Alemanha. De dezasseis caixotes contendo uns dois mil volumes, que seguiram para Portugal, catorze arderam devido a um ataque aéreo.

Já não falo no dinheiro que isso representa, pois foram as economias de vários anos, tanto minhas como de minha mulher, que de repente se volatilizaram. O pior é o que isso representa para quem encontrou no estudo e nos livros todos os interesses e toda a vida. Além dos livros de grande valor estimativo e bibliográfico, pois algumas obras eram raríssimas, grande parte deles representava o instrumento do meu ofício, pois eram os livros da minha especialidade, sem os quais me será difícil trabalhar.

Mas a vida é assim, e a gente, sobretudo em épocas de grandes convulsões históricas, não se pode nem deve queixar. Queria, contudo, pedir a V. Ex.ª o grande favor de interceder junto do Ipac [Instituto para a Alta Cultura] no sentido de me ser prestado auxílio para a aquisição das obras portuguesas, que trouxe de Portugal, para o exercício do meu cargo na Alemanha. Como V. Ex.ª sabe, os meus livros estiveram sempre às ordens dos alunos e professores e, durante muito tempo, foi com eles que a atividade do Leitorado em Munique foi possível.

Eu tenciono ir passar as férias da Páscoa a Portugal e levo a lista dos livros que perdi, assim como o certificado oficial comprovativo do meu prejuízo.

Desde já agradecendo a V. Ex.ª,

sou com a maior estima e consideração

[Ass. Ant Jorge Dias]

Documento 6

Página final (não numerada) de Vilarinho da Furna: Um Povo Autárquico da Serra Amarela (Inaugural-Dissertation zur Erlangung der Doktorwürde der philosophischen Fakultät der Ludzuig-Maximilians-Universität zu München vorgelegt von Dr. Antonio Jorge Dias aus Oporto/Portugal). Munique: Universidade de Munique (1944) (traduzida do alemão por Inês Cardoso)

Currículo

Eu, António Jorge Dias, filho de António José Dias, nasci a 31 de julho de 1907 no Porto, Portugal. Entre os meus seis e doze anos frequentei a escola básica no Porto. Depois interrompi os meus estudos e recomecei-os novamente nos meus vinte e dois anos. Em 1932, realizei os meus exames finais no liceu Rodrigues de Freitas e de seguida fui para a universidade de Coimbra, onde desde o ano 1937 estudei filologia e graduei-me como licenciado em filologia com distinção (o que na Alemanha corresponde ao título de doutor).

Posteriormente, estive no activo durante um ano como professor num liceu no Porto. Ao mesmo tempo, estudei ainda filosofia e antropologia, e passei nos meus exames de saída com distinção. No ano 1938, fui encarregado do leitorado de Rostock pelo Ministério de Educação Português (Instituto para a Cultura). Depois de um semestre, fui convidado para ser leitor na universidade de Munique pelo Ordinarius para filologia românica, Professor Rohlfs, onde fundei um novo leitorado depois da aprovação do meu ministério. Desde o semestre de Verão 1939 até o de Inverno 1942-43, dirigi sozinho o leitorado e depois fui transferido como leitor para a universidade de Berlim.

Durante a minha estadia em Munique, frequentei por seis semestres a faculdade de filosofia e produzi uma tese de doutoramento com o senhor professor Rohlfs. Devo-lhe a minha imensa gratidão pelos seus conselhos e sugestões extremamente preciosos. Além disso, queria expressar os meus melhores agradecimentos aos senhores professores Rheinfelder, Höfler, Cysarz e Alexander von Müller. Como disciplina principal, frequentei filologia românica e como disciplinas secundárias estudei história contemporânea e estudos germânicos.

António Jorge Dias.

