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Revista de Enfermagem Referência

versão impressa ISSN 0874-0283

Rev. Enf. Ref. vol.serIV no.14 Coimbra set. 2017

https://doi.org/10.12707/RIV17018 

ARTIGO TEÓRICO/ENSAIO

THEORETICAL PAPER/ESSAY

 

Transcrever entrevistas: questões conceptuais, orientações práticas e desafios

Interview transcription: conceptual issues, practical guidelines, and challenges

Transcripción de entrevistas: cuestiones conceptuales, orientaciones prácticas y desafíos

 

Vanessa Azevedo*; Margarida Carvalho**; Flávia Fernandes-Costa***; Soraia Mesquita****; Joana Soares*****; Filipa Teixeira******; Ângela Maia*******

* MsC., Estudante de Doutoramento, Universidade do Minho, 4710-057, Braga, Portugal [vazevedo@psi.uminho.pt]. Contribuição no artigo: sintetização e organização dos conteúdos e redacção de uma versão preliminar do manuscrito, aprovação da versão final. Morada para correspondência: Escola de Psicologia, Campus de Gualtar, Universidade do Minho, 4710-057 Braga, Portugal.

** MsC., Psicóloga, Escola de Psicologia, Universidade do Minho, 4710-057, Braga, Portugal [margarida.mt.carvalho@gmail.com]. Contribuição no artigo: sintetização e organização dos conteúdos e redacção de uma versão preliminar do manuscrito, aprovação da versão final.

*** MsC., Psicóloga, Escola de Psicologia, Universidade do Minho, 4710-057, Braga, Portugal [flaviacosta_1989@hotmail.com]. Contribuição no artigo: sintetização e organização dos conteúdos e redacção de uma versão preliminar do manuscrito, aprovação da versão final.

**** 12º ano, Estudante de Psicologia, Escola de Psicologia, Universidade do Minho, 4710-057, Braga, Portugal [a74599@alunos.uminho.pt] Contribuição no artigo: sintetização e organização dos conteúdos e redacção de uma versão preliminar do manuscrito, aprovação da versão final.

***** 12º ano, Estudante de Psicologia, Escola de Psicologia, Universidade do Minho, 4710-057, Braga, Portugal [a73573@alunos.uminho.pt]. Contribuição no artigo: sintetização e organização dos conteúdos e redacção de uma versão preliminar do manuscrito, aprovação da versão final.

****** Ph.D., Psicóloga, Bolseira de investigação, Escola de Psicologia, Universidade do Minho, 4710-057, Braga, Portugal [filipa.v.teixeira@gmail.com]. Contribuição no artigo: discussão e revisão da versão preliminar do manuscrito, aprovação da versão final.

******* Ph.D., Professora Auxiliar, Escola de Psicologia, Universidade do Minho, 4710-057, Braga, Portugal [angelam@psi.uminho.pt]. Contribuição no artigo: discussão e revisão da versão preliminar do manuscrito, aprovação da versão final.

 

RESUMO

Enquadramento: A recolha de informação através de entrevistas é uma estratégia de investigação comum, existindo vasta literatura sobre a realização e a análise das mesmas. Contrariamente, a transcrição tem sido um tema secundarizado, embora não irrelevante. Transcrever consiste na transformação de um discurso oral num texto escrito com significado, que possa ser analisado e que contenha as informações relevantes da entrevista.

Objetivos: Abordam-se e discutem-se as questões conceptuais, pragmáticas e desafios inerentes à transcrição de entrevistas, numa perspetiva integradora.

Principais tópicos em análise: O que se entende por transcrever? Que tipos de transcrições existem? O que é que se transcreve e como é que transcreve uma entrevista? Que cuidados devem ser salvaguardados quando transcrevermos? Quais são as principais dificuldades de se transcrever?

Conclusão: Reconhecendo a inexistência de protocolos ou regras universais para transcrever, importa que os investigadores explicitem as suas práticas e decisões, as quais poderão influenciar a análise de dados.

