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Revista de Enfermagem Referência

Print version ISSN 0874-0283

Rev. Enf. Ref. vol.serIV no.13 Coimbra June 2017

https://doi.org/10.12707/RIV17007 

ARTIGO TEÓRICO/ENSAIO

THEORETICAL ARTICLE/ESSAYS

 

A medicina tradicional chinesa nos cuidados de saúde em Macau

Traditional Chinese medicine in health care in Macao

Cuidado de la salud de la medicina china tradicional en Macao

 

Lam Nogueira Oi Ching Bernice*

* PhD, Coordenador, Professor Associado, Escola Superior de Saúde, Instituto Politécnico de Macau, Macau [lamnog@ipm.edu.mo].

 

RESUMO

Enquadramento: A medicina tradicional chinesa (MTC) teve origem há mais de 2.500 anos, sendo praticada em Macau desde o século XIX. Recentemente, o Governo da Região Administrativa Especial de Macau (RAEM) criou o Centro Colaborador da Organização Mundial da Saúde (OMS) para a Medicina Tradicional Chinesa (Macau) e reforçou o investimento na MTC. O ensino de MTC é oferecido em instituições de ensino superior da RAEM. Contudo, ainda não existe um programa de graduação em enfermagem associada à MTC.

Objetivos: Descrever o sistema de saúde e a evolução da medicina ocidental e oriental em Macau; identificar a garantia de qualidade e o desenvolvimento futuro da MTC bem como os futuros desafios e implicações para a ciência e o ensino em Macau.

Principais tópicos em análise: Neste artigo são apresentadas análises descritivas com base na revisão de dados estatísticos, revisão histórica e da literatura.

Conclusão: A cultura oriental e ocidental que caracteriza Macau reflete-se na expansão da MTC, o que, com a colaboração da OMS, permitirá estabelecer a ponte entre Macau e os países de língua portuguesa.

Palavras-chave: medicina tradicional chinesa; Macau

 

ABSTRACT

Background: Traditional Chinese medicine (TCM) has been founded for more than 2,500 years of Chinese medical practice and also been practiced in Macau since the 19th century. Recently the Macau Special Administrative Region (MSAR) Government has established the World Health Organization (WHO) Collaboration Centre for Traditional Chinese Medicine (Macau) and has focused to the investment of TCM. Education for TCM is offered in higher education institutions in MSAR, however, nursing in TCM is not yet offered as a degree program.

Objectives: Describe the healthcare system and the evolution of the western and eastern medicine in Macau; identify the quality assurance and future development of TCM; and the future challenges and implications for science and education in Macau.

Main topics under analysis: Descriptive analyses by reviewing statistical data, historical and literature review are applied in this article.

Conclusion: Macau's characteristic eastern and western culture is reflected in the expansion of TCM. With collaboration from WHO, this will benefits the Macau's bridging and linking role with Portuguese-speaking countries.

Keywords: medicine, Chinese traditional; Macau

 

RESUMEN

Marco contextual: La Medicina Tradicional China (MTC) ha sido fundada por más de 2.500 años de práctica médica china y también se ha practicado en Macao desde el siglo XIX. Recientemente, el Gobierno de la Região Administrativa de Especial de Macau (RAEM) estableció el Centro Colaborador de la OMS para la Medicina China Tradicional (Macao) y se centró en la inversión de la MTC. Educación para el MTC se ofrece en las instituciones de educación superior en Macao, sin embargo, la enfermería MTC no se ofrece como un programa de grado.

Objetivos: Describir el sistema de salud y la evolución de la medicina occidental y oriental en Macao; identificar la garantía de calidad y el desarrollo futuro de la medicina tradicional china, así como los desafíos y las implicaciones para la ciencia y la educación en Macao futuras.

Temas de análisis principales: Análisis descriptivo a través de la revisión de los datos estadísticos, revisión histórica y bibliográfica se aplican en este artículo.

Conclusión: El oriental y la cultura occidental función de Macao se refleja en la expansión de la MTC. Con la colaboración de la OMS, esto beneficiará el papel de puente de Macao y enlazar con los países de habla portuguesa.

