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Economia Global e Gestão

versão impressa ISSN 0873-7444

Economia Global e Gestão v.16 n.3 Lisboa dez. 2011

 

Ponta Final (A gestão da condição humana)

Mário Murteira

 

INTRODUÇÃO

A «ponta final» da vida humana tem vindo a prolongar-se nas últimas décadas, graças à impressionante dilatação da duração média da vida humana. Esta circunstância, só por si, deu maior relevo ao que chamo a «ponta final da existência». No mundo dito «desenvolvido» (seja o que for que isso signifique), a ponta final que refiro corresponde a um tempo em que a pessoa já terminou a sua carreira profissional, vive da pensão de reforma ou do rendimento acumulado ao longo dos anos de actividade, e dispõe de muito «tempo livre», embora com frequência toldado pelos problemas de saúde que geralmente se associam à idade avançada.

Na melhor hipótese, é tempo de grande liberdade individual, pois acabou a «lufa-lufa» quotidiana para de algum modo ganhar a vida, mesmo que noutro sentido seja de modo a perdê-la, por permanente falta de tempo para realizar o que mais se deseja.

E é a altura, também, de olhar «pelo retrovisor» e tentar reconstituir o caminho percorrido, e também o tempo da nossa vida, incluindo as peripécias mais felizes ou mais dolorosas do trajecto. E encontrar as possíveis respostas para questões essenciais da condição humana que foram, deliberada ou inconscientemente, ignoradas durante a vida activa. Em suma, trata-se de encontrar a «moral da história», ao menos da história pessoal, ao passo que a outra História, com maiúscula, é muito mais enigmática e, aliás, desinteressante para a grande maioria dos seus passageiros figurantes.

O «mundo» tem mudado… tal como a nossa maneira de vê-lo e de vivê-lo

Como sabemos, o «mundo» tem mudado cada vez mais rapidamente e também a nossa maneira de vê-lo, e sobretudo de vivê-lo.

Cabe aqui uma referência ao processo histórico que usualmente é designado por «modernidade» e que remonta aos Sécs. XVII e XVIII. No essencial, e na perspectiva deste ensaio, regista-se uma afirmação radical da liberdade individual, a construção de um novo conceito de cidadania, e tudo isto resultando na liberdade de pensamento da pessoa, ou pelo menos, na abertura de novos caminhos para essa liberdade. Essa afirmação, entre outros efeitos, implicaria a necessidade de profunda reforma da Igreja Católica, apesar da sua teimosa resistência que ainda hoje se mantém.

Pois é essa «modernidade», com todas as suas ambiguidades e incertezas, que nos traz, cada vez mais rápida e globalmente, o tempo de grandes mudanças em que nos encontramos.

Noto que há a registar três diferentes dimensões de mudança: o que o mundo «é», por exemplo, em termos de condições materiais de vida, de configuração de centros urbanos, de meios de transporte; o que «observamos» nesse mundo, por meios como a televisão, ou os instrumentos científicos de conhecimento da realidade; e ainda como «vivemos» nesse mundo, segundo padrões culturais em evolução, por exemplo, em matéria de relações sexuais ou convivência de pais e filhos.

Neste último aspecto, é impressionante o distanciamento cultural que se observa entre sucessivas gerações, ocasionando que por vezes exista um sólido e espesso muro separando o entendimento, e mesmo o afecto, de pais e filhos.

Este ritmo de mudança decorre de vários factores, entre eles, o desenvolvimento científico e tecnológico, em particular no domínio das tecnologias da informação e da comunicação (TIC).

Mas resulta também do próprio fluxo tumultuoso da História, onde se situa o sistema de organização social dominante, isto é, o capitalismo, hoje globalizado como nunca antes.

Globalização que, por sua vez, significa crescente interdependência entre as economias e as sociedades do sistema mundial. As «partes» desse «todo», a que chamamos o capitalismo do mercado global, nunca estiveram tão integradas como actualmente sucede, pesem embora as conhecidas desigualdades e assimetrias do sistema. Além do mais, e apesar de todas as resistências formais ou informais, as pessoas movimentam-se hoje no espaço com maior facilidade, mesmo correndo sérios riscos na sua segurança pessoal.