Palavras-chave: metodologia; pesquisa qualitativa; entrevistas como assunto; comunicação não verbal; comportamento verbal

 

ABSTRACT

Background: Interviews are a common practice for gathering information in scientific studies. Although there is an extensive work about how to conduct and analyze an interview, transcription has usually remained a minor issue. Transcribing is the transformation of oral speech into a written and meaningful text that includes relevant information from the interview and that can be analyzed.

Objectives: This article addresses and discusses the main conceptual and practical issues, as well as the main challenges involved in interview transcription, using an integrative approach.

Main topics under analysis: What is the definition of transcription? Which types of transcripts exist? What content must be transcribed? How should an interview be transcribed? What special measures should be taken during a transcription? What are the main difficulties?

Conclusion: Given the lack of universal protocols or rules for transcription, researchers should state their practices and decisions, which may influence data analysis.

Keywords: methodology; qualitative research; interviews as topic; nonverbal communication; verbal behavior

 

RESUMEN

Marco contextual: La recogida de información a través de entrevistas es una estrategia de investigación común, y existe una vasta literatura sobre la realización y el análisis de las mismas. Por el contrario, la transcripción ha sido hasta ahora un tema secundario, aunque no irrelevante. Transcribir consiste en transformar un discurso oral en un texto escrito con significado, que pueda ser analizado y que contenga las informaciones relevantes de la entrevista.

Objetivos: Se abordan y se discuten las cuestiones conceptuales, pragmáticas y desafíos inherentes a la transcripción de entrevistas, en una perspectiva integradora.

Principales temas de análisis: Qué se entiende por transcribir? Qué tipos de transcripciones existen? Qué se transcribe y cómo transcribe una entrevista? Qué cuidados deben tenerse al transcribir? Cuáles son las principales dificultades de transcribir?

Conclusión: Puesto que reconocemos que no existen protocolos o reglas universales para transcribir, es importante que los investigadores expliciten las prácticas y decisiones que pueden influir en el análisis de datos.

Palabras clave: metodología; investigación cualitativa; entrevistas como asunto; comunicación no verbal; conducta verbal

 

Introdução

Quando se pretende conhecer, em profundidade, o como e os porquês de um determinado fenómeno está-se a enquadrar a investigação no domínio das abordagens qualitativas, que se centram no estudo dos significados atribuídos pelos indivíduos a determinadas experiências de vida, trabalhando, assim, com um tipo de conhecimento que não pode, muitas vezes, ser quantificado ou que se torna insuficiente quando reduzido a operacionalizações de variáveis (Creswell, 2013). A investigação qualitativa afirma-se no campo da descrição e compreensão, completa e profunda, dos significados e processos subjetivos atribuídos às experiências e práticas quotidianas, numa lógica da descoberta, tendo como foco as perspetivas dos atores/sujeitos, atendendo aos seus contextos de vida, isto é, estudando e interpretando os fenómenos no seu meio natural (Creswell, 2013; Silverman, 2013).

O recurso a metodologias qualitativas é cada vez mais necessário nas ciências da saúde não só como forma de se aceder ao core da experiência humana em termos de compreensão, em profundidade, dos significados atribuídos pelos indivíduos às vivências no domínio da saúde e da doença, mas também como forma de promover a humanização do processo saúde-doença, de potenciar a prática baseada na evidência e de facilitar mudanças tanto a nível individual, como a nível governamental (Taylor & Francis, 2013). O interesse nas metodologias qualitativas está bem patente no crescente número de estudos de carácter qualitativo publicados pela Revista de Enfermagem Referência: nomeadamente, 10 estudos entre 2010-2012 versus 24 estudos entre 2013-2016.

A aquisição de conhecimento, no âmbito dos estudos qualitativos, pode ser alcançada com recurso a diversos tipos de materiais, desde fotografias, textos, observação de campo, etc. No entanto, as entrevistas surgem como o instrumento mais frequentemente utilizado na recolha exaustiva e alargada dos significados atribuídos aos fenómenos (Ritchie, Lewis, Nicholls, & Ormston, 2014). Deste modo, é expectável que um número significativo de investigadores na área da saúde já tenha transcrito uma entrevista ou trabalhado com transcrições, razão pela qual o tema principal deste artigo não será desconhecido, sobretudo do ponto de vista experiencial.