Palabras clave: medicina china tradicional; Macau

 

Introdução

Macau é uma Região Administrativa Especial (RAE) da República Popular da China, situada no Delta do Rio das Pérolas na costa sudeste da China continental, a 60km a sudoeste de Hong Kong. Macau inclui a península de Macau, Taipa e a ilha de Coloane. Com uma população estimada em cerca de 647.700 habitantes numa área de 30,4 km2 e uma densidade populacional de 21,100 hab./km2 (Direcção dos Serviços de Estatística e Censos [DSEC], 2016), Macau é uma das regiões com maior densidade populacional do mundo.

Colónia portuguesa desde 1557, a Região Administrativa Especial de Macau (RAEM) foi entregue à China em 20 de dezembro de 1999 no âmbito do princípio um país, dois sistemas (Gabinete de Comunicação Social, [GCS], 2016). Devido ao passado histórico de cerca de 500 anos de governação portuguesa, Macau possui características da cultura oriental e ocidental e isto aplica-se também aos cuidados de saúde, que combinam a medicina ocidental com a medicina tradicional chinesa (MTC).

A MTC teve origem há mais de 2.500 anos na MTC e inclui diversas formas de fitoterapia, acupuntura, massagem, exercício e terapia dietética. A MTC é amplamente praticada na China, verificando-se uma prevalência cada vez maior na Europa e América do Norte (National Center for Complementary and Integrative Health [NCCIH], 2016).

Além disso, a MTC é praticada desde o Século XIX em Macau, principalmente por entidades não-governamentais e, mais tarde, com o apoio do governo. Recentemente, o governo da RAEM, com o apoio do governo de Beijing, apostou no desenvolvimento da MTC e, em agosto de 2015, criou o Centro Colaborador da Organização Mundial da Saúde (OMS) para a Medicina Tradicional Chinesa (Macau; WHO, 2015). O Parque Científico e Industrial de Medicina Tradicional Chinesa de Guangdong-Macau é um novo investimento localizado na Ilha de Hengqin, no Município de Zhuhai em Macau e, segundo o Chefe do Executivo da RAEM, irá beneficiar das medidas tomadas para reforçar o papel de Macau como ponte de ligação com os Países de Língua Oficial Portuguesa (Serviços de Saúde de Macau [SSM], 2016a). O presente artigo descreve o sistema de saúde de Macau, a evolução da medicina ocidental e oriental em Macau e a garantia de qualidade e o desenvolvimento futuro da MTC em Macau. Além disso, define os futuros desafios e as consequências para a ciência e o ensino no sentido de aumentar a significativa relevância que Macau atribui à MTC como parte integrante da sua política e estratégia para a diversificação económica.

 

Desenvolvimento

Sistema de saúde em Macau

O Governo da RAEM segue a política de um “tratamento seguro e adequado com prioridade para a prevenção” (GCS, 2016, p. 1), assumindo um compromisso com a melhoria da qualidade dos serviços de saúde e da assistência médica, assim como da saúde da população macaense (SSM, 2016b). O Sistema de Saúde de Macau é um dos mais desenvolvidos da Ásia, registando uma das maiores expetativas de vida da população, com uma média de 79,9 anos para os homens e 86,3 para as mulheres (DSEC, 2016).

Em Macau, existem cinco hospitais e 708 unidades de cuidados primários, das quais 194 são clínicas de MTC. Em 2015, estavam registados 1.674 médicos e 2.279 enfermeiros, com um rácio de 2,6 e 3,5 por cada 1.000 residentes, respetivamente (DSEC, 2016).

Os cuidados de saúde em Macau são prestados por instituições governamentais e não-governamentais. As instituições governamentais incluem: o Centro Hospitalar Conde de São Januário (CHCSJ), que presta cuidados médicos especializados; sete centros de saúde e três unidades de cuidados de saúde primários; e o Centro Clínico de Saúde Pública de Coloane. O sistema de cuidados de saúde primários foi criado em 1985 pelos Serviços de Saúde de Macau da Administração Portuguesa com vista à concretização do objetivo Saúde para Todos no ano 2000 preconizado pela OMS. Os centros e as unidades de saúde localizam-se em vários distritos de Macau e possibilitam aos residentes em Macau o acesso fácil e gratuito a cuidados de saúde primários nos seus próprios bairros. Entre estes, o Centro de Saúde de Macau Norte (Bairro Fai Chi Kei), o Centro de Saúde de Areia Preta (Hac Sa Wan) e o Centro de Saúde de Nossa Senhora do Carmo-Lago estão equipados com clínicas de MTC. A rede de cuidados de saúde primários baseada nos centros de saúde públicos é considerada um modelo de boas práticas pela OMS (GCS, 2016).