Estes factos, entre outras consequências, determinam no sistema, embora fortemente interdependente, uma assimetria de conhecimentos e visões do mundo dificilmente compatíveis, apesar de todas as tentativas de «democratização cultural» que têm sido esboçadas, com maior ou menor seriedade e determinação.

É de assinalar que, ao contrário do que seria de desejar, não se tem aprofundado e consolidado uma visão de direitos fundamentais comuns, algo como um denominador comum no processo em curso de democratização, pelo menos, de convivência intercultural.

Essa assimetria é, como já notei, assinalável no distanciamento entre gerações, implicando crescentes dificuldades no diálogo entre pais e filhos. A relação familiar tradicional intensa tende a dar lugar a outros tipos de relação intergeracional e intrageracional, em particular através de novos meios de comunicação social entre indivíduos e grupos.

Pode colocar-se a questão de saber como, neste contexto, tem (ou não) evoluído também a dimensão religiosa da condição humana, e em particular, a percepção dessa entidade misteriosa a que chamamos Deus.

Faz sentido, hoje, «procurar Deus» como fizeram (por exemplo) santos de séculos passados? Ou esta questão, ela própria, não tem sentido?

O que, por seu turno, nos conduz a questionar a expressão colectiva e institucional da religião – em particular a Igreja Católica – nesse processo.

Essa dimensão institucional dificilmente poderia adaptar-se ao ritmo em que muda o meio social circundante. Mas surge, antes do mais, a questão de saber o que é – ou deve ser – permeável a essa mudança ou, pelo contrário, deve ser preservado e guardado como o porventura mais precioso de todos os bens ao alcance dos homens, isto é, a fé num Deus misericordioso.

Por hipótese, essa seria a grande missão da Igreja Católica, designadamente.

A grande diversidade de conhecimentos e visões do mundo no seio da cristandade

A grande diversidade de conhecimentos e visões do mundo, a que acima aludi, manifesta-se hoje mesmo no seio da cristandade, ou seja, daqueles que partilham, ou julgam partilhar, a religião cristã.

No caso do catolicismo, o facto levanta dificuldades consideráveis ao papel da Igreja Católica, enquanto supostamente depositária de um determinado património espiritual e cultural. Neste, confundem-se elementos fundamentais da religião cristã – a leitura e interpretação dos Evangelhos, nomeadamente – com regras caducas e cada vez mais questionadas, como o celibato dos padres e a diferenciação dos géneros, com óbvia descriminação do género feminino.

A geral tendência, que não se manifesta só em Portugal, mas também noutros países europeus, para a diminuição do número de sacerdotes e também da frequência das cerimónias religiosas, e para o aumento daqueles que se consideram «crentes, mas não praticantes», é indício de tendências profundas da prática religiosa cristã actual.

Mas em África ou na América Latina, no Brasil designadamente, as tendências são diferentes e sugerem o renascimento da religiosidade. Embora, é certo, nestas tendências surjam também propósitos de mercantilização da religião, como expressão de forças dominantes num sistema social tão profundamente mercantil como o capitalismo.

Do ponto de vista mercantil, com efeito, a religião tornou-se um apetecível nicho de mercado.

Pois, a troco de promessas de «salvação da alma», algumas organizações oportunistas podem, e efectivamente têm-no conseguido, ganhar muito dinheiro.

E, como ameaçador pano de fundo nesta tão complexa questão, propagam-se manifestações violentas e terroristas de fundamentalismo religioso, o que conduz, entre outras consequências, ao suicídio ou sacrifício desesperado de muitos jovens, cuja morte é ao mesmo tempo causa de muitas vítimas inocentes e testemunho da doentia fidelidade a certa visão do mundo.

Destes factos parece resultar uma dupla tendência no seio da cristandade.

Por um lado, surge um apelo forte em cada verdadeiro «crente» para um aprofundamento pessoal e próprio da vivência religiosa .

O que conduz, ou pode conduzir, à redução, ou mesmo, exclusão da dimensão colectiva dessa vivência.

