SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.serVI número1Iatrogenias na prestação de cuidados de enfermagem: A perspetiva dos enfermeiros da área médico-cirúrgicaAvaliação do Journal Club como estratégia pedagógica na formação em enfermagem: Perspetiva dos estudantes índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Revista de Enfermagem Referência

versão impressa ISSN 0874-0283versão On-line ISSN 2182-2883

Rev. Enf. Ref. vol.serVI no.1 Coimbra dez. 2022  Epub 13-Jul-2022

https://doi.org/10.12707/rv21109 

Artigo de Investigação (Original)

Saúde mental em estudantes do ensino superior politécnico na pandemia COVID-19

The mental health of polytechnic higher education students in the COVID-19 pandemic

Salud mental de los estudiantes de educación superior politécnica en la pandemia COVID-19

1 Instituto Politécnico de Viseu, Escola Superior de Educação (ESEV-IPV), Viseu, Portugal

2 Centro de Investigação em Tecnologias e Serviços de Saúde (CINTESIS), Porto, Portugal

3 Centro de Estudos em Educação e Inovação (CI&DEI), Viseu, Portugal

4 Instituto Politécnico de Viseu, Escola Superior de Tecnologia e Gestão (ESTGV-IPV), Viseu, Portugal

5 Instituto de Saúde Ambiental (ISAMB), Lisboa, Portugal


Resumo

Enquadramento:

A pandemia mudou significativamente as rotinas sociais e académicas dos estudantes do ensino superior.

Objetivo:

Identificar os níveis de saúde mental de estudantes do ensino superior e fatores associados.

Metodologia:

Estudo transversal com amostra de conveniência de 567 estudantes (idade média 23,92, ± 8,36; 63,8% feminino), que responderam a um questionário online no início do segundo confinamento, que incluiu o General Health Questionnaire (GHQ-28), aspetos sociodemográficos, académicos e as principais mudanças ocorridas durante a pandemia.

Resultados:

A pontuação média do GHQ foi 29,18 (± 12,99) e as menores e as maiores pontuações médias foram obtidas nas subescalas depressão grave (3,55 ± 4,46) e disfunção social (11,44 ± 3,81), respetivamente. 60,5% registou risco para problemas mentais. Os participantes que identificam alterações laborais têm melhor saúde mental. Quem identifica alterações nas rotinas familiares tem maior sintomatologia depressiva e quem identifica alterações nas relações familiares maior sintomatologia ansiógena e insónia.

Conclusão:

Urge considerar a saúde mental dos estudantes, promovendo estratégias para minimizar o impacto da pandemia, nomeadamente na disfunção social.

Palavras-chave: saúde mental; COVID-19; ensino superior; estudantes

Abstract

Background:

The pandemic significantly changed social and academic routines of higher education students.

Objective:

Identify the mental health levels of higher education students and the associated factors.

Methods:

Cross-sectional study with a convenience sample of 567 students (mean age 23.92, ± 8.36; 63.8% female), that answered an online survey at the beginning of the second lockdown, which included the General Health Questionnaire (GHQ-28), sociodemographic and academic aspects, and main changes that occurred during the pandemic.

Results:

The mean score of the GHQ was 29.18 (±12.99) and the lowest and highest scores were obtained in severe depression (3.55±4.46) and social dysfunction (11.44±3.81). 60.5% indicated risk for mental problems. Participants identifying changes at labor level had better mental health. The ones identifying changes at familiar routines had higher depressive symptomatology and changes in familiar relationships had higher anxiety symptomatology and insomnia.

Conclusion:

It is urgent to consider the mental health of students, promoting strategies to minimize the impact of the pandemic, namely in social dysfunction.

Keywords: mental health; COVID-19; higher education; students

Resumen

Marco contextual:

La pandemia ha cambiado significativamente las rutinas sociales y académicas de los estudiantes de educación superior.

Objetivo:

Identificar los niveles de salud mental de los estudiantes de educación superior y los factores asociados.

Metodología:

Estudio transversal con una muestra de conveniencia de 567 estudiantes (edad media de 23,92, ± 8,36; 63,8% mujeres), que completaron un cuestionario en línea al inicio del segundo confinamiento, que incluía el Cuestionario de Salud General (GHQ-28), aspectos sociodemográficos y académicos, y los principales cambios ocurridos durante la pandemia.

Resultados:

La puntuación media del GHQ fue de 29,18 (± 12,99) y las puntuaciones medias más bajas y más altas se obtuvieron en las subescalas depresión grave (3,55 ± 4,46) y disfunción social (11,44 ± 3,81), respectivamente. El 60,5% registró riesgo de problemas mentales. Los participantes que identifican cambios en el trabajo tienen una mejor salud mental. Los que identifican cambios en las rutinas familiares tienen más síntomas depresivos y los que identifican cambios en las relaciones familiares tienen más síntomas de ansiedad e insomnio.

Conclusión:

Se debe considerar urgentemente la salud mental de los estudiantes, así como promover estrategias para minimizar el impacto de la pandemia, especialmente en la disfunción social.