Bazeley (2013) enfatiza que a transcrição é uma tarefa importante de investigação, não devendo, por isso, ser encarada como um mero detalhe técnico situado entre a realização da entrevista e a análise dos dados, como parece ser tratado na maioria dos casos. Mais especificamente, nos estudos qualitativos publicados pela Revista de Enfermagem Referência apenas cinco apresentam informação mais detalhada acerca da transcrição (e.g., Camarneiro, Maciel, & Silveira, 2015); este padrão parece também aplicar-se no contexto internacional (e.g., Escola Anna Nery Revista de Enfermagem). Este cenário reflete a tendência na literatura sobre transcrições, que é significativamente desproporcional e dispersa quando comparada com as restantes etapas. Ainda que pareça fácil responder a questões como: O que se entende por transcrever? Como é que se transcreve? Quais os cuidados que importam salvaguardar? Que desafios são enfrentados? As respostas dificilmente são consensuais e serão certamente moldadas pelas aprendizagens e experiências individuais. Consequentemente, é compreensível que uma mesma entrevista possa ser transcrita de forma distinta por diferentes pessoas ou até pela mesma pessoa em momentos diferentes, ou em função de objetivos diferentes. Considerando que cada vez mais se trabalha e investiga em grupo, com o entrevistador e o transcritor a serem pessoas diferentes ou até existindo mais do que um transcritor, torna-se imperativo articular e acomodar experiências idiossincráticas, num conjunto de princípios e práticas partilhadas.

Atendendo às complexidades inerentes à transcrição (e.g., Mergenthaler & Stinson, 1992) e à parca literatura específica, importa privilegiar esta etapa intermédia, abordando, de forma aprofundada, as múltiplas tarefas e contínuas tomadas de decisão, não só a nível conceptual, mas também pragmático. Neste contexto, este artigo tem como objetivos identificar, analisar e discutir as principais questões conceptuais, orientações práticas e desafios inerentes à transcrição, de modo a compreender a totalidade do processo. Dado o caráter pragmático dos conteúdos abordados, sempre que pertinente os mesmos serão exemplificados através de um caso prático, referente ao processo de transcrição verbatim e integral de 12 entrevistas realizadas no âmbito de um estudo, desenvolvido na zona norte do país, sobre as crenças, atitudes e práticas dos enfermeiros acerca da obesidade e dos obesos, nos cuidados de saúde primários.

 

Desenvolvimento

Questões conceptuais

Tipos de Entrevista

De acordo com adaptação de Halcomb e Davidson (2006), a partir da tipologia de Tashakkori e Teddlie (2003), as entrevistas podem ser situadas num continuum que oscila entre um pólo puramente quantitativo e, o seu oposto, um pólo puramente qualitativo, variando ao nível da estrutura, da flexibilidade, e do padrão de interação entre entrevistador/entrevistado.

Independentemente da índole da entrevista, é prática corrente proceder à sua gravação áudio, já que este recurso é bastante vantajoso quer para o entrevistador, quer para o entrevistado (Halcomb & Davidson, 2006; Stuckey, 2014). Posteriormente, as entrevistas de índole mais qualitativa habitualmente são transcritas, antes de serem analisadas, com o intuito de minimizar as limitações associadas à mera intuição e recordação da informação e os vieses individuais (e.g., preconceitos; Naz, n.d.). Além disso, segundo o mesmo autor, as transcrições permitem observar repetida e detalhadamente o decurso e conteúdo da entrevista, partilhar estas informações com outras pessoas e reutilizar ou reanalisar os dados, noutros projetos ou em função de outros objetivos.