Mas, por outro lado, podem procurar-se novas experiências colectivas da religião cristã, eventualmente afastadas dos padrões normativos da Igreja Católica.

No primeiro aspecto, surge a questão de «compatibilizar», se tal fizer sentido, uma interpretação científica do universo e a interpretação cristã do mesmo.

Foi amplamente destacada pela comunicação social a notícia de que o cientista Stephen Hawking, ele próprio espantoso exemplo de sobrevivência humana, teria concluído que Deus, afinal, «não é necessário» para explicar a origem do Cosmos.

Que quererá isto dizer, na perspectiva da Ciência? Poderíamos antes perguntar: e que «falta faz» a Ciência, de um ponto de vista cristão, para «explicar» o Universo?

Em certo sentido, a desenvolver mais adiante, julgo legítimo afirmar que foi o homem que «criou», ou «cria», Deus e não o contrário. Num (afinal) minúsculo ponto do Cosmos, o planeta Terra, surgiu após biliões de anos de incerta experimentação vital, um complexo ser a que chamamos Homem e que necessitou, de algum modo, de se projectar em «Deus» para subsistir e, até, desenvolver-se.

Nesta perspectiva, a «morte de Deus», a verificar-se, significaria também a morte de certo «Homem». Cuja principal «razão de ser» teria sido, precisamente, a infindável busca de Deus.

Recordo que na linguagem de Theilhard de Chardin, o homem seria o «terceiro infinito», o infinito da complexidade, a Criação a caminho do Criador.

Quero dizer com isto que, se imaginarmos a infinita dimensão do Universo, ou dos múltiplos «universos» que podem coexistir no insondável espaço-tempo em que fugazmente existimos, a imagem divina que criámos, e em que cremos, só faz sentido se for entendida como representação antropocêntrica de algo de irredutível à condição humana, embora dela inseparável.

Mesmo sem ser perito na matéria, uma reflexão sobre as mais recentes perspectivas da Ciência sobre a «engenharia genética» do Universo, em particular deste planeta em que, como espécie transitoriamente, «sobrevivemos», deixa-nos perplexos sobre a imensa crónica natural do desenvolvimento dos seres humanos.

Crónica que passa, entre outras fases, pelo acidente cósmico que conduziu à extinção dos dinossauros e permitiu muito depois, em tempo próprio, a longa e gradual emergência da nossa espécie.

E, a este propósito, não posso evitar uma reflexão muito pessoal sobre a referida «engenharia genética», após recentes estadias na aldeia da Chã das Caldeiras, em Cabo Verde, a dois mil metros de altitude, e observando cerca de mil metros mais acima, a imponente silhueta do vulcão da Ilha do Fogo, ainda em actividade.

Lá do alto daquela montanha de cerca de três mil metros acima do nível das águas, desdobram-se múltiplas passadeiras de lava cristalizada que vão descendo até ao mar. Cada uma percorrida por estranhas configurações ou esculturas naturais de lava cinzenta, mais ou menos escura, e que decorrem de erupções de diferentes datas, a última das quais de meados dos anos 90 do século passado.

Convivendo com as pessoas que, em tal cenário, desenvolvem as peripécias aparentemente tranquilas duma vida pobre, mas feliz, espantamo-nos da infinita diversidade e complexidade do cosmos de que somos passageiros em breve trânsito para desconhecido destino.

Como também da simplicidade essencial das pessoas libertas do egoísmo e da ganância típicos de sociedades ditas «desenvolvidas» dos tempos actuais.

Quanto ao aspecto colectivo, o tempo presente abre novas perspectivas de comunicação entre as pessoas, por exemplo, nas redes online e em múltiplas tentativas de convivência ou «diálogo» intercultural.

O maior ou menor isolamento físico do indivíduo ou do grupo social a que pertence já não constitui obstáculo à partilha de ideias ou experiências ou à construção de novos caminhos colectivos para a inovação social.

Resulta de tudo isto, que é efectivamente possível «procurar Deus» hoje de maneiras diferentes dos santos da Idade Média. Se o Homem mudou, a sua imagem ou «construção» de Deus deverá ter também mudado.