Palabras clave: salud mental; COVID-19; educación superior; estudantes

Introdução

O ano de 2020 vai ficar marcado pelo aparecimento de uma pandemia que, apesar de ter tido origem ainda em 2019, na cidade de Wuhan na China, registou o primeiro caso em Portugal a março de 2020. No seu início foi apenas tratada como uma crise de saúde pública, tal como é, com ênfase nos problemas de saúde físicos a ela associados. Meses mais tarde, começou-se a considerar o seu impacto social e económico, fruto das consequências restritivas do confinamento, isolamento, quarentena, limitação à circulação e encerramento de estabelecimentos comerciais e de serviços. Surgiram também alertas para os efeitos destas mesmas medidas na saúde mental. Publicações que começam agora a surgir comprovam estas preocupações, com dados que assinalam o aumento dos problemas de saúde mental. Apesar da pandemia ter afetado a vida de praticamente todas as pessoas, os estudantes do ensino superior viram a sua rotina diária ser significativamente alterada, com interrupção de aulas presenciais e ensino à distância. Das principais fontes de stresse destes estudantes, fazem parte as preocupações com a saúde de familiares, com o encerramento do estabelecimento de ensino, perda de rotina e perda de contacto social (YoungMinds, 2020). Reconhecendo o impacto que a pandemia teve na vida dos estudantes do ensino superior e as suas possíveis repercussões na saúde mental, este estudo procura identificar os níveis de saúde mental de estudantes do ensino superior e fatores associados.

Enquadramento

O impacto da pandemia COVID-19 é evidente em todo o mundo a diversos níveis - sociais, financeiros e de saúde. A nível da saúde física os relatórios, muitas vezes diários, têm trazido ao conhecimento público informação atualizada em muitos países. No entanto, no que se refere à saúde mental os estudos têm sido mais escassos, nomeadamente em Portugal.

A Organização Mundial de Saúde define saúde mental como o “um estado de bem-estar em que os indivíduos reconhecem as suas capacidades, são capazes de lidar com o stresse normal da vida, trabalhar de forma produtiva e frutífera e contribuir para as suas comunidades” (World Health Organization [WHO], 2003, p. 7), considerando-a como essencial ao desenvolvimento do potencial humano e indissociável tanto da saúde como do bem-estar psicológico. Esta é influenciada pela etapa do ciclo vital e por uma multiplicidade de condições interdependentes (biológicas, psicossociais, culturais, ambientais), resultando do equilíbrio entre características individuais, condições de vida, comportamentos e da rede sociofamiliar, implicando que algumas destas variáveis se constituam como preditores de melhor ou pior saúde mental (WHO, 2012).

A saúde mental tem sido estudada com base num constructo bidimensional: uma dimensão positiva - Bem-Estar Psicológico; e uma negativa - Stresse Psicológico, esta última definida como um estado de sofrimento emocional caracterizado por sintomas de depressão e ansiedade, por vezes associados a queixas somáticas (Ware et al., 1984).

No que se refere à saúde mental durante a pandemia COVID-19, na maioria dos estudos, a análise é feita em toda a população ou em determinados grupos específicos, tais como doentes, profissionais da saúde, crianças e idosos.

No entanto, poucos estudos foram feitos no grupo de estudantes do ensino superior que viram todas as suas rotinas pessoais e académicas alteradas subitamente, podendo ser considerados grupos de alto risco para problemas de saúde mental. De acordo com a revisão da literatura de Kitzrow (2003), já anterior à pandemia, vários estudos apontavam que esta população apresentava um aumento significativo de problemas psicológicos graves nas últimas décadas. Esta situação foi sublinhada pelo relatório do American College Health Association (2020) que apontou que mais de um terço dos estudantes americanos tinham sido diagnosticados como tendo pelo menos um problema de saúde mental, sendo a ansiedade (27,7%) e a depressão (22,5%) os mais frequentemente reportados.

Num estudo com uma amostra de 560 estudantes portugueses do ensino superior, Nogueira e Sequeira (2020), ao analisarem preditores de saúde mental, constataram que o sexo feminino, o escalão etário mais alto de idade e o baixo nível socioeconómico se associam a níveis mais baixos de bem-estar psicológico, ao passo que ter uma relação de namoro satisfatória, melhor auto classificação no desempenho académico, praticar exercício físico, dormir sete ou mais horas e maior satisfação com o suporte social e vida académica se associam a valores mais elevados de bem-estar psicológico.

Considerando estes preditores e também o facto de o grupo das pessoas entre os 18 e os 30 terem sido as que demonstraram pior saúde mental em tempos de pandemia (Li & Wang, 2020), importa conhecer o impacto nos estudantes do ensino superior. Estima-se que 220 milhões de estudantes tenham sido afetados pela interrupção das aulas presenciais (Farnel et al., 2021). O ensino à distância e a reabertura das instituições em segurança têm sido os principais desafios das instituições e políticas educativas. Pouca tem sido a atenção dada por estes contextos à questão da saúde mental, apesar dos estudos, que começam agora a ser apresentados e demonstram que este grupo é particularmente vulnerável (Cao et al., 2020; Lee et al., 2021).

