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Revista de Enfermagem Referência

versão impressa ISSN 0874-0283versão On-line ISSN 2182-2883

Rev. Enf. Ref. vol.serV no.7 Coimbra set. 2021  Epub 05-Nov-2021

https://doi.org/10.12707/rv20129 

Artigo de Investigação (Original)

O tratamento diretamente observado na estratégia de controlo da tuberculose em Portugal

Directly observed therapy in the tuberculosis control strategy in Portugal

El tratamiento observado directamente en la estrategia de control de la tuberculosis en PortugalMaria Isabel

Pereira da Silva1 
http://orcid.org/0000-0003-3817-1721

Beatriz Rodrigues Araújo2 
http://orcid.org/0000-0003-0266-2449

João Manuel da Costa Amado2 
http://orcid.org/0000-0003-0358-7970

1 Universidade Católica Portuguesa, Instituto de Ciências da Saúde, Porto, Portugal

2 Universidade Católica Portuguesa, Instituto de Ciências da Saúde, Centro de Investigação Interdisciplinar em Saúde, Porto, Portugal


Resumo

Enquadramento:

A tuberculose, como problema de saúde à escala global, requer um tratamento eficaz. A World Health Organization recomenda a toma da medicação de forma supervisionada e personalizada. Portugal aderiu a esta estratégia, não se tendo identificado estudos desta problemática.

Objetivo:

descrever as implicações do tratamento diretamente observado (TDO) no controlo da tuberculose, em Portugal.

Metodologia:

Estudo exploratório e descritivo, numa amostra de 303 pessoas com tuberculose pulmonar, em centros de diagnóstico pneumológico da região Norte de Portugal, entre março de 2019 e janeiro de 2020.

Resultados:

A TDO é a modalidade de tratamento em 88,1% da amostra. A maioria dos participantes (75,9% das mulheres e 66,3% dos homens) fazem o tratamento sob supervisão do enfermeiro, nas unidades de saúde. As suas expectativas individuais não parecem ser priorizadas. A tomada de decisão sobre a estratégia aplicada surge centrada nos profissionais de saúde e não aparenta privilegiar a participação da pessoa doente.

Conclusão:

A modalidade TDO, apresenta-se como fonte de insatisfação, potencia o agravamento dos recursos económicos da pessoa doente e do estigma social.

Palavras-chave: tuberculose; tratamento; cuidados de saúde primários; enfermagem

Abstract

Background:

Tuberculosis is a global health problem that requires effective treatment. The World Health Organization (WHO) recommends that treatment should be tailored and supervised. Portugal has adhered to this strategy, but no studies on this issue were identified.

Objective:

To describe the implications of Directly Observed Therapy (DOT) for tuberculosis control in Portugal.

Methodology:

Exploratory and descriptive study with a sample of 303 people suffering from pulmonary tuberculosis, in Pulmonary Diagnostic Centers, in Northern Portugal, between March 2019 and January 2020.

Results:

DOT was the treatment modality used in 88.1% of the sample. Most participants (75.9% of women and 66.3% of men) received treatment under the supervision of a nurse in the health care units. Patients’ expectations do not seem to be a priority. Decision-making regarding the adopted strategy is left to the health professionals and does not seem to prioritize the patient’s participation.

Conclusion:

The DOT modality is a source of dissatisfaction, aggravates patients’ financial burden, and promotes social stigma.

Keywords: tuberculosis; treatment; primary health care; nursing

Resumen

Marco contextual:

La tuberculosis, como problema de salud mundial, requiere un tratamiento eficaz. La Organización Mundial de la Salud recomienda tomar la medicación de forma supervisada y personalizada. Portugal se ha adherido a esta estrategia, aunque no se ha identificado ningún estudio al respecto.

Objetivo:

Describir las implicaciones del tratamiento observado directamente (TDO) para el control de la tuberculosis en Portugal.

Metodología:

Estudio exploratorio y descriptivo, en una muestra de 303 personas con tuberculosis pulmonar, en centros de diagnóstico neumológico de la región norte de Portugal, entre marzo de 2019 y enero de 2020.

Resultados:

El TDO es la modalidad de tratamiento en el 88,1% de la muestra. La mayoría de los participantes (el 75,9% de las mujeres y el 66,3% de los hombres) realizan el tratamiento con la supervisión del enfermero, en las unidades sanitarias. No parece que se prioricen sus expectativas individuales. La toma de decisiones sobre la estrategia aplicada parece centrada en los profesionales sanitarios y no parece priorizar la participación de la persona enferma.