Que significado atribuir a tal mudança, neste dealbar do incerto Séc. XXI em que nos encontramos?

Um significado possível, e até necessário na perspectiva do «desenvolvimento sustentável» de que hoje muito se fala, poderia ser rotulado de «Caridade na Verdade», como foi designada uma recente encíclica papal.

No sentido seguinte, diferente, possivelmente, da mesma expressão no contexto da referida encíclica.

Há um preceito evangélico que traduz o essencial da fé cristã:

Amarás a Deus acima de todas as coisas e ao próximo como a ti mesmo

Leio este preceito, no entendimento de que o ser humano persegue ao mesmo tempo uma «curiosidade» inesgotável face aos mistérios que o rodeiam e uma necessidade de convivência íntima e profunda com o «próximo».

Neste aspecto, a curiosidade «desinteressada» do cientista na sua investigação, ainda não contaminado pela ambição mercantil, é afinal próxima da pesquisa do monge que reza no seu contacto pessoal com Deus.

Como do generoso militante em alguma ONG que procura levar algo de precioso a certa comunidade marginalizada, algures no planeta.

A primeira motivação é, em última análise, o «amor de Deus», ou da Verdade que se esconde nas aparências que os nossos olhos míopes observam.

A segunda motivação é ainda o «amor de Deus», mas num sentido de solidariedade profunda com os outros homens, em busca da Caridade, isto é, afinal, da Justiça nas relações sociais.

 

OBJECTIVIDADE E IDEOLOGIA

Como é sabido, uma questão fundamental que se coloca no domínio do «conhecimento» é o da objectividade desse conhecimento. Dito de outro modo, trata-se de uma inquirição sobre a natureza da possível verdade que está ao nosso alcance.

Está em causa, afinal, saber até que ponto se pode confiar na imagem ou representação que o nosso espírito produz da realidade que nos cerca. Esta é inseparável do olhar que a observa, com instrumentos mais ou menos sofisticados de análise.

Colocando esta questão, é inevitável a referência a autores como Marx e Schumpeter que construíram conceitos relevantes, e muitas vezes citados, de ideologia.

Em Marx, a ideologia surge como expressão dos interesses da classe social. A «Economia burguesa», não seria mais do que a expressão disfarçada dos interesses da burguesia, enquanto a interpretação materialista da História, defendida por Marx, serviria os interesses do proletariado.

Em Schumpeter, a ideologia seria afinal a particular «visão do mundo», o coeficiente pessoal que consciente ou inconscientemente cada um transporta na sua particular maneira de observar a realidade. Também se poderia dizer que, neste sentido, a ideologia é para cada um de nós um «mapa» da realidade ou uma bússola que nos orienta no comportamento.

Em linguagem mais recente, no âmbito da teoria do conhecimento, a ideologia faria parte do conhecimento implícito ou subjectivo, enquanto a dimensão objectiva do conhecimento, essencial na investigação científica, exige a possibilidade de confronto com a experiência ou uma «base empírica», pelo menos a fundamentação numa teoria susceptível de confronto argumentativo com outras teorias.

Aqui coloca-se a questão do domínio do chamado «Mainstream» ou corrente principal do pensamento científico em certa área de conhecimento, em determinada época, corrente que, por seu turno, pode estar associada a determinada comunidade de interesses.

Por exemplo, a ideologia dita «neo-clássica» no domínio da Economia ou da Gestão está ao serviço dos interesses do poder económico privado.

Dado isto, que relevância atribuir à questão da objectividade em matéria tão profundamente «subjectiva» como a análise da condição humana?

Conhece-se a afirmação de Descartes cogito ergo sum («penso, logo existo») que serviu de pretexto ao reputado investigador português António Damásio para o título da sua obra O Erro de Descartes, traduzida em diversas línguas. Este autor analisa, numa perspectiva científica «objectiva», o suporte neurológico do ser humano, mostrando como é simplista e grosseira a tradicional separação entre o «corpo» e a «alma». É evidente que a investigação ou pesquisa do sujeito do conhecimento sobre a sua «condição humana» é necessariamente subjectiva, e além do mais, condicionada pela própria configuração do seu cérebro.

