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Revista de Enfermagem Referência

versão impressa ISSN 0874-0283

Rev. Enf. Ref. vol.serIV no.2 Coimbra jun. 2014

https://doi.org/10.12707/RIII1394 

ARTIGO DE INVESTIGAÇÃO

 

Tornar-se pai e mãe: um papel socialmente construído

Becoming a father and a mother: a socially constructed role

Convertirse en padre y madre: un papel socialmente construido

 

Cristina Araújo Martins*; Wilson Jorge Correia Pinto de Abreu**; Maria do Céu Aguiar Barbieri de Figueiredo***

* Doutoramento em Enfermagem. Assistente do 2º Triénio, Escola Superior de Enfermagem da Universidade do Minho, 4704-553, Braga, Portugal [cmartins@ese.uminho.pt]. Morada para correspondência: Edifício dos Congregados, 4704-553, Braga, Portugal.

** Doutoramento em Ciências da Educação. Professor Coordenador Principal, Escola Superior de Enfermagem do Porto, 4200-072, Porto, Portugal [wjabreu@esenf.pt].

*** Doutoramento em Ciência de Enfermagem. Professora Coordenadora, Escola Superior de Enfermagem do Porto, 4200-072, Porto, Portugal [ceubarbieri@esenf.pt].

 

Resumo

Enquadramento: Criar uma criança é um desafio de grande responsabilidade pela complexidade de competências e saberes necessários, e exige profundas alterações nos papéis sociais do casal, acompanhadas de necessidades de redefinição/reorganização dos projetos de vida, com padrões de prestação de cuidados que podem influenciar a futura interação pais-criança.

Objetivo: Compreender como se desenvolve a transição para o exercício da parentalidade durante os primeiros seis meses de vida da criança.

Metodologia: Grounded Theory com a participação de cinco casais. Recolha de dados a partir de entrevistas semiestruturadas.

Resultados: Descrevem a categoria encarnando a personagem pai ou mãe, constituída pelas subcategorias: assumindo cuidados no masculino ou feminino, descrevendo-se como pai, descrevendo-se como mãe, vendo a esposa como mãe e vendo o marido como pai.

Conclusão: Os pais são levados a uma polarização de papéis de género que define e constrói o significado de ser um bom pai/boa mãe, marido/esposa e homem/mulher. A compreensão destas experiências parentais é fundamental para os enfermeiros poderem apoiar os pais nesta transição.

Palavras-chave: pais; comportamento paterno; comportamento materno; enfermagem.

 

Abstract

Background: Raising a child is a challenge which demands great responsibility due to the complexity of necessary skills and knowledge, and implies not only deep changes in the couple’s social roles, but also a redefinition/reorganisation of life projects, with caregiving patterns that may influence the future parents-child interaction.

Objective: To understand how the transition to parenthood is experienced during the child’s first six months.

Methodology: Grounded Theory with the participation of five couples. Data collection based on semi-structured interviews.

Results: The results describe the category embodying the father or mother figure, which is composed of the following subcategories: taking on male or female roles as caregivers, describing oneself as a father, describing oneself as a mother, perceiving one’s wife as a mother and perceiving one’s husband as a father.

Conclusion: Parents are driven towards a polarisation of gender roles which defines and builds the meaning of being a good father/good mother, husband/wife and man/woman. Understanding these parental experiences is essential for nurses to be able to support parents during this transition.

Keywords: parents; paternal behavior; maternal behavior; nursing.

 

Resumen

Marco contextual: Criar a un niño es un desafío de gran responsabilidad, por la complejidad de habilidades y conocimientos necesarios, y exige grandes alteraciones en los papeles sociales de la pareja, que conllevan la necesidad de redefinir/reorganizar los proyectos de vida de acuerdo con patrones de prestación de cuidados que pueden influir en la futura interacción padres-hijo.

Objetivo: Comprender cómo se desenvuelve la transición para el ejercicio de la parentalidad durante los primeros seis meses de vida del niño.

Metodología: Grounded Theory con la participación de cinco parejas. Recogida de datos a partir de entrevistas semiestructuradas.

Resultados: Describen la categoría encarnando el personaje padre o madre, constituida por las subcategorías: asumiendo cuidados en masculino o femenino, describiéndose como padre, describiéndose como madre, viendo a la esposa como madre y viendo al marido como padre.

Conclusión: Los padres son llevados a una polarización de papeles y género que define y construye el significado de ser buen padre/buena madre, marido/esposa y hombre/mujer. La comprensión de estas experiencias parentales es fundamental para que los enfermeros puedan apoyar a los padres en esta transición.

Palabras clave: padres; conducta paterna; conducta materna; enfermería.

 

Introdução

O nascimento de um filho é, habitualmente, considerado um dos acontecimentos mais importantes e marcantes na vida dos progenitores e da família, que, particularmente no caso de ser o primeiro, assinala o início de uma nova fase de transição do ciclo vital, movendo-se da função conjugal para a parental (Relvas, 2004). Apela a um conjunto de respostas (comportamentais, cognitivas e emocionais) que habitualmente não integram o repertório cognitivo dos pais, exigindo, por isso, a implementação de estratégias adaptativas, de maior ou menor grau de dificuldade, e originando novos padrões de vida. Mesmo sendo frequentemente esperado e desejado, o nascimento de um filho aciona um percurso irreversível, que modifica decisivamente a identidade, os papéis e funções dos pais e de toda a família (Relvas, 2004), num processo de mudança que exige um tempo de reajustamento, durante o qual o filho toma o seu espaço e se redefinem as relações entre os restantes membros (Giampino, 2007).