Definições de transcrição

Segundo Halcomb e Davidson (2006, p. 38) transcrever consiste na “reprodução das palavras faladas, como as que provêm de uma entrevista gravada, em texto escrito”; porém como não se restringe apenas ao simples ato de ouvir e escrever, há definições mais complexas. Por exemplo, alguns autores consideram que a transcrição é um procedimento que implica “reduzir, interpretar e representar as conversas orais para que o texto escrito seja compreensível e tenha significado” (Bailey, 2008, p. 127); deste modo, “as transcrições não são meros registos neutros dos eventos, pois refletem as interpretações dos investigadores relativamente aos dados” (Bailey, 2008, p. 129). Em síntese, Davidson (2009, p. 37) advoga que “as transcrições constituem-se como um processo que é teórico, seletivo, interpretativo, e representativo”. Assim, parece razoável reconhecer que transcrever está longe de ser uma tarefa objetiva, impessoal e mecanizada, consistindo antes na apreensão do que é dito e da forma como é dito de modo a compreender os significados (Bailey, 2008; Stuckey, 2014).

Tipos de transcrições: naturalista versus não naturalista

Para alguns autores (Bucholtz, 2000; Oliver, Serovich, & Mason, 2005) a transcrição de entrevistas representa-se num continuum com dois pólos, que Bucholtz (2000) denominou como naturalista versus não naturalista (note-se que na literatura podem surgir como sinónimos as designações transcrição verbatim ou integral (Schegloff, 1997) versus transcrição seletiva), que correspondem a diferentes perspetivas sobre a representação da linguagem.

A transcrição naturalista corresponde à transcrição minuciosa do que é dito e exatamente como é dito e preconiza a preservação dos diferentes elementos da entrevista para além do conteúdo verbal, tais como a linguagem não-verbal, aspetos contextuais e de interação entre o entrevistador e o entrevistado (ou de terceiros envolvidos; Oliver et al., 2005). Por outro lado, segundo os mesmos autores, a transcrição não naturalista privilegia o discurso verbal e centra-se na omissão dos elementos idiossincráticos do discurso, tais como gaguez, pausas, vocalizações involuntárias e linguagem não-verbal, apresentando-se, por isso, como uma transcrição mais polida e seletiva.

Orientações práticas

O processo de transformar o discurso oral em palavras escritas tem associado um conjunto diversificado de desafios, que poderão ser ultrapassados com um planeamento cuidadoso e rigoroso sobre como proceder (Lapadat, 2000). Considerando que as orientações práticas remetem para diferentes aspetos do processo de transcrição, optou-se por organizá-las em etapas. Após rever as sugestões de outros autores (e.g., Halcomb & Davidson, 2006; McLellan, MacQueen, & Neidig, 2003), propõe-se um procedimento baseado em seis etapas, a saber: preparar, conhecer, escrever, editar, rever e finalizar, que serão apresentadas seguidamente (acompanhadas por exemplos apresentados na Tabela 1).