Conclusión:

La modalidad de TDO se presenta como una fuente de insatisfacción, potencia el empeoramiento de los recursos económicos de la persona enferma y el estigma social.

Palabras clave: tuberculosis; tratamiento; atención primaria de salud; enfermería

Introdução

A tuberculose, doença infecciosa que pode ser contagiosa se apresentada na sua forma pulmonar, continua a ser responsável por uma alta taxa de mortalidade e morbilidade a nível mundial. Apesar de ser um problema de saúde pública a nível mundial, ela é curável e evitável. Em 2019 estima-se terem surgido 10 milhões de novos casos e que tenham morrido, em todo o mundo, cerca de 1,2 milhões de pessoas. É urgente quebrar o ciclo de transmissão desta doença, para o qual contribui o cumprimento integral pela pessoa doente, do tratamento instituído (World Health Organization [WHO], 2020).

Não obstante em Portugal se verificar uma evolução positiva, parece não estar a ser cumprido o que seria expectável até 2030 (Serviço Nacional de Saúde [SNS], 2019).

O controlo da tuberculose não pode restringir o seu foco a questões meramente relacionadas com aspetos económicos e a taxas de tratamento e de cura, é importante identificar e considerar aspetos relacionados com a pessoa doente que possam interferir com o tratamento (WHO, 2020).

Não foram identificados estudos em Portugal que analisassem a problemática da tuberculose em Portugal, na vertente da modalidade de tratamento instituído e da perceção da pessoa doente envolvida. Desta forma, considera-se pertinente investigar sobre esta área. O conhecimento desses fatores ajudará a avaliar e a orientar ações no âmbito da organização, planeamento e operacionalização dos cuidados de enfermagem. Uma compreensão abrangente e holística das questões relacionadas com a pessoa doente e o tratamento poderão contribuir para a definição de um plano de tratamento individualizado. O estudo tem como objetivo descrever as implicações do tratamento diretamente observado (TDO) no controlo da tuberculose, em Portugal.

Enquadramento

A tuberculose, considerada pela WHO uma emergência global, continua a ser um problema de saúde pública (WHO, 2020).

A Directly Observed Therapy Short Course (DOTS), estratégia reconhecida como eficaz no combate à epidemia, foi recomendada a todos os países. É constituída essencialmente por cinco componentes, consideradas como pontos-chave: compromisso político sustentado; deteção massiva de casos; quimioterapia padronizada em regimes de curta duração, incluindo a toma diretamente observada (TDO); fornecimento ininterrupto de medicação; sistema de registo de informação que permita conhecer a evolução da doença e os resultados do tratamento (WHO, 1999).

Sendo uma doença infeciosa, pode ser contagiosa. O seu contágio faz-se através dos bacilos que são expelidos por pessoas doentes e inalados pelos seus contactos. Inicia-se assim a cadeia de transmissão (Direção-Geral da Saúde [DGS], Programa Nacional para a Tuberculose, 2016). Para ajudar a interromper esta cadeia de transmissão, é necessário que o tratamento seja feito de forma eficaz.

Há fortes evidências de que muitos indivíduos submetidos a tratamentos prolongados (como é o caso da tuberculose) têm dificuldade em aderir aos esquemas terapêuticos recomendados, o que leva a uma deficiente gestão e controlo da doença. No caso da tuberculose, os medicamentos só podem ser eficazes se forem devidamente tomados (O’Boyle et al., 2002), e a investigação sugere que existem problemas de adesão em todas as situações em que a autoadministração do tratamento é necessária. A toma da medicação sob observação de um colaborador é essencial para garantir que os medicamentos sejam tomados nas combinações certas e pelo tempo previsto (DGS, Programa Nacional para a Tuberculose, 2016). Dependendo das especificidades individuais, a observação deve ser feita por uma pessoa que seja acessível e aceite pela pessoa doente e que se comprometa com os serviços de saúde (WHO, 1999).

Apesar da sua ampla divulgação como estratégia de tratamento recomendada, as evidências científicas não são, no entanto, concordantes, relativamente à superioridade da sua eficácia e eficiência.

