A partir de um investimento etnográfico denso, o livro Minoritarian Liberalism: A Travesti Life in the Brazilian Favela, de Moisés Lino e Silva, traz interessantes reflexões a respeito dos limites ao (suposto) caráter universal e inequívoco em torno do “liberalismo”. Nesse sentido, como o próprio autor afirma, as experiências e definições das moradoras e dos moradores da favela da Rocinha a respeito da liberdade desafiam a estabilidade daquilo que se constitui, a partir de seus próprios questionamentos e de ampla literatura acadêmica discutida, como “normative liberalism” (ou “majoritarian liberalism”). Nesse sentido, a obra é especialmente instigante ao demonstrar que há um bias de origem em torno do conceito de “liberdade” do/no “liberalismo”, dada a existência de uma espécie de definição ou entendimento pré-discursivo ao seu respeito, fundamentalmente conformado por experiências de classe, raça, gênero, sexualidade e território. O intenso e rico trabalho de campo desenvolvido por Lino e Silva evidencia a potência de seu postulado teórico, bem como a importância de tomar as “politics of freedom” como tema de investigação antropológica e sob perspectiva etnográfica.
Em consonância com tais argumentos, o livro nos oferece uma série de reflexões e dados a respeito da formulação, emergência e experiências daquilo que chama de “minoritarian liberalisms”. Aqui considero ser um dos aspectos mais importantes do texto. O autor não se restringe apenas a demonstrar as falas e experiências que permitem concluir uma espécie de “ ‘disidentification’ of favela dwellers with the normative liberalism of the Brazilian elites” (Silva 2022: 191), mas aponta para as complexidades, divergências e complementariedades entre os diferentes “minoritarian liberalisms” que observou a partir da favela da Rocinha. Cabe aqui destacar esse “a partir”, pois, fiel à sua sensibilidade etnográfica, Lino e Silva realizou trabalho de campo em outras localidades (como o interior do Nordeste brasileiro e na Itália) para embasar suas reflexões sobre o significado que a liberdade assumia entre suas interlocutoras e seus interlocutores na favela carioca. Nesse sentido, o empenho e desafios do trabalho de campo retratados na obra também fazem do livro uma interessante reflexão sobre os desafios metodológicos/etnográficos à Antropologia hoje - como com o convite que ele faz para descolonizarmos o liberalismo e a antropologia.
Diante desse quadro, Minoritarian Liberalism traz contribuições relevantes e inovadoras à Antropologia, mas, de maneira mais ampla, também aos estudos queer, de gênero e sexualidade, sobre as cidades e periferias, sobre o Sul Global, bem como à Sociologia e à Filosofia. Dado que a etnografia parte da vida de uma travesti em uma favela brasileira, tendo como eixo organizador o tema da liberdade e uma crítica ao liberalismo normativo, oferecendo, portanto, elementos para compreender as transformações que têm ocorrido nas sociedades contemporâneas, bem como os efeitos e resistência ao colonialismo e ao capitalismo de exploração no Sul Global, me interrogo a respeito dos impactos que as intensas transformações sociais que temos observado no Brasil podem ter junto daquelas interlocutoras e daqueles interlocutores.
A pesquisa de campo de Moisés Lino e Silva se deu, com alguns intervalos, entre 2010 e 2012. Em período em parte concomitante, entre 2009 e 2011, também desenvolvi uma etnografia entre lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais (LGBT) em outra favela no Rio de Janeiro, o conjunto de favelas da Maré (Lopes 2011). Muito influenciado por Valladares (2005) e Duarte et al. (1993), investiguei, entre outras questões, os impactos subjetivos e morais que a participação em “projetos sociais”, conduzidos por organizações não governamentais e atores estatais naquele território, poderia ter nas trajetórias, experiências e discursos produzidos por minhas interlocutoras e interlocutores, bem como na emergência de um sujeito coletivo específico para o associativismo e para as políticas públicas no Brasil daquele período: a/o “LGBT morador de favela”.
Durante as nossas investigações, o Brasil vivia intensas transformações sociais e políticas que ampliavam os direitos de diversos segmentos populacionais. A saída do país do mapa da fome, o incremento do consumo das/para as camadas populares, com a emergência de “uma nova classe média, a classe C”, e a ampliação do acesso à educação superior, entre outros avanços sociais, se combinava com a maior visibilidade positiva das identidades não cis-heterossexuais, impulsionada pelas chamadas “Paradas do Orgulho”, pela profusão de produtos midiáticos e bens de consumo, e por políticas públicas e movimentos sociais voltados a essa população. Esse cenário, é possível crer, constituía outro horizonte em que o país se via (e experimentava?) uma “democratização” do “liberalismo normativo”, sobretudo por setores (aparentemente) historicamente alijados de alguns dos seus corolários.
Muita coisa ocorreu desde que as nossas pesquisas foram encerradas. Além de termos passado pela experiência de rompimento ilegal de um dos elementos estruturantes do nosso pacto republicano, o golpe contra a presidenta Dilma Rousseff em 2016, as reformas regressivas e negadoras de direitos que se seguiram, bem como o reencontro entusiasmado e sem constrangimentos com nossa tradição violenta e autoritária dos anos Bolsonaro e do bolsonarismo, experimentamos uma aguda crise econômica e a própria pandemia de Covid-19. Desde esses fenômenos e suas consequências, é possível crer que temos outras cenas e cenários para novos/outros “minoritarian liberalisms” e, em especial, à “heterotopia” experimentada a partir da/na Rocinha. Hoje, cerca de dez anos após o encerramento de sua pesquisa de campo, após esses intensos eventos na vida das suas interlocutoras e interlocutores, na Rocinha e no Brasil, mas também em sua vida, é possível ressaltar um aspecto macro, sociológico, sócio-histórico, central às experiências e discursos que etnografou em sua pesquisa? O que uma perspectiva retrospectiva, a partir desses enquadramentos, permitiria perceber a partir da pesquisa que desenvolveu? Não obstante, você crê que, em especial, a experiência do governo Bolsonaro e a força do bolsonarismo nos oferece novos desafios e/ou novas razões para encararmos o seu convite de descolonizarmos o liberalismo?