Etapa 1. Preparar

Numa fase inicial, é essencial assegurar um conjunto de diligências básicas, para garantir que não ocorrerão percalços ao longo do processo. Neste sentido, é fundamental: Realizar cópias de segurança das gravações e manter as gravações originais em diferentes dispositivos de armazenamento; Criar um sistema de identificação que permita associar o ficheiro da gravação ao documento da transcrição (Tabela 1); Definir o local onde será armazenado o material para a transcrição, bem como o que desta resultar. Atualmente, com a dispersão do material em múltiplos dispositivos móveis (e.g., pens) e online (e.g., clouds), é importante ter especial cuidado com a partilha da informação, devendo garantir-se que nenhum elemento externo tem acesso aos conteúdos; Reunir os materiais necessários para a transcrição: obviamente é essencial ter acesso às gravações e a um dispositivo para as ouvir. Quando se opta por transcrever sem recurso a tecnologias, apenas será necessária a utilização de papel e caneta/lápis; contudo, o recurso a tecnologias é a estratégia mais comum e requer um computador e um processador de texto (e.g., Microsoft® Word). Opcionalmente, poderá recorrer-se à utilização de auscultadores, do pedal, e do rato e teclados externos (no caso dos computadores portáteis). Além disso, o recurso a softwares específicos poderá ser vantajoso, uma vez que disponibilizam um conjunto de ferramentas que facilitam e agilizam a tarefa. O NCH® Express Scribe é um destes softwares, que apresenta vantagens muito atrativas: é uma ferramenta gratuita e acessível online, permite trabalhar numa única janela e possui diversos comandos que possibilitam, entre outros, a realizações de pausas e repetições automáticas e a lentificação da velocidade do som; Elaborar a folha de rosto (McLellan et al. 2003), contendo informações básicas sobre o contexto da entrevista e o entrevistado, de modo a facilitar o primeiro contacto do transcritor com a gravação. Além disso, a folha de rosto pode igualmente funcionar com um meio de comunicação entre o entrevistador e o transcritor (Tabela 1); Identificar o entrevistador e o entrevistado e selecionar um esquema de transcrição: dado que existem diferentes formas de identificar os envolvidos numa entrevista e a sua interação, é essencial definir previamente os esquemas a implementar (Tabela 1); Definir o tipo de transcrição a realizar, nomeadamente naturalista versus não naturalista, já que resultarão em produtos necessariamente diferentes. Enquanto alguns autores consideram que a maioria das análises qualitativas não beneficia de uma transcrição contendo pausas, falsos inícios, repetições de frases, interrupções, ou encorajamentos, e advogam a sua exclusão (Sandelowski, 1994), de modo a garantir que o processo de transcrição se foca na exatidão do conteúdo da informação (Stuckey, 2014); outros autores recomendam a inclusão de informação contextual e informação não-verbal, pois acreditam que o que não é dito é tão relevante quanto o que é efetivamente dito (Bazeley, 2013; Richards, 2014). Tal como McLellan et al. (2003), considera-se que o conteúdo a incluir deve derivar da questão de investigação e do método de análise de dados, devendo ser definido, de acordo com os mesmos, quais os aspetos com relevância para a transcrição (Tabela 1).

Etapa 2. Conhecer

Depois da fase preparatória e antes de avançar para a escrita, é benéfico dedicar algum tempo a conhecer e a familiarizar-se com alguns materiais e informações, recorrendo à: Organização das notas de campo recolhidas pelo entrevistador, que devem ser lidas e analisadas com particular atenção, pois poderão incluir pistas e informações úteis no momento de transcrever; Audição repetida (no mínimo duas vezes) da gravação na íntegra (e.g., Bailey, 2008). Tal, ajudará na familiarização não só com os conteúdos, como também na habituação a particularidades discursivas dos envolvidos; Anotação de indicações ou dados que possam ser úteis quando se começar a escrever, tais como nomes ou terminologias específicas.

Etapa 3: Escrever

Esta fase corresponde ao ato de transcrever propriamente dito. Com vista à agilização do processo de escrita, o objetivo é simplesmente ouvir e escrever; por isso, nesta fase é aconselhável: Ignorar a colocação de pontuação, de maiúsculas ou minúsculas, na ocorrência de interações não-verbais entre o entrevistador e o entrevistado, assim como os aspetos emocionais (caso sejam para preservar); Recorrer ao codebook sempre que necessário. O codebook é uma ferramenta essencial no processo de transcrição (e.g., Bailey, 2008; Davidson, 2009; Oliver et al., 2005), pois permite uniformizar procedimentos e formas de escrever aquilo que é menos objetivo; por exemplo, como abordar um silêncio ou conversas cruzadas. Importa referir que embora o codebook seja definido numa fase precoce do processo, pode ser sujeito a atualizações sempre que for necessário. A título exemplificativo, uma vez que não há codebooks universais (McLellan et al., 2003), alguns códigos utilizados são apresentados na Tabela 2; Lidar com as questões da confidencialidade e das questões sensíveis: não raras vezes, as entrevistas contêm informações que poderão permitir identificar as pessoas envolvidas ou as situações específicas. Nestes casos, é preponderante implementar estratégias que permitam manter o conteúdo relevante, salvaguardando o não-reconhecimento de pessoas ou de situações (Tabela 1); Evitar bloqueios: quando surgem dificuldades em compreender a gravação pode estipular-se o número máximo de vezes que se repete o excerto (e.g., apenas três vezes) e caso este esforço seja infrutífero deve-se assinalar no texto o referido segmento e, de seguida, questionar o entrevistador acerca do conteúdo (sendo que este terá maior facilidade em recordar a entrevista quanto mais curto for o intervalo entre a realização e a transcrição da mesma).