Apesar da transição para a parentalidade ser uma experiência quase universal para os indivíduos e famílias, verifica-se a ausência de pesquisa sistemática que se foque especialmente na compreensão das experiências parentais dos progenitores durante o primeiro ano de vida da criança. A investigação tem enfatizado preferencialmente os comportamentos parentais e os processos que regulam esses comportamentos (Holden & Miller, 1999), mas as componentes da parentalidade são abordadas de forma parcelar, o que não permite a compreensão da natureza complexa deste fenómeno. Uma análise atenta dos estudos realizados revela uma amplitude de temas em função das características da criança (idade, sexo e temperamento), das características dos pais (género e qualidade da relação conjugal) e de fatores extra familiares (trabalho remunerado, suporte e contexto) (Cruz, 2005). Além disso, a maioria da pesquisa em Enfermagem tem estado relacionada com a parentalidade de crianças doentes, com limitações físicas ou de desenvolvimento.

Pretendemos, com este estudo, investigar o fenómeno da parentalidade, utilizando a metodologia da Grounded Theory, com a finalidade de desenvolver uma teoria de médio alcance em Enfermagem sobre o processo de transição para o exercício da parentalidade, que contribua para melhorar a prática dos cuidados em Enfermagem prestados à família nesta etapa do ciclo vital. Definimos como objetivos específicos do estudo: compreender a vivência dos pais na transição para o exercício do papel parental durante os primeiros 6 meses de vida da criança, explorando influências sociais e culturais no processo.

 

Enquadramento

O conceito de parentalidade tem vindo a modificar-se ao longo das épocas, traduzindo transformações socioeconómicas e culturais das sociedades. Sob o ponto de vista histórico, a observação do exercício da parentalidade patenteia que as características dos papéis e interações familiares sofreram modificações na sociedade ocidental, desde o modelo patriarcal, onde toda a organização familiar se centra na figura masculina (Narvaz & Koller, 2006), até à multifacetada sociedade pós-moderna, com novos arquétipos de família. A paternidade deixou de abarcar apenas o papel circunscrito à figura de provedor para também envolver comportamentos e atitudes de maior envolvimento e contacto afetivo com os filhos (Sutter & Bucher-Maluschke, 2008; Wall & Arnold, 2007), associados a diferentes expectativas, crenças e atitudes de cada género no contexto familiar (Brasileiro, Jablonski, & Féres-Carneiro, 2002).

Se, por um lado, há indícios de que a linha que separa a paternidade da maternidade se começa a diluir com expectativas de uma maior participação masculina nos cuidados dos filhos (Wall & Amâncio, 2007; Miller, 2011), por outro, vários estudos longitudinais realizados evidenciaram um aumento da diferenciação por género durante e após a transição para a parentalidade (Cowan & Cowan, 2000; Glabe, Bean, & Vira, 2005; Katz-Wise, Priess, & Hyde, 2010).

A revisão sistemática da literatura realizada demonstra que os casais tendem a tornar-se mais tradicionais na sua divisão de trabalho depois do nascimento de um filho; o conflito relacionado tende a crescer e os cônjuges relatam níveis mais baixos de satisfação conjugal; acresce stresse substancial, custos no bem-estar pessoal e mudanças nos estilos de vida de ambos os progenitores; e os novos pais incorporam uma nova identidade e redistribuem o seu investimento noutros papéis. Vários fatores pré-natais predizem este ajustamento familiar e satisfação conjugal (relação conjugal, experiências da família de origem, expectativas quanto ao trabalho doméstico e de cuidado infantil, trabalho remunerado e envolvimento de amigos e família), tendo sido identificado como fator pivô do declínio matrimonial o não cumprimento de expectativas acerca da divisão de tarefas domésticas e do cuidado infantil (Martins, 2009).

Isto significa que, embora os novos pais descrevam uma ideologia de maior igualdade nos papéis familiares e na divisão de tarefas do que a dos seus antecessores, permanece uma distância considerável entre o discurso e a prática, com acordos/negociações de papéis quotidianos frequentemente menos equilibrados do que esperavam (Miller, 2011), circunstâncias que tendem a gerar frustração nas mulheres e a despoletar conflitos no casamento (Glabe et al., 2005; Martins, 2009).

A noção de expectativas violadas, como um fator do declínio na satisfação conjugal, foi avaliada em vários estudos, assim como a ideia de que o casamento é mais afetado quando as atitudes sobre papéis sexuais do casal são incongruentes com os padrões de género mais estereotipados que acompanham a parentalidade (Brasileiro et al., 2002; Glabe et al., 2005).

A parentalidade é frequentemente associada a um maior número de mudanças na vida das mães do que na dos pais, dado o pressuposto, culturalmente generalizado, de que estas são as principais cuidadoras (Pinquart & Teubert, 2010). Pais e mães, para além de terem atribuições específicas na família, também interagem de modo distinto com os seus filhos (Dessen & Oliveira, 2013; Wall & Arnold, 2007). Como consequência, mesmo que sem intencionalidade, as mães parecem internalizar atitudes de uma maternidade intensiva (Johnston & Swanson, 2006) e limitar o envolvimento dos pais nas tarefas parentais, como forma de garantir a elevada performance que delas se espera (Johnston & Swanson, 2006).