Mas, afinal, que sentido poderá fazer nesta matéria a distinção entre falso e verdadeiro?

Creio que realmente não tem sentido, pois o que está em causa é a coerência ou consistência dum projecto pessoal que, cada um de nós, mais ou menos conscientemente, formula, constrói e pratica no seu quotidiano.

Sendo assim, a questão a debater não remete para a contaminação do conhecimento pela ideologia, mas antes para a apreciação e comparação de possíveis «ideologias» envolventes desse conhecimento.

Temática que, por sua vez, nos conduz à questão – aparentemente banal, tal a frequência e simplicidade com que é evocada – do «desenvolvimento humano».

À primeira vista, tratar-se-ia de comparar alternativas «ideológicas» na sua contribuição para o possível desenvolvimento da pessoa humana.

Mas, na realidade, como irei mostrar, defrontamos outro vasto campo de problemas sem fácil solução.

 

O CONCEITO DE DESENVOLVIMENTO HUMANO

Há um conceito simples de «desenvolvimento humano» que tem sido utilizado para o cálculo, por organismos da ONU, do IDH, ou índice de desenvolvimento humano. Esse índice, definido pela primeira vez em 1990, com a colaboração do prémio Nobel da Economia, Amartya Sen, tem sido depois reformulado por várias vezes, no âmbito da preparação dos World Human Development Reports que o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) anualmente publica. A última revisão, bastante profunda, consta do Relatório de 2010.

Mas trata-se apenas, como seria de esperar, de encontrar fáceis algoritmos que permitam comparações expeditas entre países, em termos de indicadores como duração média da vida humana, nível médio de instrução da população, nível médio de rendimento por habitante, entre outros. Sem negar a justificação e utilidade de um tal conceito, é evidente a superficialidade dessa noção de «desenvolvimento humano». Que resulta, além do mais, da necessidade de evitar ou contornar grandes controvérsias e discussões sobre valores, sentidos e projectos pessoais de desenvolvimento.

Matéria ainda mais delicada quando se pretendem comparações entre países e sociedades tão diferenciados em termos culturais, além dos contrastes económicos e sociais mais evidentes.

Um exemplo simples tornará mais óbvia a grande complexidade desta temática. Remete para a questão da «qualidade de vida».

Qual o sentido do prolongamento da duração média da vida humana, sem avaliar da qualidade dos anos finais (ao menos, esses!), da existência? Qual o sentido de prolongá-la alguns anos, para apenas prolongar anos de sofrimento, dependência, precariedade em múltiplas direcções?

O debate actual sobre a possível justificação do suicídio assistido tem a ver com essa interrogação. No fim de contas, não é possível, em rigor, encarar a questão da mais vida sem questionar também o possível sentido da melhor vida.

E acrescento que «melhor vida», no meu sentido, não equivale a vida «mais feliz». Em poucas palavras, digamos que equivale antes a «vida mais realizada» ou «mais conseguida».

Se assim é, uma discussão aprofundada do conceito de «desenvolvimento humano» conduz necessariamente a outra questão: a do projecto pessoal de desenvolvimento, dos fins e meios correspondentes à sua formulação e prática.

Por uma exigência de clareza, correndo embora o risco de excessivo simplismo, em matéria tão controversa, julgo conveniente distinguir entre dois «modelos» distintos de desenvolvimento pessoal.

O modelo porventura mais praticado, ou seguido consciente ou inconscientemente, nas sociedades «desenvolvidas» actuais, é o modelo do «homem marketing», isto é, do indivíduo sobretudo interessado em criar e difundir uma certa imagem de si mesmo. Neste caso «ser» confunde-se afinal com «parecer».

Essa imagem procurada funciona como a escada da ambição pessoal, do lugar que se pretende ocupar na sociedade.

O modelo alternativo, mais exigente em termos éticos e também existenciais, é o modelo do «homem aprendente», isto é, do homem que sobretudo procura conhecer mais e melhor do mundo que o cerca e, em particular, de si mesmo.