As instituições de saúde não-governamentais incluem o Hospital Kiang Wu, o Hospital da Universidade de Ciências e de Tecnologia de Macau (HU), o Hospital de Dia da Clínica Malo, o Hospital Macau Yin Kui, a Clínica Tung Sin Tong, o Dispensário dos Operários, e muitas outras clínicas privadas que oferecem diversos serviços médicos. Entre estas instituições não-governamentais, o Hospital Kiang Wu, o Hospital da Universidade, o Dispensário dos Operários e a Clínica Tung Sin Tong disponibilizam consultas e tratamentos com MTC.

Os Serviços de Saúde de Macau são responsáveis pela coordenação das atividades entre as organizações públicas e privadas na área de saúde pública e pela garantida da saúde dos cidadãos através de serviços especializados e de cuidados primários, assim como a prevenção de doenças e a promoção da saúde.

Apresentação da MTC

Ir a uma unidade ou farmácia de MTC de um hospital ou centro de saúde de Macau é interessante para os ocidentais ou para quem não esteja familiarizado com a MTC pois, em alguns aspetos, é diferente de ir a um hospital ou centro de saúde ocidental. Normalmente, ao entrar na farmácia de MTC, o utente depara-se com várias filas de pequenas gavetas castanhas, muitas vezes mais de 100, cada uma identificada. É no interior destas gavetas que as plantas secas e os ingredientes de MTC para preparações médicas são conservados. A disposição é semelhante à das antigas boticas. Os ingredientes secos são selecionados e pesados manualmente, seguindo a receita do médico de MTC, numa simples balança manual de dois pratos, sendo depois misturados e embrulhados pelo farmacêutico de MTC. Os utentes podem optar por levar os ingredientes e fervê-los em casa para fazer o líquido medicinal ou o estabelecimento de MTC pode preparar e ferver os ingredientes, entregando o líquido em embalagens estanques e seladas para que o utente o aqueça e beba em casa. Por vezes, o estabelecimento médico também oferece um doce tradicional para mascarar o travo que pode ser um pouco forte, desagradável ou amargo de alguns produtos medicinais de MTC.

As combinações à base de plantas utilizadas na MTC são preparadas e ajustadas a cada pessoa (cerca de 8-15 plantas numa preparação) e podem mudar ao longo do tempo de acordo com a doença e estado de saúde da pessoa (Flower et al., 2012). Segundo Flower et al. (2012), algumas plantas estão indicadas para ação terapêutica (planta imperador), algumas auxiliam a terapia e outros fatores coexistentes (planta ministro), outras auxiliam a terapia principal ao mesmo tempo que minimizam os efeitos adversos (planta auxiliar) e, por fim, outras destinam-se a uma parte específica do organismo (planta guia).

Alguns produtos medicinais de MTC atuam de forma mais lenta do que alguns medicamentos ocidentais pois centram a sua ação em regenerar o organismo como um todo e atingir um equilíbrio generalizado em vez de se centrarem nos sintomas ou em partes isoladas do corpo. Daí que o curso de tratamento com MTC seja mais longo do que o tratamento com medicina ocidental.

Em termos de diagnóstico e tratamento, a MTC centra-se na pessoa como um todo, incluindo as classificações quente, frio, molhado e seco dos doentes e respetivos sintomas manifestados (Liu, Leung, & Tian, 2011). Numa consulta de MTC, o médico avalia o doente medindo até 29 pulsos diferentes, examinando a língua e recolhendo dados de observação, testes, olfato, audição e palpação e fazendo perguntas (van der Greef, 2011), ou seja, é uma abordagem à pessoa como um todo. Isto difere de alguns tratamentos ocidentais, indicados apenas para a doença específica e não para a pessoa na sua totalidade, e, muitas vezes, para uma única doença de cada vez.

No âmbito da investigação, a MTC centra-se, frequentemente, no efeito terapêutico da MTC em determinados problemas de saúde e funções do organismo, sendo que a MTC é avaliada geralmente mediante a realização de ensaios controlados aleatorizados (ECA). Van der Greef (2011), Liu et al. (2011) e Flower et al. (2012) afirmam que os ECA são utilizados para a identificação de elementos bioquímicos das plantas e respetiva eficácia e, segundo Flower et al. (2012), existem 17.000 ECA deste tipo sobre a MTC.

