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Etnográfica

versão impressa ISSN 0873-6561

Etnográfica vol.27 no.2 Lisboa ago. 2023  Epub 22-Ago-2023

https://doi.org/10.4000/etnografica.14094 

Recensão

Cristina Rocha, João de Deus: The Globalization of Brazilian Faith Healing, Oxford University Press, 2018, 288 pp., ISBN: 978-019-046-670-1

1 Investigadora, ICS - Universidade de Lisboa, Portugal, mcsaraiva@ics.ulisboa.pt,


O livro de Cristina Rocha 1 prende-nos desde o seu início, com uma vignette sobre as entrevistas conduzidas por Oprah Winfrey em 17 de Novembro de 2010, no seu famoso The Oprah Show. São três os entrevistados: a editora da revista O, The Oprah Magazine, um professor de psiquiatria de Harvard e uma mulher, diagnosticada com um tumor no pescoço. Estas três pessoas tinham em comum serem norte-americanas e terem todas visitado a Casa de Santo Inácio de Loyola, em Abadiânia, Goiás, em busca de alívio para os seus males. Um ano e meio mais tarde, a própria Oprah foi à Casa de Santo Inácio, e testemunhou “a energia que aí sentiu” (excerto de documentário na plataforma Netflix João de Deus, Cura e Crime). Nessa altura, João de Deus já era mundialmente conhecido como um curandeiro que, incorporando várias entidades, realizava cirurgias sem anestesia, desinfecção 2 ou esterilização, curava gente de todo o mundo que vinha a Abadiânia para estar com ele, nem que fosse por escassos segundos. A ascensão e a visibilidade internacional de João de Deus tinham começado nos anos 90, e a sua queda deu-se em 2018, quando lhe foram instaurados processos judiciais por abuso sexual, tendo surgido mais de 300 mulheres a apresentar testemunhos desses crimes.

A magnífica obra de Cristina Rocha (que obteve em 2019 o Geertz prize da Society for the Anthropology of Religion da American Anthropological Association) oferece um relato em primeira mão do que foi, durante dez anos, o seu trabalho de campo multissituado. Apesar de se ter focado no terreno de Abadiânia, Rocha seguiu João de Deus nas suas viagens e eventos mundiais na Europa (Grécia, Áustria, Alemanha, Suíça, entre outros), Austrália e Nova Zelândia, no Brasil e nos Estados Unidos. Salientando o transnacionalismo dos seus seguidores, a autora pretende não apenas perceber a criação de “filiais” da casa de Santo Inácio pelo mundo fora, mas também entender como é que pessoas de todos os continentes, com universos cognitivos e religiões diversas, eram atraídas por esta personagem. Seguindo a perspectiva de Appadurai (1996), mostra como a cartografia da globalização religiosa é complexa, e os fluxos de expansão religiosa não se dão apenas no sentido Norte-Sul. Uma cidade perdida no centro do Brasil passou a ser um centro de atracção, “inserido num processo de re-sacralização e crescimento espiritual na modernidade tardia” (1996: 3).

Combinando as vignettes e descrições etnográficas com teoria sobre a essência e o poder da religião num mundo em que tanta gente se diz “espiritual, mas não religiosa” (Fuller 2001), o livro discute as principais tendências ligadas a essa espiritualidade (seguindo a perspectiva de Heelas e Woodhead 2005), que coincidem, de certo modo, com as variadas tendências religiosas que se entrecruzavam no universo do curandeiro (kardecismo, catolicismo e umbanda, new age). O texto mostra também como o sentido de “comunidade” é importante e ultrapassa fronteiras físicas, i.e., como os seguidores de João de Deus formaram uma comunidade espiritual verdadeiramente transnacional, baseada na concepção de cura pela fé.

No capítulo 1, a antropóloga dá-nos um relato dos primeiros contactos com João de Deus, a difícil entrada no terreno e os desafios por que passou até ser verdadeiramente aceite por ele, pela sua entourage e pelos seus seguidores e pacientes. Reflecte ainda sobre o seu posicionamento como investigadora e a sua dupla condição de insider (como brasileira) e outsider (vivendo e trabalhando na Austrália).

No segundo capítulo temos a história de João de Deus, de como consegue “ a sua mágica” e a contextualização de como criou o que o próprio denomina um “hospital espiritual”, que é um verdadeiro melting pot. O texto fornece uma reflexão cuidada sobre as várias influências religiosas e o seu papel na formação das espiritualidades brasileiras e ao nível mundial.

O terceiro capítulo discute a noção de cura como um processo cultural, usando algumas histórias de pacientes e debatendo as teorias de Kleinman sobre o que é doença, atendendo aos aspectos holísticos, ultrapassando a dicotomia corpo/mente e insistindo na componente cultural da aflição. As histórias que nos traz retratam o quanto, para os/as pacientes, as experiências vividas na Casa de Dom Inácio deram sentido ao sofrimento e de como eles/elas se rendiam a um poder superior, que não sabiam explicar, mas que lhes trazia conforto e alívio para as suas aflições.