Mas também conhecer para, de algum modo, agir sobre o objecto do seu conhecimento, seja ele próprio ou o meio circundante.

O primeiro «modelo» é típico dos profissionais da chamada classe política, pois esta actividade «política», no quadro formalmente democrático, é essencialmente uma luta pelo poder e pela caça ao voto, este baseado precisamente naquilo que os políticos «parecem» ou nos valores e, sobretudo, nos interesses, que aparentam defender ou representar.

Este facto acentua-se com a generalização da «democracia mediática», em que a luta pelo poder depende das mensagens ou imagens transmitidas pelos diferentes meios de comunicação social, particularmente pela televisão.

Um excelente exemplo bem representativo do modelo na presente conjuntura política portuguesa é o de Santana Lopes. Figura constantemente promovida pela comunicação social, sem serem claros os motivos desse tratamento privilegiado, certamente não decorrentes do real desempenho dessa figura no cenário da democracia no nosso País.

Mas na realidade da sociedade mercantil actual, o modelo do «homem marketing» vai muito além desse grupo. Na acepção mais comum, a actividade do marketing respeita, como é sabido, à promoção de determinado serviço ou produto para expansão das suas vendas.

Mas o marketing não é, nem pretende ser, uma simples e objectiva informação sobre as possíveis utilizações do produto ou serviço em causa, e os benefícios daí resultantes para o respectivo consumidor ou utente. Trata-se, geralmente, de persuadir este das vantagens do produto ou serviço em questão relativamente aos produtos ou serviços oferecidos pela concorrência em alternativa.

Nos manuais elementares de Economia, a teoria da chamada «concorrência monopolística» assenta precisamente nessa ideia: a da concorrência entre produtos diferenciados mas substituíveis entre si. Substituição que, em regra, é sugerida por alguma comparação entre qualidade e preço, ou pela afirmação sustentada de que é justificada a diferenciação do preço, tendo em conta a suposta diferenciação na qualidade. Esta diferenciação conduz, portanto, à exclusão da concorrência dita «perfeita», entre produtos iguais. Mas na concorrência entre seres humanos a «imperfeição» é, em vários sentidos, insuperável…

Que têm estas estratégias mais correntes de marketing de comum com o nosso conceito de «homem marketing»?

Trata-se, afinal, de persuadir os outros (e o próprio, também) de que se é titular de alguma diferença específica, de algum «valor próprio» que definiria a identidade do sujeito. Esta, assim, não resulta da procura de valorização de si mesmo, em conformidade com determinado projecto pessoal como objectivo próprio dessa identidade. A «identidade» em questão é, afinal, a «identidade» do actor que representa certo papel no palco da sua existência. Mas é claro que a configuração do «papel» desempenhado também traz consigo certo desenho do argumento em que o actor representa o seu papel.

Ou seja, é indissociável da figura do «homem marketing» não só certa imagem a construir de si mesmo, mas também a representação global da vida humana como uma «montra» onde desfilam outros seres, todos «desempenhando» certos papéis na grande comédia humana, em constante desenvolvimento.

Na obra porventura mais consagrada do escritor britânico Somerset Maughan, The Human Bondage (traduzida para português com o título Servidão Humana), em grande parte autobiográfica, Philip Carey procura um sentido para a sua vida. Um reputado pintor que encontra em Paris, diz-lhe que a vida é como um «tapete persa», com múltiplos desenhos sem aparente nexo entre si. Philip fica impressionado com a imagem e identifica-se com ela.

Mas, na realidade, Philip é humilhado e obsessivamente dominado por Mildred, uma prostituta sem qualidade humana, nem mesmo física. O livro termina com um happy end pouco convincente, em que Philip se liberta finalmente da prostituta e casa com Sally, uma mulher normal, que o ama e é por ele amada.

Só depois da morte de Maugham se percebeu o essencial do drama pessoal que o autor escondia na personagem Mildred: a sua homossexualidade.