Os estudos que se debruçam sobre o conceito da TDO e sobre os fatores que contribuem para a não adesão da pessoa doente ao tratamento são diversos. Desde 1993 que se assiste ao levantar de questões sobre a DOTS e sobre um dos seus elementos, a TDO, como método recomendado pela WHO (Frieden & Sbarbaro, 2007).

Também se identificaram estudos direcionados para os direitos humanos a partir da perspetiva das atuais atividades de controlo da tuberculose, os quais põem à consideração vários conceitos, tais como: estigma, tratamento, adesão ao tratamento, limitações de liberdade, condições de vida, entre outros (Balasubramanian et al., 2000; Chakrabartty et al., 2019; Pronyk & Porter, 1996).

Portugal também adotou as recomendações da WHO. Reforçou o controlo da tuberculose através da criação do Programa Nacional de Luta Contra a Tuberculose, adotando a estratégia DOTS. A prestação de cuidados e o planeamento da política nacional de saúde ficaram tendencialmente centrados nos cuidados de saúde primários, tendo como pilares os centros de diagnóstico pneumológico (CDP; DGS, Programa Nacional para a Tuberculose, 2016).

A fim de atingir as metas e face aos progressivos e novos desafios, os programas da tuberculose foram-se atualizando e ajustando às orientações da WHO. Novas diretrizes foram sendo divulgadas, reforçando e tornando mais consistentes as anteriores. No que se relaciona com quimioterapia padronizada de curta duração, esta deverá ser administrada em condições de gestão adequadas, incluindo a TDO, com suporte técnico e social sólidos (Magalhães et al., 2013). Pelas orientações emanadas, cabe ao enfermeiro um papel importante nesta estratégia de combate à doença. É assim que à luz da Ordem dos Enfermeiros (OE), o “enfermeiro surge na linha da frente no concretizar de um tratamento . . . considerando sempre, uma abordagem centrada no doente” (OE, 2013, p.12).

Desde 2015 que Portugal apresenta diminuição da taxa de notificação, situando-se a taxa de incidência, em 2018, abaixo dos 20/100.000 habitantes. Os distritos de Porto e Lisboa foram os que registaram mais alta taxa de notificação, mantendo-se acima dos 20 casos por 100 mil habitantes, conferindo-lhe assim um perfil associado aos grandes centros urbanos (DGS, 2018).

Portugal, apesar de ter aderido à estratégia DOTS desde 1995 e de apresentar uma evolução positiva, está em risco de não cumprir com as metas propostas pela WHO até 2030 (SNS, 2019). Neste âmbito, não se identificaram estudos efetuados em Portugal com produção de resultados relativos a esta área temática.

Questão de Investigação

Quais as implicações da TDO no controlo da tuberculose em Portugal?

Metodologia

Inserido num estudo mais amplo, foi realizado um estudo exploratório e descritivo, em CDP da região norte de Portugal, entre março de 2019 e janeiro de 2020.

A amostra, constituída por 303 participantes, foi selecionada pelo método não probabilístico acidental ou de conveniência e obedeceu aos seguintes critérios de inclusão: ter tuberculose pulmonar; estar em tratamento há pelo menos um mês ou em follow-up; ter idade igual ou superior a 18 anos.

A informação foi recolhida pelos enfermeiros dos CDP através de um formulário de autopreenchimento, constituído por 32 questões de escolha múltipla e três questões de resposta aberta. O formulário foi submetido a pré-teste numa amostra de 33 participantes, englobando enfermeiros e médicos com experiência em tratamento de tuberculose e pessoas já submetidas a tratamento da doença. As áreas que constituem o formulário emergiram não só de áreas referidas na literatura nacional e internacional (e que são referidas como fatores associados à problemática da tuberculose pulmonar), mas também das sugestões advindas do pré-teste.

Neste estudo, foram analisadas as respostas relacionadas com a modalidade de tratamento instituído, com o envolvimento da pessoa doente na modalidade adotada, que motivos são referidos e que indiquem se e porque a modalidade a si aplicada corresponde às suas expectativas, e que a possam levar a desistir do tratamento.

Os dados quantitativos foram tratados com recurso ao IBM SPSS Statistics para Windows, versão 26.0. Para análise e apresentação dos dados utilizaram-se medidas de estatística descritiva, particularmente medidas de tendência central. Os dados qualitativos foram analisados pela técnica de análise de conteúdo temática (Bardin, 2016).