A magnitude e a natureza do ajuste de co-parentalidade que as famílias operam nesta transição sugere-nos a importância de se avaliar o investimento individual nos papéis parentais e de se intervir para ajudar os dois progenitores a evitar a dinâmica problemática de papéis polarizados. Reconhecendo o peso que as relações sociais de género têm na determinação do significado individual e social atribuído ao ser mãe e ser pai, este estudo permitirá dar voz aos pontos de vista da própria mulher e do homem, num processo no qual eles são protagonistas.

 

Metodologia

A complexidade da experiência de ter um filho conduziu-nos ao paradigma qualitativo de investigação e à metodologia Grounded Theory, por ser uma abordagem adequada em situações de natureza psicossocial, que carecem de teorização e desenvolvimento de conhecimento acerca do seu processo e estrutura, sem descurarmos a sua potencialidade para desocultar emaranhados detalhes dos fenómenos, nomeadamente sentimentos, processos de pensamento e emoções, que são difíceis de extrair ou compreender através dos métodos de investigação mais convencionais (Corbin & Strauss, 2008). Não pretendemos a descrição de factos, mas um conjunto de conceitos fundamentados, organizados em redor de uma categoria, e integrado em proposições, construindo uma teoria enraizada nos dados, num processo evolutivo constante com recolha, codificação e análise dos dados, realizadas de modo simultâneo e recursivo.

A recolha de dados decorreu no domicílio dos pais, entre junho de 2009 e março de 2010, em momentos distintos deste processo de transição (1ª semana e 1º, 4º e 6º mês de vida da criança), acompanhando, parcialmente, as idades-chave de vigilância infantil recomendadas pela Direção-Geral da Saúde. Os dados foram colhidos através de entrevistas semiestruturadas, orientadas por um guião de questões abertas, que permitiu fazer as adaptações necessárias na exploração dos conceitos emergentes. Em cada momento de colheita de dados foi realizada a entrevista em separado ao pai e à mãe sobre a experiência de parentalidade, seguida de uma breve entrevista em conjunto. Realizámos, no total, 60 entrevistas, a cinco casais, com idades compreendidas entre os 26 e 33 anos e com filho nascido de termo e saudável (quatro do sexo masculino e um do sexo feminino).

O tratamento e a análise dos dados, realizados com recurso ao programa NVivo 8.0, cumpriram as etapas de codificação do corpus (codificação aberta, axial e seletiva) até à formulação de proposições teóricas, resultantes da análise das relações entre categorias. Durante a codificação aberta, os dados foram decompostos em partes discretas, com o intuito de os conceptualizar e categorizar. A codificação axial implicou questionar o fenómeno em estudo, o porquê do fenómeno ter ocorrido (causas), o contexto em que o fenómeno ocorreu, o que foi feito pelos participantes quando esse fenómeno ocorreu (estratégias), o que facilitou ou dificultou as ações sobre esse fenómeno e quais as consequências dessa interação (Corbin & Strauss, 2008), permitindo selecionar as categorias mais significativas, tendo como foco o paradigma de codificação, que possibilitou identificar as características (propriedades e dimensões) do fenómeno em estudo. A codificação seletiva foi a base para a obtenção da categoria central ser pai, ser mãe: um processo em construção na interação, onde todas as categorias se relacionaram e emergiu a teoria referente aos dados obtidos.

Antes de iniciarmos a investigação, o projeto foi submetido à apreciação e obteve aprovação do diretor executivo de um Agrupamento de Centros de Saúde da região norte de Portugal. Foi-nos autorizado o acesso aos participantes através da participação no curso de preparação para a parentalidade que estes se encontravam a frequentar. No convite que formulámos aos pais para participarem no estudo, ressalvámos o aspeto da voluntariedade e da interrupção da sua participação sem qualquer prejuízo resultante. A sua aceitação foi firmada com a obtenção do consentimento informado, livre e esclarecido e foi também assegurado a confidencialidade dos dados e o anonimato. Utilizámos nomes fictícios na investigação, de modo a não ser possível o reconhecimento dos participantes.

 

Resultados

Os resultados aqui apresentados dizem apenas respeito à categoria encarnando a personagem pai ou mãe, referente às condições, presentes na transição para a parentalidade, que permeiam as ações (ou não ações) que os pais realizam frente ao fenómeno e o modo como as conduzem, denominadas de condições intervenientes no Paradigm Model (Corbin & Strauss, 2008).

A escolha por apresentar esta categoria deve-se ao facto dela explicitar as vivências parentais de cada um dos progenitores, enquanto representam ou personificam um papel maternal ou paternal socialmente construído. Dando vida ou carácter à figura de pai ou mãe tradicional, dominante e convencional na sociedade, homens e mulheres assumem diferentes papéis parentais e constroem e reconstroem significados de si e dos parceiros como pais, conforme evidenciam as subcategorias assumindo cuidados no masculino ou feminino, descrevendo-se como pai, descrevendo-se como mãe, vendo a esposa como mãe e vendo o marido como pai, representadas na Figura 1.

 

  

 

  

Assumindo cuidados no masculino ou feminino traduz a ideia de que ser pai ou ser mãe reproduz maneiras de agir, fazer e pensar associadas ao ser homem ou ser mulher, como partes interligadas e quase que indistintas da experiência de cada progenitor. As mães assumem-se como principais cuidadoras dos filhos e sentem satisfação ao fazê-lo e ao receber ajuda dos maridos, e os homens desempenham um papel secundário, como que de apoio à mãe, a que associam funções de ajuda, assistência, zelo e provisão material.