Por fim, importa enfatizar a importância de não alterar o conteúdo e/ou a intenção do que é dito (e.g, acrescentar palavras ao discurso).

Etapa 4. Editar

Nesta etapa a atenção dirige-se para a edição do texto resultante da etapa anterior, o que implica: Colocar a pontuação, que se configura como um desafio excecional, já que envolve determinar onde é necessária, de modo a não alterar a intenção ou a enfatizar uma resposta (ou parte desta) indevidamente (McLellan et al., 2003); Diferenciar maiúsculas e minúsculas; Reter aspetos emocionais e não-verbais (quando aplicável): Uma vez mais, esta tarefa deverá ser realizada com bastante cuidado, dado que a representação pode alterar a interpretação de um segmento de texto (Stuckey, 2014); Lidar com erros da oralidade: o discurso oral é suscetível à ocorrência de erros gramaticais, sintáticos ou de prosódia e, como tal, não raras vezes, o transcritor defronta-se com erros demasiado flagrantes (que até podem criar algum incómodo ou tornar-se distratores). Basicamente, há duas opções para lidar com os erros da oralidade: Ignorar ou corrigir, sendo que esta decisão pode (e deve) ser explicitada na folha de rosto. Embora possa parecer um pormenor, na verdade, em determinados contextos e face a certos objetivos, a adequação e correção do discurso oral pode configurar-se como uma variável relevante, enquanto noutros casos poderá não ter qualquer interesse. Independentemente da estratégia, é importante salvaguardar a igualdade no tratamento dos intervenientes, corrigindo ou mantendo quer as intervenções do entrevistador, quer as do entrevistado (Oliver et al., 2005); Formatar o documento de acordo com as regras acordadas previamente (Tabela 1).

Etapa 5. Rever

Nesta etapa, procede-se à comparação do texto resultante da transcrição com a respetiva gravação, permitindo assegurar a exatidão da informação transcrita. Assim, para assegurar uma boa revisão é importante: Que para além do transcritor, outras pessoas participem na tarefa - idealmente o entrevistador ou quando não for viável outro elemento altamente familiarizado não só com o protocolo de transcrição, como também com a temática (McLellan et al., 2003); Comparar a transcrição com as notas de campo, despistando pontos de discordância.

Etapa 6. Finalizar

Após a revisão da transcrição, importa atentar a duas questões, nomeadamente: O que fazer com as gravações? Frequentemente os dados referem-se a pessoas e às suas histórias de vida, comportamentos, opiniões, emoções, etecetera, ou seja, trata-se de informação potencialmente sensível, que importa salvaguardar e que poderá ser particularmente ameaçada pela existência de gravações áudio. Por isso, a solução ideal consiste em apagar ou destruir as gravações. Em algumas situações, devem ser conservadas durante um período de tempo pré-definido, garantindo que são guardadas num local seguro e de acesso condicionado, até poderem ser destruídas (McLellan et al., 2003); É preferível ter uma ou duas versões da transcrição? Como referido anteriormente, as transcrições poderão variar na quantidade e qualidade da informação retida. Em alguns casos, tal como sugerido por Oliver et al. (2005), pode optar-se por realizar duas versões: versão integral (que pode incluir conteúdo verbal, não verbal e ocorrências ao longo da entrevista) versus versão de trabalho (na qual são omitidas informações consideradas irrelevantes face aos objetivos). A criação de duas versões implica, necessariamente, maior morosidade e trabalho adicional; contudo, na ausência das gravações, permitirá retroceder e consultar a versão integral, sempre que for necessário e/ou relevante.

Desafios

Considerando as orientações anteriores, transcrever não é necessariamente uma tarefa que exija um elevado grau de especialização, o que não significa que seja uma tarefa fácil. Bem pelo contrário, habitualmente envolve custos temporais, físicos e humanos muito significativos (Halcomb & Davidson, 2006). Reconhecendo que cada experiência de transcrição apresenta as suas especificidades e, por inerência, coloca dificuldades singulares, há uma panóplia de desafios e obstáculos que, dada a sua recorrência, poderão ser antecipados, ponderados e solucionados, evitando, assim, que atrasem ou bloqueiem a prossecução da tarefa.