Documento 7

Arquivo do Instituto Camões, PT/MNE/CICL/IC-1/01377/04, doc. 32/2

(manuscrito)

Lisboa, 17 de abril de 1944

Ex. Senhor Doutor António de Medeiros Gouvêa,

Em fevereiro deste ano informei V. Ex. de que no ataque aéreo a Berlim de 26 de janeiro perdera 14 caixotes com livros, entre os quais edições de alto preço e outros de menos valor, mas de grande importância para a minha profissão, visto tratar-se de obras da minha especialidade e de constante consulta. Vim, há pouco, a saber, que o prejuízo não foi tão elevado como supunha, visto que dos 14 caixotes 5 tinham escapado e chegaram a salvo a Lisboa. Contudo, os 9 caixotes perdidos representam um prejuízo superior a cinquenta contos, visto conterem coleções completas da Arte Popular Alemã, com mobiliários, habitações e toda a espécie de produtos da Cultura Popular Alemã e mesmo Europeia, com magníficas reproduções fotográficas, assim como excelentes edições dos Clássicos e livros de Arte. Naturalmente, que isto representa mais um complemento artístico da minha biblioteca etnográfica, com cuja perda irreparável terei de me conformar. Porém, havia um sem-número de obras que são fundamentais para o exercício da minha profissão e que terei de adquirir na medida do possível. Pedia, pois, a V. Ex. o favor de interceder junto do Instituto para que me seja prestado um auxílio monetário, que me permita a aquisição de novas obras, pelo menos, daquelas que é possível encontrar à venda no nosso mercado, a fim de não ficar em péssimas condições de trabalho.

Atendendo a que, desde 1938 exerço o lugar de Leitor na Alemanha sem me poupar a esforços e sacrifícios de toda a espécie para bem desempenhar a minha missão, no que parece fui bem-sucedido, espero que o Instituto não deixará de me auxiliar dentro daquilo que for possível e razoável. Quero lembrar que nunca mencionei os prejuízos que tive em roupas de casa e de corpo, quando a minha casa foi atingida, por reconhecer que não competia ao Instituto reparar tais perdas.

Agradecendo desde já

Sou com a mais elevada consideração e respeito

O Leitor

[Ass. Antonio Jorge Dias]

Documento 8

Arquivo do Instituto Camões. PT/MNE/CICL/IC-1/01377/04, doc. 42

(manuscrito)

Porto, 19 de maio de 1944

Ex. Senhor Doutor António de Medeiros Gouvêa,

De regresso de Trás-os-Montes, onde tenho estado a descansar, por prescrição médica, visto estar com os nervos bastante tensos, vim encontrar o ofício do Instituto, com a transcrição da carta dirigida pelo Instituto de Cultura Alemã. Tenho a responder a V. Ex.ª, que conforme aquilo que tinha dito pessoalmente, estou pronto a ocupar o meu lugar em Berlim, e que se o não fiz até agora, foi simplesmente pelo meu precário estado de saúde o não consentir. Além disso, eu escrevi há umas semanas para Berlim, ao decano da Faculdade de Letras e diretor do Instituto para Portugal e Brasil, perguntando se seria necessária a minha ida imediata, declarando-me resolvido a ocupar o meu posto, logo que me fosse possível, se ele visse vantagem nisso. Ainda não recebi resposta a esta carta, e pelo teor do telegrama sou levado a crer, que ainda não tivesse sido recebida em Berlim.

Perante este ofício, vejo que a minha falta se faz sentir, pelo que vou apressar os preparativos e consultar o meu médico sobre os inconvenientes duma viagem feita sem ter terminado o tratamento prescrito.

Sem mais

Sou de V. Ex.ª com a maior consideração e respeito

[Ass. Ant Jorge Dias]

Documento 9

Arquivo do Instituto Camões, PT/MNE/CICL/IC-1/01377/04, doc. 49

(manuscrito)

Lavadores, 27-VII-44

Ex. Senhor Doutor António de Medeiros Gouvêa,

Já há bastante tempo que queria ir a Lisboa falar com V. Ex.ª como tinha ficado combinado, mas tem-me faltado a coragem para interromper o meu trabalho, que está numa fase a que a música italiana chama “furioso”. Porém, o Snr. Doutor Amândio Torres veio quebrar o meu ritmo criador [sublinhado posterior], com algumas sugestões, que só com o auxílio de V. Ex.ª quero resolver. Ficou, portanto, combinado com este Professor, eu ir a Lisboa no primeiro de agosto, onde juntamente com ele e com V. Ex.ª se resolveria o meu problema.