Para além dos ECA usados para testar a eficácia da MTC, os restantes estudos sobre MTC em Macau integram a investigação científica fundamental aberta (blue-sky research), analisando os efeitos das plantas identificas em aspetos específicos das doenças e a sua cura, ou seja, em ensaios pré-clínicos.

Grande parte da investigação médica atual centra-se na medicina e assistência personalizadas ao mundo real, na pessoa como um todo e nas características individuais dos participantes. Na medicina personalizada, o médico contacta com a pessoa, não apenas com a doença (Leon, 2012). A MTC, ao centrar-se na pessoa como um todo, reconhece que esta é um sistema, atuando na pessoa como um todo e não apenas numa doença específica. Na MTC, a pessoa é encarada, no seu todo, como um sistema (van der Greef, 2011; Flower et al., 2012), envolvendo, por exemplo, fatores nutricionais, psicológicos e comportamentais na decisão sobre o melhor curso de tratamento (van der Greef, 2011). Tal como a medicina ocidental, a MTC centra-se não apenas no tratamento, mas também na prevenção de doenças, promoção da saúde e outros benefícios das plantas.

Evolução da medicina ocidental e oriental em Macau

Em Macau, observa-se não só o renascimento da MTC, mas também a sua expansão e desenvolvimento, tanto ao nível da prestação de cuidados como da investigação, desenvolvimento e industrialização. Está a tornar-se um elemento relevante no seu desenvolvimento económico, contando com o importante apoio do Governo de Macau para o seu desenvolvimento, tirando partido do longo passado de MTC em Macau. Em simultâneo, está a aumentar a regulação, acreditação, profissionalização, normalização e garantia de qualidade da MTC e respetivos profissionais e formandos.

No século XVI, foi construído o primeiro hospital europeu (Hospital de São Rafael) para cuidar de doentes pobres. Até meados do século XIX, Macau tinha três hospitais portugueses a prestar cuidados de medicina ocidental (Hospital da Santa Casa da Misericórdia/Hospital de São Rafael, Hospital de São Lázaro e o Hospital Militar) principalmente a missionários e soldados portugueses. Destes, o Hospital Militar continua em funcionamento bem como o Hospital Público (atualmente designado de Hospital Conde de São Januário) que pratica medicina ocidental (SSM, 2016b).

Fundado em 1871, o Hospital Kiang Wu foi o primeiro hospital chinês a oferecer cuidados de MTC à população chinesa, mas foi-se centrando progressivamente na medicina ocidental, deixando de prestar cuidados de MTC em 1944. No entanto, em meados da década de 1980, devido à expansão mundial da influência da MTC, retomou os serviços de MTC. Estes serviços não duraram muito e apenas alguns destes permanecem ativos: acupuntura, massagem e alguns serviços de MTC. Em março de 1998, os serviços de MTC foram novamente retomados até aos dias de hoje. Os serviços de MTC oferecidos no Hospital Kiang Wu incluem: consultas de MTC; MTC do homem, ginecologia, pediatria, ortopedia e trauma, acupuntura e massagem; dispensa e acondicionamento de produtos medicinais à base de plantas (Kiang Wu Hospital, 2013).

A Clínica Tung Sin Tong, a primeira clínica de MTC, foi fundada em 1892 e oferece, a título gratuito, consultas e fitoterapia a doentes em Macau, independentemente da sua nacionalidade, etnia ou estatuto social. Esta clínica começou a receber subsídios do Governo de Macau em 1989, estando atualmente a expandir-se e a abrir mais clínicas em vários distritos de Macau.

O desenvolvimento da MTC foi iniciado por iniciativas não-governamentais, tendo posteriormente recebido o apoio do Governo de Macau. Foi em 1999 que os primeiros serviços de MTC começaram a ser prestados no Centro de Saúde Público (Centro de Saúde Fai Chi Kei), que servia a crescente população chinesa do distrito norte da cidade de Macau. Desde então, os serviços expandiram-se para outros dois Centros de Saúde: o Centro de Saúde Hac Sa Wan, em Macau, e o Centro de Saúde Nossa Senhora do Carmo-Lago, em Taipa. Estes três Centros de Saúde Públicos prestam serviços de MTC, incluindo consultas, acupuntura e fitoterapia, aos residentes de Macau. Deste modo, estas instituições de saúde governamentais caracterizam-se por combinar a medicina ocidental com a oriental.