Entre os principais desafios, destacam-se a qualidade e volume da própria gravação, mas também aspetos contextuais, tais como o ruído de fundo, as interferências ou outros sons (e.g., porta que se abre; Bailey, 2008). No que concerne aos intervenientes, importa ressalvar as características do discurso, como, por exemplo, diferentes pronúncias, presença de regionalismos, ou pausas constantes. Para além destas, as conversas cruzadas ou sobrepostas, as frases incompletas, a omissão ou o acrescento de letras em palavras e a ausência de um término claro das ideias são também dificuldades enfrentadas quando se transcreve uma entrevista (McLellan et al., 2003).

Provavelmente, o maior desafio da transcrição prende-se com a quantidade de tempo envolvido, que, embora seja bastante variável, é sempre desproporcional relativamente à duração da gravação. Por exemplo, de acordo com Bailey (2008), 1 hora de gravação pode demorar 3 horas a ser transcrita se apenas se escrever o que é dito ou 10 horas se se registar de forma detalhada o que é dito, como é dito e em que contexto. As variáveis experiência prévia e treino influenciam significativamente a relação entre a duração da entrevista e o tempo necessário para a transcrever. Apesar disso, é inegável que a elevada quantidade de tempo requerida contribui para que seja não só percecionada como entediante, como também se torne fisicamente desgastante (e.g., envolve várias horas na mesma posição, implica elevados níveis de concentração e atenção). Face a esta realidade, importa prestar especial cuidado ao local e às condições em que se realiza a tarefa, assegurando aspetos básicos, como o conforto, a luminosidade ou a realização regular de pausas.

 

Conclusão

Após revisitar as principais questões conceptuais, orientações práticas e desafios inerentes à transcrição de entrevistas, torna-se evidente que a tarefa consiste num processo pautado por múltiplas e variadas tomadas de decisão (muitas vezes implícitas), que foram explicitadas nas secções anteriores. Para terminar, mais relevante que apresentar o produto, importa tecer algumas considerações sobre o processo.

Em primeiro lugar, importa reconhecer que não há regras nem protocolos universais para realizar transcrições, bem pelo contrário, transcrever é uma tarefa bastante eclética, que exige que as pessoas envolvidas compreendam, estabeleçam e assumam um conjunto de princípios e práticas, na tentativa de harmonizar as transcrições e, consequentemente, evitar desperdícios de tempo, de trabalho e conflitos interpessoais.

Por fim, importa identificar as implicações e recomendações para a teoria, prática e investigação. Embora transcrever possa parecer uma tarefa menor, de transição entre etapas primárias, a verdade é que as transcrições são poderosas (quer a montante, quer a jusante). Neste sentido, recomenda-se a valorização do tema quer do ponto de vista teórico (i.e., maior número de publicações; enfoque mais especializado), quer do ponto de vista prático (i.e., explicitação clara dos procedimentos e decisões, potenciais repercussões das mesmas). Além disso, importa reconhecer as implicações óbvias ao nível da investigação, dado que a qualidade da análise dos dados está intimamente relacionada com a qualidade da transcrição.

Em síntese, reconhecendo, por um lado, a inexistência de protocolos ou regras universais para transcrever e, por outro lado, dado o carácter interpretativo e transformativo da tarefa, torna-se fundamental que os investigadores explicitem as suas práticas e decisões.

 

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Este artigo foi realizado no Centro de Investigação em Psicologia (UID/PSI/01662/2013), Universidade do Minho, e foi financeiramente suportado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia e pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, através de fundos nacionais, e co-financiado pelo FEDER, através do COMPETE2020, no âmbito do acordo Portugal 2020 (POCI-01-0145-FEDER-007653).

 

Recebido para publicação em: 06.03.17

Aceite para publicação em: 22.05.17

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