Eu tenho agora em mãos uma monografia sobre Rio de Onor, povoação interessantíssima, em que a organização comunalista está em todo o seu esplendor. Já lá passei duas temporadas e ainda tenciono lá voltar mais umas duas vezes, pois além de toda a parte etnográfica, também queria fazer uma recolha do dialeto, para publicar depois um estudo filológico do mesmo. Não calcula V. Ex.ª o entusiasmo com que me tenho atirado ao trabalho e a esperança que tenho de vir a fazer qualquer coisa de útil neste campo.

Infelizmente, fazem-me muita falta alguns livros, sobretudo dicionários etimológicos de português e espanhol, assim como as obras basilares de estudos etnográficos. Muitas destas coisas são difíceis de obter hoje, assim como a minha bibliografia, que representava uns anos de trabalho, e que se me foi agora com as 7 malas que agora perdi em França, quando vinham de caminho-de-ferro para Portugal. De todas as minhas coisas só chegaram uns centos de livros, o piano de minha mulher e uns objetos que nós próprios trouxemos. Enfim, não tive muita sorte, mas podia ser pior. Contudo, agradeceria bastante se o Instituto pudesse dar-me uma pequena verba para a aquisição de certas obras portuguesas [sublinhado posterior], que perdi e que ainda se encontram no mercado.

Ainda há dias, acabei de pagar uma conta que fiz na livraria Buchholz de livros que lá encontrei e que tinha perdido. Como V. Ex.ª sabe, para quem vive destas coisas, os livros além de serem a ferramenta do ofício, são uma espécie de paixão cara e perigosa. Pedia, pois, a V. Ex.ª o favor de me desculpar falar-lhe outra vez no assunto, mas conto bastante com a boa-vontade de V. Ex.ª.

Esperando ter o prazer de em breve ver V. Ex.ª cumprimenta com o maior respeito e simpatia o

[Ass: Jorge Dias]

Documento 10

Arquivo do Instituto Camões, PT/MNE/CICL/IC-1/01377/04, doc. 61

(datilografado)

RELATÓRIO DA ACTIVIDADE DO LEITORADO DE BERLIM NO ANO LECTIVO DE 1943/44

Ao contrário do que até hoje temos feito, resolvemos condensar num só relatório os dois semestres da atividade exercida como Leitor de Português na Universidade de Berlim, pois as circunstâncias muito excecionais em que vivemos, durante esse espaço de tempo, obrigaram-nos a proceder de maneira bastante singular e que nada tem de comum com a conduta habitual dum Leitor.

A guerra em que a Alemanha anda envolvida há mais de cinco anos, afetou, de princípio, relativamente pouco a vida universitária, sobretudo porque a sua capacidade de ataque foi, durante muito tempo, superior à dos seus contendores, o que dava a toda a nação uma grande confiança nas suas possibilidades, ainda para mais que o dispêndio de homens para as grandes campanhas militares era bem reduzido. Com o andar dos tempos, a força dos adversários, especialmente da Rússia, vem trazer preocupações mais sérias, mas que ainda não afetam profundamente a vida académica, porque, se novas mobilizações se fazem, também, por sua vez, os feridos regressam às aulas, assim como muitos soldados estudantes obtêm licenças de estudo, durante as campanhas de Inverno, menos movimentadas.

O moral universitário mantém-se, mercê da especial formação mental deste povo, que consegue encerrar em secções estanques da vida psíquica, as diferentes atividades do espírito, não as deixando interferir no domínio das outras. Assim, apesar de conscientes da gravidade da situação, continuam a concentrar no estudo uma atenção, que por vezes, mais parecia uma fuga, como de quem procura na ciência um refúgio, contra a ameaça do grande cataclismo que à sua volta estruge.