Este homem, portanto, não poderia ser classificado no modelo «homem marketing», mas antes no modelo «homem aprendente», por muito penosa que fosse a imagem de si mesmo que a experiência da vida lhe revelou. Mas esta, por outro lado, permitiu todo um fluxo criativo no domínio literário.

Na verdade, a caracterização do modelo do «homem aprendente» é bem difícil e complexa.

Em certo sentido, é o homem que tem como principal motivação a «curiosidade», isto é, a insaciável necessidade de «descobrir-se» a si mesmo, aos outros e, afinal, ao mundo, em que por alguma razão obscura, um dia desembarcou. O homem «aprendente» é, pois, um viajante incansável por essa «realidade» que o cerca e que é, em última análise, insondável em si mesma, apesar de «realmente» existente. Viajante que não fica exactamente deslumbrado com as paisagens que contempla, mas somente amadurecido e esclarecido.

Talvez seja esclarecedor e sugestivo, imaginá-lo como ousado explorador do espaço em certo dia lançado por poderosa nave na rota de algum distante corpo celeste.

É importante assinalar que esta pesquisa, do ponto de vista do «aprendente» é uma aprendizagem que se pretende «honesta», isto é, tão objectiva quanto possível. Algo, portanto, distinto daquilo que tão sugestivamente, os ingleses designaram de wishful thinking, isto é, da confusão entre a realidade e os nossos desejos.

Nesta linha de análise, qual o lugar a atribuir ao «amor» na relação entre seres humanos dos dois sexos?

Claro que a questão inclui a relação sexual, mas vai muito além disso. A «aprendizagem» que tenho referido inclui, não apenas o conhecimento de si mesmo, mas também o conhecimento dos seres amados. Sejam o parceiro ou parceira sexual ou os familiares, por exemplo, os filhos.

Mas, sem dúvida que o amor profundo entre um homem e uma mulher ocupa um lugar que deve ser destacado no universo das relações humanas. Sem esquecer que essa relação não tem necessariamente um componente sexual, embora seja normal a sua importância determinante da relação.

Porém, o nosso «homem aprendente» poderá ou não descobrir essa relação no percurso da sua existência.

Digamos que se trata de uma relação que não é necessária para o sucesso da aprendizagem pessoal, mas que pode ser, de algum modo, suficiente, isto é, contribuir decisivamente para esse sucesso. A relação profunda entre um homem e uma mulher pode, afinal, funcionar como um jogo complexo de espelhos.

Cada um conhecendo-se melhor a si mesmo, exactamente na medida em que vai mergulhando no conhecimento mais profundo do outro.

 

O DESENVOLVIMENTO PESSOAL COMO AUTOGESTÃO DO SER HUMANO

A «democracia» em que vivemos é, como se sabe, largamente enganadora. A liberdade individual só é atingida se for duramente conquistada, contra uma série de ameaças, algumas que surgem de «dentro» do próprio indivíduo.

Pois é numa sociedade mediática que vivemos, mesmo neste Portugal periférico e tradicionalmente possuído por uma «ideologia portuguesa» que é uma miopia envergonhada, pois olha para fora com um peculiar complexo de inferioridade.

Em livro recente, defendi a necessidade de uma estratégia nacional de «identidade própria e valorização da diferença» que, em última análise, também pode fazer sentido para o desenvolvimento pessoal do nosso «homem aprendente».

Pois trata-se, em última análise, de construir na liberdade pessoal um desenho específico do ser humano.

Isto, claro, em conformidade com certa visão do mundo e correspondente sistema de valores.

Trata-se da «utopia do Séc. XXI»?

Talvez seja, tão distante se encontra o nosso «homem aprendente» das caricaturas humanas que nos rodeiam por todo o lado, sobretudo nos chamados países desenvolvidos.

Mas quem conhece um pouco da realidade humana do mundo «menos desenvolvido», mesmo em certas regiões de Portugal, encontra aí seres de qualidade preciosa, guardados como jóias da Natureza, ainda não contaminadas pela ganância e mediocridade predominantes noutros sítios.

Vale a pena ir por aí fora na sua descoberta, quando procuramos descobrir o que de melhor existe em nós próprios