Para a mulher, assumir-se como prestador principal de cuidados abarca a esfera do entregar-se ao processo de aprendizagem que entende ser a maternidade, para poder ser uma mãe competente, que ama, cuida e está sempre presente:

Não, não é não querer é… quero ser eu, quero… quero-me habituar, quero-me afeiçoar, quero… aprender… quero… não sei… é o meu menino! Gosto de estar sempre de volta dele!”(Sílvia).

As mães revelam ter consciência de que são as principais responsáveis e cuidadoras dos filhos, mas não parecem ficar incomodadas com isso. Este assumir dos cuidados pelas mães chama, ainda, atenção para a sua autodeterminação em preservar o bem-estar dos maridos que, por já terem regressado ao mundo laboral, apresentam fragilidade e precisam descansar, especialmente durante a noite:

Tento poupá-lo um bocado porque entendo, quer dizer… ele já chora por si só, depois estar ali meia hora para arrotar, depois não-sei-quê, porque ele demora muito tempo… e depois não adormece logo, quer dizer… se ele for a estar ali aquele tempo todo, acaba por se já dorme pouco, ainda dorme menos e, se eu o poupar um bocadinho nisso, quer dizer, também pode ir mais descansado um bocado para o trabalho” (Clara).

O homem, ao assumir-se como prestador secundário de cuidados, acaba por legitimar a ideologia de que cuidar é uma tarefa feminina, que cumpre quando chega a ser necessário ou quando a mãe não está presente, vendo-se no dever de ajudar:

Se tiver que ser, assim em SOS, mudo, está a perceber? Mas se… quando… ela estando ao lado, claro, peço-lhe a ela para vir lá, que é para apertar melhor, para fazer as coisas…” (Vasco).

Em condições igualitárias, em que ambos os pais estão presentes e disponíveis, os homens reconhecem que a mãe é quem faz:

“Entrego-o à mãe, não é? A mãe é que muda a fralda… muda a fralda, não é? Dá-lhe de mamar”(Vasco);

“Ela toma mais conta dele do que eu”(Anselmo).

O seu papel secundário na prestação dos cuidados é, ainda, justificado pelo cumprimento de deveres profissionais e pela total disponibilidade da mãe enquanto goza a licença de parentalidade:

“Ela agora está em casa, os quatro meses, não é? Claro que tem que estar sempre com o menino, não é?… Eu pronto, eu trabalho, não é?!... Tem que ser, ela está em casa tem que olhar… tem que olhar por ele, não é?” (Vasco).

Se a mulher aprecia dedicar-se ao bebé e prestar-lhe os cuidados, como anteriormente já confirmámos, o homem/pai não vê razões para aumentar o seu grau de participação ou concorrer pelo lugar de cuidador principal. Noutras circunstâncias, o mesmo pai renega a condição de cuidador porque percebe desconfiança por parte da mulher e pretende evitar conflitos iminentes:

“Ai, eu deixo a mãe fazer porque… faz como ela quiser porque… eu ajudo… eu ajudo… no facto de… para não… para não criar chatices, entre aspas, não… não… o chegar a acordo, não é difícil, não chegamos a… não chega a haver conflito… nem verbal, nem… nem de outro tipo, é fácil. Nesse caso, é! E ainda outro dia, e do banho a mesma coisa, ela o outro dia, achava que eu não estava a dar banho e eu “olha, então dá tu!”... Por isso... se ela acha que sabe fazer melhor… faz! É a forma que nos entendemos” (Manuel).

Tais afirmações revelam tensões e dilemas no exercício da parentalidade, que depois são mitigados enquanto se procura, por outro lado, naturalizar o papel de principal cuidador assumido pela esposa/mãe e afirmar-se com iniciativa:

“Agora é natural, parece-me até a mim natural, que a mãe… faça todas essas tarefas com o miúdo mais vezes do que qualquer outra pessoa… perfeitamente natural… para mim… no caso dela precisar e sempre que ela precisar e pedir, estamos cá nós para… para… agora isso também não estou aqui a dizer que não… que não tenho iniciativa, não” (Manuel).

O papel de cuidador secundário permanece assumido pelos pais ao fim de 4/6 meses de paternidade. Reiteram o condicionalismo profissional que impede a sua participação mais regular, assim como a situação privilegiada da esposa, em licença parental, que a sujeita à obrigatoriedade de cuidar. Quando esta não está ou quando se faz necessário, asseguram os cuidados indispensáveis, mas na generalidade das situações continua a ser a mãe quem o faz, reproduzindo um comportamento social, normativo e esperado, isto é, natural de acontecer. Ao longo dos últimos meses, foram adotando um papel cada vez mais passivo na alimentação, higiene, muda da fralda e acompanhamento da vigilância de saúde do filho, num:

“… esquema, que acho que é quase a evolução natural das coisas, não é?!”(Ricardo).

A adoção deste papel passivo encontra-se fortemente enraizado na ineptidão masculina para amamentar:

“Não me adianta a mim nada pôr-me a pé... não vale a pena, eu não lhe posso dar de mamar” (Anselmo).

Ajudar no que fizer falta, ajudar no que pode, dar assistência, estar presente, tratar das burocracias necessárias e zelar para que tudo esteja bem são funções que os homens reconhecem como sendo suas ao assumir papéis de pai.