A recolha de dados ocorreu após parecer favorável da Comissão de Ética para a Saúde da Administração Regional de Saúde do Norte, I.P., Porto, sob o número 021/2019 e consentimento informado assinado pelos participantes.

Há compromisso dos investigadores no respeito pela privacidade, confidencialidade e anonimato, quer dos participantes, quer das instituições, quer dos dados recolhidos. Está igualmente garantido o uso exclusivo dos dados recolhidos para o presente estudo.

Resultados

Participaram 303 pessoas, todas com tuberculose pulmonar. Neste estudo, os homens são mais afetados (61,7%; n = 187) que as mulheres (38,3%; n = 116). A faixa etária dos 30-49 anos é mais representativa nas mulheres (n = 58; 50%), ao passo que nos homens destaca-se a faixa etária dos 50-69 anos (n = 97; 51,9%).

Considerando cada grupo como um todo, a média de idades dos homens é de 46,8 anos (DP = 16,21; Mín = 18; Máx = 87) e das mulheres é de 51,2 anos (DP = 13,47; Mín = 18; Máx = 82).

No universo dos participantes e considerando os dois grupos (homens e mulheres), 51,8% eram casados e, no que se relaciona com a sua situação laboral, 60,4% encontravam-se profissionalmente ativos.

Relativamente à fase da recolha da informação e a fase de tratamento da doença que cada participante se encontrava, esta situou-se, no caso das mulheres, entre o segundo e quarto mês de tratamento e nos homens, 6 ou mais meses, estando incluída a fase de follow-up.

Da análise dos dados apresentados na Tabela 1, identificamos que a grande maioria dos participantes (90,1%) referiu ser a primeira vez que tinham tuberculose.

Tabela 1: Distribuição das respostas relacionadas com a toma da medicação, segundo o sexo 

Mulheres Homens
n % n %
+ Local da Toma da mediação
Unidade de Saúde, todo o tratamento. 88 75,9 124 66,3
Domicílio primeiros 2 meses, por enfermeiro. Restante foi/é na unidade de saúde. 14 12,1 41 21,9
Outros 14 12,0 22 11,8
Total 116 100% 187 100%
+ Negociação da Modalidade e o local da toma da medicação
Negociado consigo 21 18,1 38 20,3
Não foi negociado 89 76,7 136 72,7
Não sabe 6 5,2 13 7,0
Total 116 100% 187 100%
+ Possibilidade de escolher onde tomar a medicação
Sim 31 26,7 52 27,8
Não 81 69,9 128 68,5
Não sabe 4 3,4 7 3,7
Total 116 100% 187 100%
+ A modalidade de toma corresponde às suas expectativas
Sim 39 33,6 71 38,0
Não 25 21,5 26 13,9
Não sabe 52 44,9 90 48,1
Total 116 100% 187 100%
+ Alguma vez pensou em desistir do tratamento?
Sim 22 19,0 18 9,6
Não 90 77,6 157 84,0
Não sabe 4 3,4 12 6,4
Total 116 100% 187 100%

A modalidade de tratamento foi, em 88,1% (n = 267) dos casos, supervisionada pelo enfermeiro, durante todo o tratamento. A toma da medicação foi feita, para a maior parte das mulheres (75,9%) e dos homens (66,3%), na unidade de saúde, todo o período de tratamento. A toma da medicação foi supervisionada pelo enfermeiro, em contexto de domicílio nos dois primeiros meses de tratamento, em 12,1% das mulheres e 21,9% dos homens. O restante período de tratamento foi feito na unidade de saúde.

A modalidade e o local da toma da medicação não foram negociadas, em 76,7% (n = 89) das mulheres e em 72,7% (n = 136) dos homens. Também a maioria das mulheres (69,8%; n = 81) e dos homens (68,4%; n = 128) não tiveram possibilidade de escolher o local da toma da sua medicação. Só 33,6% (n = 39) das mulheres e 38% (n = 71) dos homens refere que a modalidade de tratamento corresponde às suas expectativas.

Verifica-se, ainda, que 19% das mulheres e 9,6% dos homens pensaram em desistir do tratamento.

Das respostas à questão aberta relacionada com os motivos pelos quais a modalidade da toma da medicação não corresponde às expectativas dos participantes (Tabela 2), emergem três categorias: a Insatisfação com as orientações institucionais e que se relacionam com a modalidade da toma da medicação; Fatores económicos agravados, quer pelo tempo de ausência ao trabalho e pelos gastos diretos com o tratamento e por último, Potencia o estigma social, pela exposição da pessoa doente ao público, agravado quando o uso de máscara, pelo isolamento e vergonha e ainda pelas alterações psicológicas provocadas na pessoa doente.