Há cada vez mais clínicas privadas de MTC e lojas especializadas em fitoterapia em Macau. Em 2015, havia 194 clínicas privadas de MTC registadas, contabilizando 1.135.908 consultas. O rácio de médicos a exercer MTC é, aproximadamente, de 1 por cada 1.000 habitantes, tendo permanecido constante desde 2011 (DSEC, 2016).

O Governo de Macau valoriza o desenvolvimento e implementação da MTC. Com a aprovação do Governo de Macau, a Faculdade de Medicina Tradicional Chinesa da Universidade de Ciência e Tecnologia de Macau (University of Science and Technology, MUST) foi fundada em 2000, tendo disponibilizado nesse mesmo ano o Curso de Licenciatura em MTC. No início de 2011, a universidade tornou-se a instituição de apoio do Laboratório de Referência do Estado para Investigação de Qualidade em Medicina Tradicional Chinesa (State Key Laboratory of Quality Research in Chinese Medicine, SKL-QRCM). Em 2003, em resposta à crescente necessidade de cuidados médicos da população local, a MUST, com a aprovação dos Serviços de Saúde de Macau, criou uma clínica de MTC. Esta clínica também permitia a prática clínica de estudantes e docentes de medicina da MUST. Recentemente, a Faculdade de Medicina Tradicional Chinesa da MUST passou a oferecer cursos de Licenciatura, Mestrado e Doutoramento em MTC (Tabela 1; Macau University of Science and Technology, 2016a). A Universidade de Macau criou o Instituto de Ciências Médicas Chinesas (Institute of Chinese Medical Sciences, ICMS) e o SKL-QRCM em 2002. O ICMS/SKL-QRCM dedica-se à promoção da investigação em MTC e à capacitação de talentos locais nas áreas interdisciplinares das ciências biomédicas e farmacêuticas. O ICMS/SKL-QRCM começou a oferecer cursos de Mestrado em Ciências Médicas Chinesas e Administração Medicinal em 2002, oferecendo atualmente o curso de Licenciatura e Doutoramento em Ciências Biomédicas (Tabela 1). A Comissão de Especialistas do Ministério da Ciência e Tecnologia de Beijing avaliou positivamente as iniciativas do SKL-QRCM (na Universidade de Macau e na Universidade de Ciência e Tecnologia de Macau) e aprovou a avaliação intermédia do SKL em 2013 (University of Macau, 2016a).

Uma característica da investigação na área da MTC em Macau é que esta pretende estudar os efeitos da MTC e dos produtos medicinais à base de plantas em doenças que também possam ser tratadas com medicamentos ocidentais. Esta aproximação, ou fusão, entre a medicina ocidental e oriental não é só invulgar como também ilustra a fusão entre as culturas ocidental e oriental que caracterizam Macau.

Garantia de qualidade da medicina tradicional chinesa em Macau

No passado, alguns profissionais de MTC eram formados em instituições formais de MTC, sendo que a maioria estava dispersa por pequenos serviços de saúde de Macau. A maior parte da formação destes profissionais provinha de fontes ancestrais ou sob a tutoria de um professor, ou ainda de ensino e formação em colégios e universidades de MTC da China Continental (Zeng, 2003).

Em 1990, os Serviços de Saúde de Macau, através do Decreto 84/90/M (Governo de Macau, 1990), estabeleceram os critérios de elegibilidade e reconhecimento dos profissionais de saúde, nomeadamente dos médicos/mestres de MTC. Segundo este decreto, os médicos de MTC devem obter um certificado de Ensino Superior em MTC numa instituição de ensino reconhecida em Macau, Portugal ou China continental e os mestres de MTC têm de ver os seus conhecimentos reconhecidos pela Associação Médica Chinesa.

Além disso, os Serviços de Saúde de Macau e a Associação de Medicina Tradicional Chinesa de Macau procuraram reforçar ativamente a cooperação com a China continental. Em 1996 e 1997, realizou-se um curso de formação em medicina tradicional chinesa em Macau, com a duração de 2 semestres, destinado a funcionários públicos e profissionais de MTC e que, durante um ano, abordou 10 disciplinas, nomeadamente MTC, cirurgia de MTC, acupuntura e massagem. Foram convidados professores de renome da China continental com vista a melhorar a qualidade da prática e as competências dos profissionais de MTC (Zeng, 2003).