O estar presente é mais evidente em momentos difíceis, como o parto e o internamento do recém-nascido, denotando-se grande preocupação do pai em fornecer apoio psicológico à esposa/mãe. Com um filho de 4/6 meses de idade, os homens comungam do entendimento que detinham sobre as funções de pai no puerpério e tentam:

“… estar em casa o… o maior tempo possível, para poder ajudar e para… partilhar as alegrias e… e as tristezas do dia-a-dia” (Anselmo).

Bem como encarregar-se “de fazer sempre o que faz falta” (Ricardo), e ajudar no que podem, “faço o que posso, não é?!” (Vasco), sentindo-se realizados com o seu contributo. Em situações mais críticas, como a doença do filho, têm um papel mais ativo na assistência à esposa e ao bebé.

Brincar e estimular o bebé é uma função que os pais acrescentam reconhecer como sua neste estádio de transição, cumprindo-a com gosto.

O envolvimento do homem nas responsabilidades com o filho é percecionado como louvável e presente, fazendo a mãe sentir-se satisfeita com a colaboração do marido. Nos discursos das mulheres prevalece uma avaliação exagerada do nível de participação dos maridos no trabalho familiar e doméstico e de uma certa gratidão quando voluntariamente prestam alguns cuidados ao filho, que é de ambos, ou as substituem enquanto estão debilitadas no puerpério ou se ausentam de casa:

“Às vezes ele já vê que ele começa a chorar já nem é preciso dizer, quer dizer tive situações em que eu acabei por adormecer, estava tão cansada, adormeci… acabou por ser ele a dar-lhe, não chamou por mim… fez-lhe o biberão e… deu-lhe e eu estava a dormir, continuei a dormir” (Clara).

O argumento não me diz que não suporta que esta avaliação seja considerada positiva. Mesmo em situações em que a colaboração é limitada e diminuta, as mães/puérperas continuam a considerar-se satisfeitas com a ajuda recebida, valorizando os pequenos contributos e progressos alcançados. Como trabalha nem sempre pode ajudar é outro dos motivos evocados pelas mães para desculpabilizar o homem/pai dessa tarefa, não havendo lugar a queixas.

Nas falas das mulheres com 4/6 meses de vivência parental, permanece evocado este fundamento que desculpabiliza a menor prestação masculina no cuidar por questões profissionais, assim como a valorização da assistência dada pelo cônjuge, porque vai fazendo, não tem medo e ajuda e não diz que não. A constatação de uma colaboração que transcende as expectativas femininas é suficiente para se sentirem satisfeitas:

“Até esperava menos, nunca pensei que, prontos, que ele fosse assim tão… tão tolo pelo filho como são!... gosta muito de o adormecer e… eu nunca pensei que ele que fosse fazer isso, pensei que ele fizesse festas ao filho e assim, mas… tentar adormecê-lo e tudo quando ele está a chorar, nunca pensei que ele… que ele quisesse isso, não é?!” (Sofia).

Assumir cuidados no feminino ou masculino evidencia também como as mulheres acabam por afastar os homens/pais da prestação de cuidados, ao considerá-los menos competentes e menos preparados durante o puerpério. Sem confiar no marido para prestar cuidados apresenta como essas razões concorrem para perpetuar a separação entre cuidar no feminino e no masculino, garantindo a sua invisibilidade natural.

A sua maior perícia, quando comparada com o marido/pai pouco preparado para prestar cuidados meticulosos, é realçada no impulso que a leva a tomar a dianteira para não ter de censurar os cuidados, demonstrando receio que possam não estar a ser prestados de forma adequada e desacordo nos procedimentos:

“E eu tenho um bocado aquele impulso de… ele está a fazer e eu “não estás a fazer bem!”, pronto, às tantas eu é que não estou a fazer bem, mas pronto, tenho a tendência de… tentar ir… não vou dizer fazer melhor, mas tentar ajudar a fazer, tenho aquele receio de“será que…?”, não sei, não sei explicar” (Clara).

A prestação masculina chega a ser considerada de tal forma desadequada que a mãe evita estar presente quando o pai cuida, repetindo frases e palavras com uma intensidade expressiva de crítica e desaprovação:

“Prefiro não ver para o deixar fazer… e então trate, que eu assim não vendo… desde que não o partas! Portanto… eu prefiro não estar, ele cuida… está bem, ele morre, está tudo bem… eu não consigo lidar assim... é teu filho, tu fazes, desde que eu não veja, não me irrite, está tudo bem” (Clara).

Neste contexto de temor e apreensão materna, o pai acaba por sentir que a esposa não confia em si para prestar cuidados, testemunhando que não o deixa fazer nada, tem medo que ele mexa no umbigo, não concorda com o que ele faz, apesar de relativizar a sua importância:

“Não, é… são pequenos pormenores de… de… mães galinhas, considero eu, mas, prontos… são… não pode mexer, não pode coisar… não pode berrar mais um bocadinho…” (Manuel).

Com o passar do tempo, as mães começam a sentir-se mais confiantes no marido para prestar cuidados. A interação que o pai desenvolve com o bebé de 4/6 meses de idade e a capacidade do filho fazer-se ouvir quando incomodado concorrem para que Clara se sinta mais segura com os cuidados paternos prestados:

“A interação que eles têm os dois também me dá segurança que ele fica bem só com ele também, que na altura… tinha aquela coisa da mãe galinha e de ter medo que não soubesse fazer... agora como ele já interage e já tem a reação dele, se ele não gostar ele reclama, é diferente, já confio um bocadinho mais” (Clara).