Tabela 2: Implicações da modalidade de tratamento, segundo a amostra 

Discussão

O perfil dos participantes enquadra-se no perfil das pessoas com tuberculose, em Portugal (DGS, 2018). Todos tinham pelo menos 1 mês de tratamento. Três dados importantes emergem: A modalidade de TDO por um profissional de saúde, durante todo o tratamento, é a modalidade de eleição. Pela percentagem de respostas observadas, existem fortes evidências do não envolvimento da pessoa doente na tomada de decisão relativa ao plano do seu tratamento. Esta evidência poderá ainda ser sustentada pelo facto de a estratégia adotada não ter sido negociada, para a maioria das pessoas em tratamento, nem terem tido oportunidade de escolher o local onde cumprir a sua toma diária da medicação.

A tomada de decisão, relativa ao tratamento da pessoa doente, poderá evidenciar uma postura rígida, diretiva e altamente controladora dos profissionais de saúde, remetendo a pessoa doente para um mero papel recetor do tratamento que lhe é instituído. Talvez esta seja a visão dos profissionais de enfermagem no que se relaciona com a garantia do total cumprimento do esquema da toma da medicação prescrita.

Alguns autores consideram a adesão ao tratamento uma cadeia de responsabilidades, a qual inclui, de entre outros elementos, o comportamento dos utentes, a conduta dos profissionais de saúde e as respetivas tomadas de decisão (Tavares et al., 2016).

Em Portugal, a TDO é a modalidade recomendada pela DGS e, embora seja aparentemente eficaz, não parece ser compreendida e aceite pelas pessoas doentes (DGS, 2016). O esforço económico adicional, relacionado com a não participação da pessoa doente no seu processo de tratamento é, marcado pela obrigatoriedade da modalidade de toma que lhe é estabelecida. Esta modalidade potencia a exposição da pessoa doente ao público em geral e, para além de ser fonte de denúncia da sua situação de pessoa doente, potencia o estigma social.

Estudos relativamente à TDO não apresentam conclusões convergentes no que se refere à superioridade da sua eficácia e eficiência, relativamente a outras modalidades (McLaren et al., 2016). Outros estudos apontam para melhores resultados, se aplicada a modalidade TDO (Yin et al., 2016). Por seu lado, outros não encontraram evidências convincentes de que a modalidade TDO alcance mais sucesso no tratamento do que a autoadministração (Tian et al., 2014). Conclusões semelhantes são por outros autores apresentadas e demonstraram que a descentralização dos cuidados e cuidados centrados no doente melhoram os resultados do tratamento, se adaptado às condições da comunidade local (Zhang et al., 2016).

Face às opiniões dos participantes, poderemos estar perante um modelo biomédico onde as características da doença são o centro da atenção médica em detrimento da pessoa que está doente. As categorias que emergiram das respostas à questão aberta direcionam-se para a expectativa da pessoa doente em ser um parceiro ativo no seu próprio tratamento. Este dado revela-se na insatisfação com as orientações institucionais referentes à modalidade do seu tratamento e reflete-se na perceção de que não acreditam nele e não é envolvido(a) na decisão: “Não esperava que fosse a enfermeira a fazer todo o tratamento” (Q76); “Porque não posso ser eu a tomar?” (Q94); “considero-me responsável” (Q103); “Não falhei . . . porque tenho de ir todos os dias à Unidade de Saúde? (Q109); “Eu não concordo que me obriguem a ir todos os dias à enfermeira tomar a medicação” (Q163); “Porquê? Porquê a regra de que não posso ser eu a tomar em casa? (Q210).