Mais recentemente, os mestres de MTC têm de obter um certificado de um curso de MTC, em regime de tempo integral, com a duração de 3 ou mais anos, e os médicos de MTC têm de concluir uma licenciatura em MTC, em regime de tempo integral, com a duração de 5 ou mais anos (SSM, 2015).

A 14 de novembro de 1994, com vista a manter a saúde pública de Macau e melhorar a qualidade, eficácia e segurança da MTC, os Serviços de Saúde de Macau publicaram novos regulamentos sobre medicamentos. Estes regulamentos pretendiam reforçar a gestão da MTC: (1) garantir a utilização de medicamentos tradicionais seguros, eficazes e de alta qualidade para a população macaense de forma a melhorar a utilização racional e cuidadosa dos medicamentos tradicionais; (2) regular a importação, exportação, comércio grossista, distribuição e gestão farmacêutica dos produtos medicinais chineses patenteados; e (3) rever as habilitações técnicas dos farmacêuticos e das farmácias na profissão.

Em linha com os novos regulamentos, o Governo de Macau aprovou 456 tipos de produtos medicinais chineses à base de plantas para comercialização em farmácia. A lista inclui duas categorias: uma lista de produtos medicinais chineses à base de plantas classificados como tóxicos e outra lista de tratamentos de fitoterapia frequentemente utilizados. As farmácias devem ter um responsável pela direção técnica com uma das seguintes habilitações: (1) farmacêutico; (2) médico ou mestre de MTC; (3) profissional com 5 anos de experiência na preparação e ajuste de produtos medicinais utilizados na MTC, devendo ser certificado por declaração própria confirmada pelas farmácias ou associações de MTC onde obteve experiência (Decreto-Lei n.º 53/94/M de 14/11/1994). O Conselho de Consumidores de Macau também tem o poder de investigar a qualidade dos produtos utilizados na MTC, verificando-os periodicamente e, sempre que necessário, alertando o público para produtos perigosos ou não autorizados.

Além disso, o Centro de Segurança e Garantia de Qualidade de Medicamentos e Alimentos Chineses da MUST realiza testes analíticos para avaliar, através de espectrometria, o nível de poluentes prejudiciais, tais como metais pesados e resíduos de pesticidas nas plantas e produtos medicinais utilizados na MTC. Também realiza testes de garantia de qualidade a produtos medicinais, suplementos alimentares, alimentos ou outros produtos que contenham componentes medicinais chineses, existentes no Hospital da Universidade ou na indústria farmacêutica chinesa, com vista a melhorar a qualidade dos cuidados de saúde em Macau. Em 2008, este Centro recebeu a acreditação laboratorial ISO/IEC17025 pela National Association of Testing Authorities (NATA) da Austrália e continua a expandir a verificação acreditada internacional e a certificação comercial sobre alimentos, tais como a certificação China CNAS O SKL-QRCM também mantém registos detalhados da origem e qualidade das plantas utilizadas na MTC.

Desenvolvimentos futuros na MTC em Macau

O Governo de Macau valoriza explicitamente o desenvolvimento da MTC e anunciou o compromisso com a industrialização da MTC em Macau, dando destaque ao desenvolvimento do setor da MTC como um dos principais componentes da diversificação económica de Macau.

Em agosto de 2015, foi criado o Centro Colaborador da OMS para a Medicina Tradicional Chinesa (Macau) com o apoio deste organismo mundial da saúde e do governo central de Macau. Também foram assinados vários protocolos relativos ao desenvolvimento da MTC entre o Governo de Macau e a Administração Estatal da Medicina Tradicional Chinesa. Estes processos evidenciam o reconhecimento internacional dos esforços de Macau no sentido da promoção da MTC e criaram a expetativa de desenvolvimento futuro do setor em Macau.

O desenvolvimento da MTC implica a sua expansão e ligação mundial, não estando circunscrito à RAEM. Os Serviços de Saúde de Macau desempenham um papel importante no futuro desenvolvimento da MTC no que diz respeito ao controlo da qualidade dos recursos humanos e dos produtos associados, à investigação e ao desenvolvimento da MTC.