Nos dois semestres de 1942/43, podemos dizer, que conseguimos resultados invulgarmente satisfatórios, e que, segundo as afirmações da própria Universidade, nunca o Leitorado de Português atingiu uma frequência ativa tão elevada, com uma inscrição de perto de 60 alunos e 9 horas semanais de aulas, caracterizadas por invulgar animação e interesse crescente. Porém, ao apogeu seguiu-se a derrocada. Os bombardeamentos feitos a Berlim, começaram a atingir proporções inauditas a partir de princípios de março de 1943, indo num crescendo tão espantoso, que durante o Inverno desse ano a grande capital alemã parecia um imenso campo de batalha. Ninguém pode calcular o que foi a vida daqueles que sofreram esses bombardeamentos de grandeza apocalíptica. Pelas ruas em ruínas e semidesertas seguiam vultos sombrios, transportando em malas ou pastas os seus últimos haveres. Raras eram as casas intactas. O Instituto para Portugal e Brasil apresentava um aspeto lastimoso; entre esqueletos de casas, erguia-se ainda, com os tetos esburacados, os vidros estilhaçados e as portas rebentadas. Mas era agora um refúgio para muitos, e davam aulas ali vários outros professores, que tinham ficado sem seminário, ou instituto. Os estudantes apareciam e o Diretor do Instituto e o Assistente faziam todos os esforços para dominar a situação e para que tudo corresse com a máxima normalidade. A atitude era louvável e compreensível para aqueles que jogavam tudo numa guerra total. Para nós, português e neutral, a questão era diferente. Se a princípio a nossa missão era a de propagar a Cultura Portuguesa, mesmo com risco da própria vida, agora só nos restava manter uma boa diplomacia, de maneira a que, sem fazermos um jogo que não era o nosso, não fôssemos ferir o orgulho dum povo, com quem Portugal queria manter boas relações, e a quem intelectualmente muito devemos. Foram uns tempos difíceis e bastante improdutivos. Várias vezes perdemos o quarto em que nos abrigávamos. Tivemos de dormir inúmeras noites em quartos sem vidraças, e sempre novos bombardeamentos convertiam a cidade num mar de chamas e em montões de ruínas. Enquanto que os funcionários superiores da nossa Legação e Consulado, só por horas, vinham de tempos a tempos à cidade, vivendo no Palácio de Hohenfinow em Eberswalde, que dista 60 quilómetros de Berlim, nós tínhamos de viver na cidade, pois era aí o nosso posto. Naturalmente, íamos frequentes vezes à Baviera, onde tínhamos casa e onde havia outra tranquilidade.

As aulas eram raras, pois os dias que se seguiam aos grandes bombardeamentos eram dias mortos e a atmosfera tornava-se cada vez mais pesada e soturna. Não havia livros nas bibliotecas, alguns professores davam aulas em suas casas, os transportes eram difíceis e a alimentação escassa. Os primeiros dias de 1944 vieram modificar a nossa situação. Depois de vários bombardeamentos, cada um mais intenso que os outros, o Instituto para Portugal e Brasil foi devorado pelas chamas, perdendo nós, dois dias antes, aproximadamente mil volumes, que deviam seguir em caixotes para Lisboa num avião da Lufthansa. A perda dos livros representa para um homem de estudo una fatalidade irreparável, pois além do grande valor corrente, que as obras representavam, elas eram, em grande parte, o material de trabalho da especialidade a que nos dedicáramos na Alemanha. Meses depois perdíamos 7 malas em que transportávamos todas as roupas de casa, objetos de uso caseiro, roupas de corpo, coleções de cartas geográficas antigas, desenhos, aguarelas e óleos originais de artistas estrangeiros e todas as músicas de minha mulher, o que representa uma perda equivalente à dos livros.