Esta modalidade de tratamento mostra-se ainda como um fator que contribui para o agravamento da situação económico-financeira da pessoa doente e da família, porque obriga à ausência prolongada ao trabalho e, por consequência, à diminuição do rendimento familiar: “Eu preciso ir trabalhar, a baixa não dá nada” (Q32); “Podiam-me deixar ser eu a tomar . . . podia ir trabalhar, precisamos de dinheiro” (Q99), ao aumento dos gastos de dinheiro: “Obriga-me a gastar muito dinheiro para lá ir” (Q199); “Por causa da deslocação diária ao centro de saúde” (Q245) e de tempo “. . . tempo despendido. . .” (Q268) e, ainda, promove e potencializa o estigma social “ Toda a gente me vê e, vê logo a doença que eu tenho…fogem de mim” (Q291) “tenho vergonha porque me vejam com máscara…toda a gente fica a olhar” (Q254)

Será que podemos dizer que se coloca em questão o reconhecimento do outro, do utente, como parceiro no processo terapêutico e o direito inerente à participação na decisão sobre a sua doença?

Da nossa reflexão relativa à aplicação da modalidade da toma, parece-nos que a mesma se nos apresenta como algo imposto, em detrimento da colaboração ativa da pessoa doente e do seu direito a participar no seu tratamento. Parece-nos igualmente que a modalidade adotada é vista simplesmente como um mecanismo gerador de eficiência, sabendo-se limitativa da capacidade de exercício de direitos das pessoas, ao circunscrever a promoção do autocuidado em seres humanos e não apenas em pessoas doentes.

Podemos efetivamente estar no limite de um conflito entre dois direitos. Por um lado, o direito da pessoa doente participar ativamente no seu tratamento; por outro, as recomendações internacionais que sugerem a aplicação da norma da TOD, em benefício de um bem maior, que é o risco de saúde pública.

Não obstante, quando emana a obrigação que se impõe ao utente de se deslocar ao centro de saúde para tomar a medicação “ Não entendo estas maneira de obrigar as pessoas a ir tomar os medicamentos ao centro de saúde” (Q41); “me obriguem a ir todos os dias à enfermeira tomar a medicação” (Q163), devemo-nos reportar para o estatuto do utente, ou seja, para o direito do utente ao sigilo quanto à sua informação de saúde e reserva da vida privada, o que pode estar em causa quando uma pessoa se desloca diariamente a determinado serviço de saúde para tomar medicação e se expõe ao público em geral: “obrigam-me a ir ao centro aonde toda a gente me conhece pelo meu trabalho que faço” (Q96), “Tenho vergonha porque me veem com máscara . . . toda a gente fica a olhar” (Q254). A situação pode constituir um agravar do estigma social da doença. Fazendo uso da opinião de Sontag, a doença é como uma metáfora: consiste em dar a uma coisa o nome de outra; e as metáforas contribuem para a estigmatização de certas doenças, como por exemplo a tuberculose, que isola a pessoa doente da comunidade, sendo esta encarada, de modo sentimental, uma identidade deteriorada, um mal incurável (Sontag, 2010).

Ainda no que se refere às expectativas, neste estudo, relacionam-se com a modalidade da toma da medicação: “Eu podia tomar em casa” (Q32), “Porquê a regra de que não posso ser eu a tomar em casa?”(Q210), as mesmas interrogações se colocam. Bandura define a expectativa de autoeficácia como o julgamento do sujeito sobre sua habilidade para desempenhar, com sucesso, um padrão específico de comportamento (Bandura, 1977): “considero-me responsável” (Q103).

Nesta linha de pensamento, o mesmo autor define a expectativa de autoeficácia para tomar medicamentos conforme a prescrição como a convicção na capacidade pessoal de controlar as circunstâncias que possam dificultar o seguimento regular da prescrição e realizar com sucesso tal comportamento (Bandura, 1977).

Este achado alerta para a importância de os prestadores de cuidados considerarem, desde a fase inicial da doença, as expetativas das pessoas. Motivar e comprometer as pessoas com o seu tratamento poderá ser um fator protetor e potencializador do cumprimento integral do tratamento instituído.

Se o TDO pelo enfermeiro é utilizado como recurso que garante o cumprimento integral do tratamento instituído, o envolvimento da pessoa doente no seu próprio tratamento, poderá ser uma estratégia integradora e alternativa, considerando que pessoas com elevada confiança nas suas capacidades abordam tarefas difíceis como desafios a serem superados, em vez de ameaças a serem evitadas (Bandura, 1977). Tal perspetiva eficaz promove o interesse intrínseco e a dedicação profunda nas atividades. Essas pessoas impõem a si próprias, objetivos desafiantes e mantêm forte compromisso com os mesmos.