O capítulo 4 põe os “locais de Abadiania” a relacionarem-se com os “visitantes”, muitos deles estrangeiros à terra e à cultura local. São esses visitantes que enchem as lojas e as pousadas de Abadiânia, que dão trabalho a taxistas e a guias turísticos, e que alimentam o fluxo constante entre o aeroporto de Brasília e a cidade. De pequena localidade perdida no interior de Goiás, Abadiânia passou a ser um terreno glocalizado, conhecido pelo mundo fora.

O capítulo 5 sai de Abadiânia e fornece o retrato da globalização do fenómeno João de Deus, focando sobretudo o trabalho de tradução cultural operado pelos guias turísticos e por uma série de livros, websites, social media, etc., que oferecem visões da cidade, do trabalho espiritual na casa de Santo Inácio e do próprio medium, que se adaptam às conceptualizações dos estrangeiros. Essa perspectiva é continuada no capítulo 6, expandindo a reflexão sobre tansnacionalismo religioso, e explorando o que faz com que as pessoas de fora pensem a Casa como a sua “casa espiritual” e mantenham os laços com ela, mesmo quando longe do Brasil, a forma como expressam a sua nostalgia pela Casa e pelos períodos aí passados.

O capítulo 7 trata especificamente da visão pelos aborígenes australianos e da Nova Zelândia em relação ao curandeiro, expressa nas acções rituais por eles realizadas aquando das visitas de João de Deus, e o modo como redireccionam elementos do espiritismo e outros ensinamentos de João de Deus e os relacionam com as suas próprias histórias e espiritualidades, como forma de empoderamento deles próprios relativamente a australianos não indígenas. Isto é, a autora mostra como o caso de João de Deus e a relação dos aborígenes com ele reflectem a forma como os povos autóctones australianos e neozelandeses estão eles próprios imersos na pós-modernidade e num processo de globalização.

Finalmente, a conclusão reflecte sobre as interacções entre o Norte global e o Sul, a importância do transnacionalismo e da globalização na formação da espiritualidade da nossa modernidade tardia, e aponta pistas para reflexões futuras.

O livro consegue uma meticulosa análise antropológica dos fenómenos de ontologias e transnacionalismo religioso, globalização, glocalização, e as variadas expressões de espiritualidade no mundo presente. Mostra como João de Deus conseguia oferecer às pessoas uma “experiência radical do sagrado” e esperança, onde a medicina convencional falhava, e o sentimento de pertencerem a uma comunidade, crente na acção de medicinas alternativas e geradora de uma união espiritual transnacional. (Rocha 2018: 8-9). Ao mesmo tempo, é escrito com uma fluência narrativa que prende o leitor do início ao fim. As descrições das histórias das personagens e dos seguidores de João de Deus que a antropóloga entrevistou e com quem conviveu ao longo de anos constituem relatos etnográficos profundamente ricos, que humanizam a teoria.

Uma crítica fundamental serve como fio condutor do texto: a que faz à visão etnocêntrica e orientalista do que é o Brasil e a sua espiritualidade, e à potencial pretensão de justificar o êxito de João de Deus de uma forma simplista como uma questão cultural, sobretudo quando a maioria dos seguidores não era brasileira.

Através da combinação dessas análises e críticas com uma postura analítica sobre a sua própria condição de pessoa (para além da sua condição de pesquisadora), ela própria afetada pela doença, Rocha, usando a proposta de Ruth Behar (1996) que pensa o investigador como um “observador vulnerável”, conduz-nos assim ao universo da antropologia reflexiva, no que ela tem de melhor.

O texto faz-nos ainda viver intensamente os dados etnográficos relatados. Somos levados a ver, ouvir e sentir o que os crentes na “magia” de João de Deus sentiam quando se submetiam a experiências radicais, como quando ele os cortava com uma faca de cozinha ou lhes enfiava uma tesoura pelas narinas, sem qualquer tipo de anestesia ou uso de assépticos. Escrito antes dos escândalos que rodeiam o curandeiro, mais do que um texto de rise and fall de João de Deus, o livro constitui um marco importante (e de indispensável leitura) na antropologia da religião contemporânea.

Bibliografia

APPADURAI, Arjun, 1996, Modernity at Large. Minneapolis: University of Minnesota Press. [ Links ]

BEHAR, Ruth, 1996, The Vulnerable Observer: Anthropology that Breaks Your Heart. Boston, MA: Beacon Press. [ Links ]

FULLER, Robert, 2001, Spiritual, but not Religious: Understanding Unchurched America. Oxford: Oxford University Press. [ Links ]

HEELAS, Paul, and Linda WOODHEAD, 2005, The Spiritual Revolution: Why Religion Is Giving Way to Spirituality. Oxford: Blackwell. [ Links ]

ROCHA, Cristina, 2018, João de Deus: The Globalization of Brazilian Faith Healing. Oxford: Oxford University Press . [ Links ]

1Geertz prize 2019, Society for the Anthropology of Religion - American Anthropological Association.

2A autora escreve segundo o antigo acordo ortográfico.

Recebido: 12 de Maio de 2023; Aceito: 02 de Junho de 2023

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