Com o desaparecimento do Instituto tornava-se desnecessária a nossa estada em Berlim, e, se bem que em contacto com a Universidade, resolvemos ir até Munique, tentar, num esforço desesperado, concluir o doutoramento, que a nossa transferência para Berlim tinha interrompido. Tudo indicava que os aliados fariam um desembarque na Europa, o que podia representar um corte das comunicações com Portugal, e resolvemos, portanto, levar a cabo o doutoramento em péssimas condições de trabalho.

De maneira nenhuma queríamos ficar com a impressão de ter falhado, vindo sem concluir aquilo que uma vez tínhamos iniciado. Metemos ombros à empresa, e apesar de serem substituídos professores a última hora, conseguimos realizar com sucesso as provas de doutoramento, apresentando uma tese sobre “Vilarinho da Furna”, monografia dum povo autárcico na Serra da Amarela.

Lastimámos que não nos fosse dado ensejo de trabalhar mais uns semestres em seminários da especialidade, pois só assim ficaríamos com a preparação ambicionada. Esperemos que o futuro nos deixe satisfazer este desejo.

O estudo da Etnografia a que nos dedicamos na Alemanha, com o abandono da Filologia Germânica, em que primitivamente nos licenciáramos, nasceu do grande amor da terra e do povo, que por circunstâncias fortuitas conhecíamos excecionalmente bem, e que num país estranho convinha realçar, porque em campo nenhum somos ricos como neste.

Os alemães corresponderam com um interesse imprevisto às minhas palestras sobre Cultura Popular, e com grande espanto vimos, que esses estudos tinham, naquela nação, lugar de invulgar relevo. Nós, que frequentáramos Coimbra, nunca ouvíramos falar em tais assuntos, e só na cadeira de Geografia Humana se aborda este tema, embora olhado pelo aspeto exclusivamente geográfico.

Como Leitor de Português a nossa missão era ensinar Cultura Portuguesa, e sob esta epígrafe tanto se subentende a Cultura Superior como a Cultura Popular. Embora não estivéssemos em idade de recomeçar, entendemos que ainda podíamos servir o nosso País melhor, dedicando-nos a uma ciência de grande futuro e que contribui para o seu engrandecimento, do que continuarmos a trabalhar em Filologia Germânica de ingratos resultados para latinos, e em que só grandes espíritos podem brilhar.

Aproveitámos as férias para calcorrear o Norte de Portugal em vários sentidos, detendo-nos aqui e acolá o tempo necessário para colher elementos para futuros trabalhos. Para a dissertação servimo-nos dos dados colhidos em Vilarinho da Furna, fazendo uma monografia em profundidade, que pretendemos fazer seguir de várias outras, que servirão de pilares para o levantamento dum Atlas Etnográfico, e de base para estudos de síntese e generalização, que no futuro se venham a fazer. O objetivo máximo dos nossos estudos, se a vida o permitir, será a realização dum Ensaio da História da Cultura Portuguesa, em que a Cultura Popular aparece como o substrato da Cultura Superior. Servindo-nos de certos capítulos já elaborados, fizemos aulas na Alemanha, que despertaram vivo interesse. Sobre este projeto falámos muitas vezes com professores alemães, que nos animaram imenso, por reconhecerem o grande alcance duma tal realização.

Esta ciência, bastante nova, que os alemães designam de “Volkskunde”, não tem em português uma tradução satisfatória. A autoridade do grande investigador e erudito José Leite de Vasconcelos pretendeu dar à palavra Etnografia a extensão da “Volkskunde” alemã e é já tarde para se procurar uma outra que melhor sirva para designar esta ciência moderna e de tão vasto futuro, não só pela imensidade do filão a explorar, como pela importância do seu conteúdo, que pode e deve trazer elementos fundamentais para a melhor compreensão da História da Cultura da Humanidade.