Na perspetiva de outras mães, os homens são igualmente capazes de cuidar de um filho, dependendo da sua motivação pessoal e da existência de traços de personalidade compatíveis com a função, isto é, “se têm vocação, assim aquela coisa de… de mãe ou não e de paciência” (Sílvia).

Reconhecem que não representam a generalidade da população masculina, mas também recordam haver lugar a exemplos femininos desadequados:

“Tanto a mãe como o pai deve… deve ter o mesmo… só que há pais que se calhar que não… não… não gostam e não querem, não é?! Eu acho... não sei… mas a mãe tem sempre mais aquela coisa, mas também deve haver mães que também não gostam, não é?! Porque há aí algumas que... se tivessem esse instinto não faziam o que fazem a… aos filhos, porque às vezes dá aí no telejornal, não é?! De ter a coragem de… de abandonar” (Sofia).

Para além das capacidades, papéis e funções diferenciais que homens e mulheres parecem assumir ao encarnar a personagem pai ou mãe, a reprodução de construções sociais acerca de uma maneira de ser masculina e uma maneira de ser feminina está também presente quando avaliam o cônjuge como pai e quando se descrevem a si próprio nesse papel.

Na subcategoria vendo a esposa como mãe, o pai destaca-lhe atributos de responsabilidade, doação e amor incondicional pelo filho, ao assumir o papel maternal. Ser uma mãe responsável, preocupada, atenta, carinhosa, cuidadosa, atenciosa e prestável, faz com que seja percecionada como uma boa mãe, logo durante o puerpério.

Mãe é mãe! parece resumir este tipo de plenitude materna. Da mesma maneira, no excerto que a seguir apresentamos, podemos dar conta de um indício que nos remete a uma noção de tempo, a algo imutável, que não teve princípio e não há de ter fim. Independentemente das circunstâncias do quotidiano, isso significa ser mãe, referindo-se à mesma configuração de sentimentos, ações e gestos, numa dimensão atemporal:

“E… por vezes vejo a mãe um bocado mais stressada, mas continua a ser mãe, não é?!... Aquilo é a mãe!… Mais stressada, se calhar mais cansada à noite… mais… mais, mais fatigada, às vezes um bocadinho, mas… mas aí, mas continua a ser mãe” (Ricardo).

Ser boa mãe é, ainda, ser uma mãe desembaraçada, superar as dificuldades e a debilidade pessoal em função do filho que cuida, dar tudo e ser tudo pelo filho, o que outras mulheres, más mães, não conseguem fazer, nem ser:

“Preocupa-se com ele… dá-lhe… dá-lhe carinho, dá-lhe atenção… dá-lhe tudo... está a ser uma boa mãe… há, há muitas mães, que é assim, há mães boas e há, há mães que… sei lá, que não se preocupam com os filhos, mas ela para já, pelo menos…” (Vasco).

O atributo de boa mãe, de ser exemplar e perfeita, continua a ser conferido à esposa após 4/6 meses de comunhão parental. Nunca deixou de ser mãe, mesmo após ter regressado ao mundo laboral:

“Deixou de estar presente, não é?! Ahm, de alguma forma, mas… se me está a colocar a questão no sentido da responsabilidade ou do empenho ou da disponibilidade… não” (Ricardo).

Preserva-se preocupada e stressada:

“Com tudo, com o trabalho, com o menino, com tudo” (Vasco).

Bem como atenta e responsável; uma mãe empenhada e dedicada, sem deixar de ser, concomitantemente, uma mãe mais segura e relaxada:

“Continua a ser responsável, não é?! Só que… já deixa as coisas fluírem com mais naturalidade, sem ter aquele pormenor todo organizado” (Ricardo).

Na subcategoria vendo o marido como pai, a mãe destaca-lhe atributos que aprovam a postura que adota em relação ao recém-nascido, quanto às suas atitudes afetivas e de dedicação, e abonam a desenvoltura com que o fazem, abstendo-se de julgar o seu desempenho, conferindo-lhe o atributo de pai desenrascado, quando:

“Faz tudo o que eu faço e acho que faz tão bem como eu” (Daniela).

Bem como o atributo de pai com algum jeito, que é destacado pela mãe quando:

“Já se ajeita mais a pegar nele e tudo… está-se habituando e depois já… com o tempo…” (Sílvia).

Aos 4/6 meses, as mães continuam a enaltecer-lhe a preocupação, presença e dedicação ao filho, e o ser desembaraçado no cuidar. Como pai continua a ser o mesmo ou um pai mais participativo desde que exerceu o papel de cuidador durante o 5º mês de licença parental. É também um pai mais ligado ao filho, a partir do momento em que este começou a evidenciar sinais de interação:

“Pelo facto dele também interagir mais com ele acho que… ele gosta mais de estar… brincar e tudo, porque normalmente os homens não têm aquela coisa quando a criança está a dormir e não-sei-quê, não têm a paciência que ele tem agora que ele já interage com ele” (Clara).

Ao considerarem-se a si próprios como pais, na subcategoria descrevendo-se como pai, os homens evidenciam dificuldades em desconstruir o significado da paternidade durante o puerpério:

É um bocado… precoce estar a falar, estar a falar ainda já do que é ser pai… isto não deixou de ser uma experiência de meia dúzia de dias, não sei se… não dá para definir muito bem o que é ser pai” (Ricardo).