Reportando os resultados do estudo e aos motivos que levaram a pensar em desistir do tratamento, pode identificar-se a falta de envolvimento da pessoa doente, percecionada pela própria pessoa em tratamento “Torna-se uma vida bastante aborrecida, mas é preciso ter motivação e fé para levar o tratamento até ao fim” (Q209). Tanto que, sendo o tratamento de duração prolongada: “porque é muito tempo, é tempo demais, é tempo excessivo” (Q301), identifica-se um esforço acrescido por parte da pessoa doente, no que se relaciona com motivação para continuar o tratamento, causando por vezes manifestações de ordem psíquica “depressão” (Q76); “Cansaço físico e mental” (Q163).

Compreender os comportamentos de proteção à saúde, como é o de adesão ao tratamento, e estabelecer e manter um nível elevado de motivação na pessoa em tratamento está descrito como ação de elevada relevância, na mudança de comportamento e na adesão ao tratamento. Estes fatores são referidos como essenciais para a recuperação (Bandura,1977). Estudos demonstram que a expectativa de autoeficácia é o principal preditor de sucesso no desempenho desses comportamentos, sendo fundamentais para a intervenção na área da adesão ao tratamento.

Conclusão

É importante perceber quais são as estratégias e as modalidades de tratamento que os profissionais de saúde estão dispostos a explorar, garantindo o cumprimento do plano medicamentoso instituído à pessoa doente com tuberculose. Compreender e atender às expectativas e motivações pessoais da pessoa doente poderá ser um importante contributo na definição dessas estratégias.

Da análise dos resultados obtidos, constata-se que a modalidade TDO é a modalidade de eleição na população estudada. Neste sentido, entende-se que é uma modalidade decidida pelos profissionais de saúde, com foco no cumprimento do plano medicamentoso instituído. No entanto, e face às questões que exploram o envolvimento e participação da pessoa doente, parece-nos pertinente refletir sobre o benefício em colocar a pessoa doente no centro do sistema de saúde. Assim, ganharíamos um forte parceiro no seu próprio processo de tratamento, em detrimento de mero recetor de cuidados ditados pelos profissionais de saúde. Sublinha-se, assim, a importância que os profissionais de saúde devem dar, no planeamento e abordagem das suas intervenções, aos valores, às expectativas e à capacidade das pessoas doentes, enquanto pessoas, em se responsabilizarem também por todo o seu processo de tratamento.

Não obstante não existir um modelo ideal que possa ser seguido por todos e para todos, de forma a garantir o cumprimento integral do tratamento, existem estratégias que podem ser adotadas, de forma personalizada, face às caraterísticas individuais de cada pessoa doente e também às características do profissional de saúde.

No contexto atual da organização dos cuidados, os profissionais de saúde tendem a adquirir um posicionamento de total orientação e responsabilidade de todo o processo de cuidados, não criando espaço para a partilha e o envolvimento das pessoas doentes nas tomadas de decisão. Foram identificados aspetos muito relevantes que podem interferir com todo o percurso do tratamento, as quais se relacionam com a pessoa doente, com a estratégia de tratamento instituída, com operacionalização do cuidado nos serviços de saúde e até mesmo com a fonte de estigma social. Relembra-se que a estratégia DOTS, da qual faz parte a modalidade TDO, reporta o seu início a meados da década dos anos 90. Assim, alguns procedimentos poderão necessitar de reavaliação e, eventualmente, de uma reflexão mais profunda sobre procedimentos mais inovadores, mais personalizados, cujo resultado possa ir ao encontro aos objetivos inscritos na estratégia DOTS.

Referências bibliográficas

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7Como citar este artigo: Silva, M. I., Araújo, B. R., & Amado, J. M. (2021). O tratamento diretamente observado na estratégia de controlo da tuberculose em Portugal. Revista de Enfermagem Referência, 5(7), e20129. https://doi.org/10.12707/RV20129

Recebido: 03 de Agosto de 2020; Aceito: 27 de Janeiro de 2021

Conceptualização: Silva, M. I. Araújo, B. R., Amado, J. M.

Tratamento de dados: Silva, M. I. Araújo, B. R., Amado, J. M.

Análise formal: Silva, M. I. Araújo, B. R., Amado, J. M.

Metodologia: Silva, M. I. Araújo, B. R., Amado, J. M.

Redação - rascunho original: Silva, M. I. Araújo, B. R., Amado, J. M.

Autor de correspondência Maria Isabel Pereira da Silva E-mail: misabelsilva101@gmail.com

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