O termo Etnografia peca pelo muito uso que dele já se fez, para designar um ramo do saber bastante mais limitado, que o conceito de “Volkskunde”. As outras nações de línguas românicas têm lutado com a mesma dificuldade que nós, e reina uma certa confusão no caso, não faltando sugestões variadas. Reconhecendo, portanto, o risco que representa a adoção de Etnografia como tradução de “Volkskunde” preferimos seguir as pisadas de Leite de Vasconcelos, que na sua Enografia Portuguesa rasga os alicerces do grande edifício que está por construir.

A Etnografia estabelecendo as relações entre a Geografia Humana (Ciência da Natureza) e a História (Ciência do Espírito), tem o poder de esclarecer nesta última muitos pontos obscuros deixados pelo fundo irracional das forças telúricas, que por vezes, obliteram a lógica clara do espírito humano.

Conseguimos salvar o manuscrito das traduções da lírica moderna portuguesa do Senhor Ulrich Weber, que apesar de abranger umas dezenas de traduções não está concluída. Se ele ainda for vivo, quando a guerra acabar esperamos que ele a acabe, senão publicá-la-emos assim.

Ao acabar este relatório, que representa o fim do nosso mandato na Alemanha, onde durante seis anos exercemos as funções de Leitor, primeiro em Rostock, depois em Munique e por fim em Berlim. Seis anos dos quais cinco foram passados em guerra, e guerra tremenda, em que sofremos inúmeros bombardeamentos horríveis, privações, prejuízos e, por vezes, mesmo fome, sentimo-nos satisfeitos e orgulhosos por termos cumprido a nossa missão da melhor maneira, pondo acima de tudo os interesses do País. Resta-nos agora exprimir o nosso agradecimento ao Instituto para a Alta Cultura e em especial ao Senhor Doutor António de Medeiros Gouvêa, que nunca deixámos de encontrar pronto para tudo que fosse necessário, animando-nos e aconselhando-nos da maneira mais eficaz, tornando assim a nossa missão mais fácil de levar a cabo com êxito.

Também não queremos esquecer o concurso de vários professores alemães, que grande interesse votaram à causa da Cultura Portuguesa como: Harri Meier, Vossler, Rheinfelder e Rohlfs.

O Leitor

[Ass. António Jorge Dias]

Documento 11

Arquivo Jorge e Margot Dias (Museu Nacional de Etnologia), JD4/pasta 5

(manuscrito; traduzido do alemão por Inês Cardoso, revisão de Fernando Clara).

Munique, 28.12.46

Caro Sr. Dr. Dias,

Desde a sua partida da Alemanha, não tivemos notícias um do outro. Espero que esteja tudo bem consigo e com a sua família.

Eu próprio resisti bem à guerra com a família e a casa. Depois de ter sido suspenso pelos Nazis e de um sensato procurador do Ministério Público [Staatsanwalt] ter poupado, com muita argúcia, o ‘reú Rohlfs’ ao campo de concentração, fui o primeiro professor catedrático da Universidade de Munique a ser confirmado no meu posto pelos americanos no ano passado.

Muitos professores e docentes foram demitidos da nossa faculdade: Lehmann, v. Müller, Cysarz, Dölger, d’Ester, Höfler, Spindler, Wüst, Grunsky, Dirlmeier, Till, Koschmieder, Crämer, Kehrer, Till, von Isenburg. Nas Românicas apenas o Elwert teve de sair.

O edifício da universidade ficou em ruínas em julho de 1944: o seminário de Românicas foi poupado, mas perderam-se muitos livros. Temos um leitor italiano, uma leitora germânico-argentina, para o francês temos um alemão e em breve teremos um novo leitor de romeno para o lugar de Matejka. Tem vontade de voltar a Munique como leitor? Vous seriez le bien-venu!

O número de alunos é imenso. Temos cerca de 250 Romanistas. Não é agradável.

Neste momento, eu próprio estou a preparar para publicação uma coleção de ensaios escolhidos que incluirá também diversos ensaios sobre o folclore românico.