Quando os homens conseguem evidenciar o significado da paternidade durante o puerpério, não deixam de valorizar e reproduzir discursos de identidade social paterna. Descrevem-se como um pai babado, feliz, preocupado, presente e participativo, integrando sentimentos e representações que qualificam a sua participação na experiência parental.

Aos 4/6 meses de exercício parental, continuam a descrever-se como felizes, presentes e participativos. Veem-se como pais atenciosos e afáveis, que procuram dar:

“Todo… todo o carinho e todo o empenho que poderia dar” (Ricardo).

Isto é, dar o seu melhor, que define um bom pai, um pai de dever cumprido.

De modo similar, as puérperas também apresentam dificuldades em desconstruir o significado da maternidade:

“Não sei… não sei como responder” (Sofia).

Na subcategoria descrevendo-se como mãe, as puérperas fazem-no com frases que resvalam no dito popular de uma boa mãe ou uma mãe como as outras, e que possuem o sentido de plenitude ligado à personagem mãe.

As dificuldades em se caracterizarem e as descrições de boa mãe mantêm-se presentes aos 4/6 meses de exercício parental. Veem nas suas próprias mães o modelo de maternidade a ser reproduzido:

“Sei lá… Olhe aquilo que a minha mãe foi para mim, sou… acho que sou uma pessoa educada, que não sou rebelde, que não sou” (Sílvia).

 

Discussão

Encarnando a personagem pai ou mãe destacou a grande variedade de experiências e diferenças entre as práticas masculinas e femininas, reconhecendo o peso que as relações sociais de género têm na determinação do significado individual e social atribuído ao ser pai e ser mãe. A maneira como se concebem enquanto pais ou mães e como se organizaram na transição para a parentalidade traduziu uma forma de produção de género, onde os valores, crenças e expectativas individuais, construídos a partir do imaginário cultural e de prescrições sociais, influenciaram mutuamente as suas vivências.

Observou-se que, assumindo cuidados no masculino ou feminino, os casais ainda se organizam de acordo com referências tradicionais (Glabe et al., 2005; Martins, 2009), pelas quais a mãe assume o papel principal de cuidado e disponibilidade (Pinquart & Teubert, 2010) e o pai um papel periférico de provisão e relativa ausência em relação ao cuidado infantil. A noção de que o cuidado infantil é responsabilidade feminina é evocada por todos os participantes do estudo e as próprias mães são ativas na construção e reprodução desta ideologia, resultados consistentes com a literatura sobre a maternidade intensiva (Johnston & Swanson, 2006). O argumento do amor e dos laços afetivos legitima discursivamente as mulheres como principais cuidadoras e renega os homens pela sua incompetência ou natureza masculina diferente.

Ser a figura primária de cuidados, com competências relacionais particulares, faz parte do repertório de qualidades socialmente atribuídas à condição feminina. Num estudo desenvolvido com trinta mulheres mães, Monteiro (2005) confirmou a importância e centralidade desta ideologia, destacando que a mulher, ao assumir o papel de principal cuidadora, adere e materializa uma identidade feminina valorizada e reconhecida. Simultaneamente, o cuidar, ao ser entendido como competência e atributo femininos, favorece ao homem um papel comodamente omisso: liberta-os dessa responsabilidade, participando apenas por voluntarismo e simpatia.

É possível identificarmos semelhanças com o que apresentam os participantes da nossa investigação. Ajudar no que fizer falta, ajudar no que pode, dar assistência e estar presente são alguns dos papéis que os homens reconhecem como seus no exercício da parentalidade. Note-se que esta ideia de ajuda pressupõe que é às mulheres/mães que cabe a principal responsabilidade pelos cuidados. Por seu lado, as mães optam por enumerar uma série de razões desculpabilizadoras dos seus pares, entre as quais se destacam o facto de já estarem a exercer o seu papel profissional, a sua falta de tempo e competência cuidadora.

Desde o nascimento que as mulheres reivindicam para si a obrigação de suprir as necessidades do filho e zelar por ele. Vivem a maternidade como uma experiência totalizante e, muitas vezes, acabam por afastar os homens/pais da prestação de cuidados porque estes não têm o mesmo tipo de cuidados e a mesma sensibilidade e agilidade para cuidar, e porque lhes falta treino e informação (preparação).

Este afastamento ganha, por vezes, expressão num discurso depreciativo acerca do contributo paterno, multiplicando exemplos de situações que ilustram o défice de competências neste domínio. Entretanto os pais que não sentem estímulo e aprovação da esposa na prestação de cuidados, tendem a abrandar a sua participação e envolvimento. As mulheres acabam, assim, tendo a sua quota-parte de responsabilidade na participação ou não participação masculina, achados que outras investigações confirmam (Johnston & Swanson, 2006).