Em termos de investigação, a Universidade de Ciência e Tecnologia de Macau definiu linhas de investigação-chave para a MTC (Macau University of Science and Technology, 2016b): Estudo do componente antiviral respiratório imobilizado na MTC por via do recetor viral nas células respiratórias e respetivo mecanismo; Estudo dos ingredientes ativos de Lei Gong Teng (Tripterygium Wilfordii Hookf) e respetivo fármaco encapsulado em nanopartículas no tratamento da nefrite crónica; Identificação dos mecanismos moleculares e alvos da ação farmacológica do Rh2E2, um novo derivado do ginsenósido, ou anticancerígeno, através da utilização de tecnologia proteómica; Definição da nova plataforma lipidómica baseada em LC-MS e LC-NMR e a sua aplicação na investigação de MTC (Macau University of Science and Technology, 2016b). A Universidade de Macau recebeu financiamento para diversos projetos de investigação na área da MTC (University of Macau, 2016b), nomeadamente: Estudo químico e farmacológico de um novo fungo proveniente de Cordyceps Sinensis de ocorrência natural; Principais tecnologias inovadoras da MTC baseadas na farmacologia de rede e farmacêutica molecular; Caracterização, otimização estrutural e estudo do mecanismo dos componentes neuroprotetores de medicamentos chineses para a minimização e o tratamento de complicações da doença de Parkinson; Estudo farmacológico do par de plantas chinesas Radix Puerariae-Salvia miltiorrhiza Bunge na diminuição da resistência à insulina e disfunção endotelial (University of Macau, 2016c).

Neste sentido, a formação de profissionais e as evidências científicas de estudos de investigação são características essenciais, sendo que os governos de Macau e Beijing concederam um financiamento significativo para a investigação na área da MTC em Macau. Apesar de os cursos de licenciatura em MTC terem vindo a ser bem desenvolvidos, à data da elaboração deste artigo, esta temática ainda não é parte integrante, ou a totalidade, de um curso de licenciatura em enfermagem. O curso de licenciatura de MTC em enfermagem existe há vários anos na China continental e na RAE de Hong Kong. Dadas as características dos cuidados de saúde em Macau, que combinam a Medicina Ocidental com a MTC, é importante que os enfermeiros aprendam mais sobre a MTC de forma a poderem intervir na educação e promoção da saúde junto da população.

 

Conclusão

Macau está numa posição privilegiada para se tornar líder na investigação, desenvolvimento, industrialização, farmacologia e prática de MTC. Este processo já foi iniciado e encontra-se em expansão, contando com o financiamento e apoio significativo dos governos de Beijing e da RAE de Macau. Como o Governo de Macau, no seu plano estratégico a 5 anos, definiu a diversificação económica como iniciativa estratégica para o desenvolvimento de Macau, isto tem sido acompanhado pela priorização de todos os aspetos relacionados com a MTC e o desenvolvimento de redes de investigadores e profissionais ao nível mundial.

A cultura de Macau, caracterizada por aspetos ocidentais e orientais, reflete-se na expansão da MTC, nomeadamente nas medidas tomadas para a integração da medicina ocidental e medicina oriental. O sucesso da colaboração entre instituições governamentais e não-governamentais na promoção da MTC está claramente evidente em Macau. As iniciativas futuras do governo passam por garantir que Macau se posiciona como referência internacional de controlo e desenvolvimento da qualidade da MTC e como plataforma para o intercâmbio e comércio internacional no setor da saúde. Este movimento também é beneficiado pelo papel há muito estabelecido de Macau como ponte de ligação com os Países de Língua Portuguesa.

Os critérios de elegibilidade e reconhecimento dos profissionais de saúde na área da MTC estão já bem definidos e, quanto a isto, o desenvolvimento da MTC exigirá uma revisão aprofundada dos regulamentos sobre a MTC. É necessário incentivar o desenvolvimento investigação com o objetivo de apresentar evidências no sentido de promover a confiança na MTC no seio da comunidade internacional e do setor. De forma a melhorar o controlo de qualidade da MTC, um possível desenvolvimento seria os Serviços de Saúde de Macau considerarem a criação de uma comissão de especialistas especificamente destinada a estabelecer a ligação entre os diferentes intervenientes governamentais e não-governamentais.

Com o apoio da OMS e o empenho político, assim como a preparação educativa e investigação de referência na RAEM, o desenvolvimento da MTC em Macau tem um futuro brilhante pela frente, com uma evolução dinâmica que certamente atrairá a atenção mundial.

 

Referências bibliográficas

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Recebido para publicação em: 24.01.17

Aceite para publicação em: 29.04.17

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