Conhece por acaso em Portugal exemplos de canções de metamorfose, do género da ‘Chanson de Magali’ de Mistral? Falo da poesia de debate medieval entre um amante e uma amada, no qual a rapariga escapa aos avanços do amante transformando-se em pássaro (ele em caçador), em peixe (ele em pescador), numa árvore (ele em lenhador) etc. Poderia mandar-me 1-2 canções de Portugal, de modo a conseguir ainda incluí-las no meu ensaio ‘O motivo da metamorfose na canção popular’?

Por fim, posso sugerir-lhe ainda uma troca? Afinal, vivemos na época das trocas. Por uma cópia do meu exemplar de “ensaios escolhidos” (cerca de 500 páginas), a ser publicado em 1947, poderia enviar-me cacau, café, chá (ou também cigarros)? Também desejaria sabão.

Enquanto o correio normal de encomendas não funciona, poderia enviar a encomenda a um bom conhecido meu francês (está estacionado em Starnberg):

Lieutenant Bertrand Akar, J.G.C.R.

A.J.O. 170 U.S.A. Army

Com os votos cordiais de bom ano novo para si e para a sua família

Cumprimenta-o com amizade

o seu Gerhard Rohlfs

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1A digitalização e a transcrição dos documentos agora editados foram suportadas financeiramente pelo CRIA, no âmbito da linha de investigação “Políticas e Práticas da Cultura”. Agradeço a Karin Dias e a Júlia Dias - filhas de Jorge Dias - a disponibilidade que sempre revelaram para colaborarem na pesquisa que tenho vindo a conduzir sobre Jorge Dias. Agradeço à Dra. Clara Pavão Pereira o apoio que me prestou na pesquisa conduzida no Arquivo do Instituto Camões, e à Dra. Catarina Mira a digitalização e transcrição da documentação relativa a Jorge Dias constante do Arquivo do Instituto Camões. A Dra. Alexandra Oliveira, bibliotecária e arquivista do Museu Nacional de Etnologia, tem-me prestado uma ajuda inestimável na pesquisa que tenho a vindo a conduzir no Arquivo Jorge e Margot Dias (Museu Nacional de Etnologia). Joana Salgado - estudante da licenciatura em Antropologia da FCSH (UNL) - realizou a transcrição de alguns dos documentos agora publicados depositados no Arquivo Jorge e Margot Dias, e Inês Cardoso realizou a tradução de dois documentos originalmente escritos em alemão. Agradeço a todas. Mas os meus agradecimentos mais enfáticos são para Catarina Alves Costa, que me fez companhia nalguns passos desta pesquisa e fotografou as fotografias agora publicadas, e para Fernando Clara, colega de Estudos Alemães na FCSH (UNL), de quem recebi múltiplas informações e com quem dialoguei amiúde acerca dos anos alemães de Jorge Dias.

2Arquivo do Instituto Camões PT/MNE/CICL/IC-11/01439/5, doc. 5.

3Arquivo do Instituto Camões PT/MNE/CICL/IC-1/01471/01, doc. 55 e PT/MNE/CICL/IC-1/01439/05, doc. 39.

4Arquivo do Instituto Camões, PT/MNE/CICL/IC-1/01440/01, doc. 57 e PT/MNE/CICL/IC-1/01440/01, doc. 65.

5Embora a maioria dos documentos agora publicados provenham dos arquivos do Instituto Camões, dois deles - a páginal final da tese de doutoramento e a carta de Rohlfs - provêm, respetivamente, da Biblioteca do ICS, onde se encontra depositado o único exemplar da tese de Dias existente em Portugal, e do Arquivo Jorge e Margot Dias (Museu Nacional de Etnologia).

6Comentando esta passagem do Relatório, Rui Pereira sublinha que “este tipo de considerações […] são de molde a desmentir, inequivocamente, as insinuações que […] têm pretendido atribuir a Jorge Dias uma hipotética simpatia pela causa nazi, apontando, para o efeito, a sua permanência na Alemanha, enquanto leitor de Português e concluindo aí o seu doutoramento, entre 1938 e 1944” (Pereira 2021: 397).