Percebemos, igualmente, nos discursos proferidos, a satisfação da mulher com a colaboração paterna e a renitência em admitir e mostrar algum tipo de descontentamento face à desigualdade na prestação de cuidados e na dedicação. Esta ausência de sentimento de injustiça encontra justificação na interiorização, por parte da mulher, de explicações ideológicas e na motivação para manter o papel tradicionalmente feminino (Johnston & Swanson, 2006). O modelo teórico de Major (1993) adianta três razões que dirigem esta perceção materna de violação de direitos de igualdade na distribuição do trabalho familiar: 1) a distribuição tradicional de tarefas corresponde ao que as mulheres esperam, querem e valorizam nas suas relações, devido à sua socialização nos papéis de género; 2) as mulheres aceitam as justificações que apresentam as práticas desiguais como legítimas, nomeadamente porque consideram que os cônjuges e filhos têm mais necessidades do que elas próprias e acreditam serem mais capazes de responder às necessidades dos membros da família; e 3) a partilha de tarefas corresponde a critérios de comparação utilizados pelas mulheres para avaliar o modo como os cônjuges se deviam comportar. Como têm a noção que a maioria dos homens não ajuda, as mulheres sentem-se gratas e privilegiadas quando os seus cônjuges de alguma forma o fazem.

De uma forma geral, as mães mostraram-se muito satisfeitas com a colaboração do marido, tendo o pai, por vezes, superado as expectativas maternas. São achados que corroboram o estudo de Dessen e Oliveira (2013) e que refutam a ideia de conflitos conjugais presente noutras investigações (Brasileiro et al., 2002; Glabe et al., 2005; Martins, 2009).

Estes dados parecem ser, ainda, concordantes com a perceção dos progenitores sobre o desempenho do cônjuge como pai ou mãe. Ser um pai presente, dedicado, preocupado e afetuoso confere aos homens uma apreciação feminina favorável (Dessen & Oliveira, 2013). Do ponto de vista masculino, os atributos são mais exigentes, envolvendo responsabilidade materna, doação e amor incondicional pelo filho. Encontrámos presentes critérios que desocultam o significado de ser uma boa mãe (Johnston & Swanson, 2006; Monteiro, 2005), nomeadamente mães que amam, cuidam, estão permanentemente vigilantes e à procura de conhecer e respeitar as necessidades do filho, sendo estas a ditar os ritmos e opções a seguir e não o seu próprio interesse. Desta forma, dão conta como o mito de boa mãe, eternamente abnegada, exemplar e perfeita, se mantém vivo no discurso contemporâneo.

Quando indagados relativamente à autoperceção parental, tanto homens como mulheres apresentaram algum embaraço, manifesto nas subcategorias descrevendo-se como pai e descrevendo-se como mãe. Viveram uma experiência transformadora da sua própria identidade, que os conduziu a reproduzirem ideologias sociais do papel de pai ou mãe, sem serem, contudo, demasiado reducionistas. Os homens, vendo-se como pais de dever cumprido, que procuram dar o seu melhor em temos de atenção e presença (ainda que alguns indiquem a impossibilidade de existir a perfeição), abrem espaço a uma perspetiva paterna mais presencialista, também identificada por outras investigações (Sutter & Bucher-Maluschke, 2008; Wall & Arnold, 2007).

 

Conclusão

Este estudo evidenciou que durante a transição para a parentalidade os casais ainda se organizam de acordo com referenciais tradicionais, nos quais a mãe assume o papel de principal cuidador e de total disponibilidade, e o pai assume o papel secundário de provisão e apoio, com relativa ausência em relação ao cuidado infantil. Revelou, igualmente, que a diferenciação de papéis de género apresentada pelos pais e mães, que a literatura chama de tradicionalista, não se trata simplesmente de um fenómeno comportamental, mas de um fenómeno que reflete e patenteia valores e ideologias relativos aos papéis masculinos e femininos, paternos e maternos.

A importância deste artigo reside em evidenciar a riqueza e a complexidade dos fatores psicossociais que operam sobre a transição para a parentalidade. Permite-nos equacionar a importância que a estrutura social tem neste processo, nomeadamente o sistema simbólico que, cultural e historicamente, determinam os significados e as representações da parentalidade, e da própria experiência parental.

Ao vislumbrarmos o cenário destas forças socioculturais, podemos ajudar homens e mulheres que se tornam pais e mães a compreender que os seus papéis podem reproduzir modelos vigentes ou abrir novas possibilidades, na tentativa de se libertarem destas influências. As mulheres precisam de aprender a dividir com o homem as responsabilidades no cuidado infantil, especialmente o trabalho invisível de preocupação e planeamento deste cuidado. Os homens precisam de oportunidades para estar com os filhos a sós ou serem cuidadores principais, sem a interferência da ajuda de terceiros, que limita a sua aprendizagem.

Neste âmbito, seria importante a realização de programas educacionais, no período pré e pós-natal, que visassem minimizar as experiências de tensão dos pais, dotar os progenitores das habilitações necessárias à parentalidade e criar oportunidades para discutirem e refletirem sobre as suas necessidades, dúvidas e dificuldades.

Esta investigação acrescenta uma descrição das experiências dos pais e das mães durante os primeiros seis meses de vida da criança, destacando a grande variedade de experiências e a diferença entre as experiências dos pais e das mães. Seria importante replicar esta mesma investigação em contextos similares e alargá-la a outros contextos geográficos, no sentido de aprofundar e adicionar outras perspetivas explicativas ao fenómeno. Pesquisas que se foquem nas perceções, crenças, valores e expectativas de pais e mães sobre os seus papéis e envolvimento na vida familiar precisam ser estimuladas para que melhor se possa compreender a dinâmica das relações conjugais e parentais durante o processo de transição para parentalidade. O conhecimento e a compreensão das condições intervenientes neste processo são fundamentais para a Enfermagem poder apoiar os pais e mães na busca de uma transição bem-sucedida.

 

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Recebido para publicação em: 03.04.13

Aceite para publicação em: 26.06.14

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