7Para uma abordagem mais completa dos processos de expulsão das populações de origem alemã fixadas, até ao final da II Guerra Mundial, na Checoslováquia, na Hungria e na Jugoslávia de então, ver MacDonogh (2008: 126-161).

8Sobre a Volkskunde nazi ver Georget (2022).

9Sobre Höfler, ver https://en.wikipedia.org/wiki/Otto_H%C3%B6fler. De acordo com esta biografia, “from 1935 [Höfler] lectured at the University of Kiel. In that same year he became a member of the selection committee for the Reichsberufswettkampf, an organization associated with the SS. From 1938, Höfler was Professor and Chair of Germanic Philology and Ethnology at the University of Munich. Also in 1938, he became a leader of the SS Ahnenerbe, an organization he had joined in 1937, and which was partially responsible for him receiving his position in Munich”.

10Esse prestígio vem até tempos mais recentes. Prova disso é a publicação, em 1990, da sua biografia (Gemelli 1990), e, em 2006, de uma coletânea de textos e fotografias de Gerhard Rohlfs (Panzarella 2006). Sobre Rohlfs ver também Casagrande (1987) e Kahane e Kahane (1989).

11Arquivo do Instituto Camões PT/MNE/CICL/IC-1/01439/05, doc. 18.

12Cf. também Arquivo do Instituto Camões PT/MNE/CICL/IC-1/01439/05, doc. 18.

13No “Relatório de atividade do Leitorado de Munique desde o semestre de verão de 1939 até ao semestre de inverno de 1941-42” (Arquivo do Instituto Camões PT/MNE/CICL/IC-1/01440/01, doc. 6/2) Jorge Dias escreve: “Temos quase concluída a tese de doutoramento sobre um assunto de cultura popular portuguesa. Trata-se duma monografia da vida dum pequeno povo autárcico da Serra da Amarela, que, condicionado por um meio geográfico especial, desenvolveu uma cultura com características mais ou menos próprias. O estudo procura abranger todas as manifestações da atividade deste pequeno povo, desde a cultura agrícola, pastoril até à organização social e à vida espiritual, focando-se também a parte linguística”.

14Arquivo do Instituto Camões PT/MNE/CICL/IC-1/01439/06, doc. 58.

15Posteriormente ao fim da II Guerra Mundial, Jorge Dias manteve algum contacto com Rohlfs. Do arquivo Jorge e Margot Dias (MNE) constam um total de cinco cartas de Rohlfs para Dias (uma das quais agora publicada; ver documento 11). Em 1949 há uma sugestão de Jorge Dias junto de Mendes Correia - diretor do Centro de Estudos de Etnologia Peninsular, no qual Dias dirigia a Secção de Etnografia - para que Rohlfs, de visita a Madrid, se possa deslocar a Portugal [JD4/1(3)], o que acontecerá em 1951 (“Relatório da Actividade da Secção de Etnografia do Centro de Estudos de Etnologia Peninsular” relativo a 1951) (Arquivo do CEEP, Museu Nacional de Etnologia). Em 1952, Dias foi um dos nomes que participou numa homenagem a Rohlfs por ocasião dos seus 60 anos (Gemelli 1990: 83).

16Gemelli descreve Rholfs como tendo “uma firme posição anti-fascista” (Gemelli 1990: 119). Havia-se nomeadamente prestado a apoiar colegas em dificuldades com o regime fascista italiano: “todos sabiam […] da sua posição […] em relação ao regime e olhavam para ele como um amigo junto de quem se podiam refugiar em caso de necessidade” (Gemelli 1990: 119).

17As sua teses, como mostrou Carlo Ginzburg (1986: 314-324), tinham um recorte filo-nazi, expresso nomeadamente no paralelo que estabelecia entre as antigas sociedades guerreiras masculinas germânicas e as SA.

18N.E.: Os documentos que seguem abaixo foram mantidos com o texto original sem qualquer alteração nem adaptação ao novo acordo ortográfico.

Recebido: 19 de Abril de 2023; Aceito: 02 de Junho de 2023

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