Cao et al. (2020) ao verificarem que 25% da amostra estudantil que estudaram reportou sintomas de ansiedade, os quais estavam relacionados com atrasos nas atividades académicas, com os efeitos económicos da pandemia e com o impacto na vida diária, alertaram para a importância de se monitorizar a saúde mental dos estudantes do ensino superior durante a pandemia. Lee e colaboradores (2021) descrevem a prevalência de stresse, ansiedade e depressão nos estudantes de uma universidade pública americana durante as seis semanas após o confinamento, concluindo que mais do que oito em dez estudantes experienciaram stress moderado ou severo e entre 36% a 44% demonstraram ansiedade e depressão moderada ou severa. Face ao exposto, num ano letivo atípico como o que vivemos, a avaliação da saúde mental, que já antes era recomendada como importante nos estabelecimentos educativos (Hashemian et al., 2015), torna-se imperativa.

Questão de investigação

Quais os níveis de saúde mental dos estudantes do ensino superior durante a pandemia e respetivos fatores associados?

Metodologia

Este é um estudo transversal, aprovado pela Comissão de Ética da Instituição de Ensino Superior onde decorreu a recolha de dados (13/SUB/2020).

A amostra, de conveniência, teve como participantes 567 estudantes de uma instituição de ensino superior politécnico na zona centro de Portugal, com idades entre os 18 e os 68 anos (idade média de 23,9±8,36 anos); maioritariamente do sexo feminino (63,8%); 64,7% solteiro/as, 23,1% numa relação, 10,9% casados/as, 1,1% divorciados/as e 0,2% viúvos/as; 54,5% residentes em zonas rurais e 45,5% em zonas urbanas. Ao nível da situação académica, a maioria dos participantes frequentava cursos de Licenciatura (86,8%), 9,9% Mestrado e 3,4% Cursos Técnicos Superiores Profissionais [CTeSP]), 82% em regime normal e 18,8% com estatuto Trabalhador-Estudante/outro.

Os dados começaram a ser recolhidos no início de janeiro de 2021, altura do segundo confinamento, em formato online, visto os estudantes encontrarem-se em ensino à distância. O convite para participação no estudo foi feito através do envio de email para a base de dados dos emails dos estudantes pelo Presidente das cinco unidades orgânicas que fazem parte da instituição de ensino superior onde o estudo foi desenvolvido. A recolha estendeu-se até ao final de março de 2021, por se entender que a divulgação do estudo já não ia contribuir para mais respostas e por se ter alcançado um número de participantes considerável (n = 567) face ao número total de estudantes da Instituição de Ensino Superior direcionado onde o estudo se realizou (N = 6071).

O questionário, disponível através do Google Forms, era constituído por perguntas de caracterização sociodemográfica (e.g., idade, sexo, estado civil, zona de residência, rendimento) e académica (e.g., curso frequentado, tipo de regime), sobre a ocorrência de alterações laborais, nas rotinas familiares, nas relações familiares e pessoais, no desempenho académico e em cuidar de si próprio/a com a pandemia (sim; não), pelo General Health Questionnaire (GHQ-28, Goldberg & Hillier, 1979; Pais-Ribeiro et al., 2015), e por outras questões, que por não serem alvo de análise no estudo aqui apresentado, não serão descritas. Antes da resposta ao questionário, os participantes eram informados sobre o âmbito, objetivos e dados a serem recolhidos no estudo, bem como da garantia de confidencialidade e anonimato dos dados recolhidos. Só depois de consentirem, é que avançavam para a resposta ao questionário. Relativamente ao General Health Questionnaire (GHQ-28), proposto por Goldberg e Hillier (1979), na sua versão em português, Questionário de Saúde Geral (Pais-Ribeiro et al., 2015), este é considerado um instrumento de rastreio para identificar a probabilidade de perturbações psiquiátricas entre a população geral. A versão utilizada (GHQ-28) é constituída por 28 itens, distribuídos por quarto subdomínios: Sintomas somáticos (SS; itens 1-7); Ansiedade e insónia (AI; itens 8-14); Disfunção social (DS; itens 15-21); e Depressão grave (DG; itens 22-28). É de assinalar que as suas dimensões representam sintomatologia e não diagnósticos. Trata-se de um instrumento concebido para rastrear alterações na saúde mental em populações não clínicas e para identificar a incapacidade para realizar as atividades que são usuais numa pessoa saudável e o aparecimento de fenómenos stressantes novos. A escala de resposta varia entre 0 (Não, em absoluto) e 3 (Muito mais do que o habitual), havendo alguns itens invertidos, pelo que o score total possível varia entre 0 e 84, em que valores mais elevados significam pior saúde mental. Vários estudos que avaliam as características psicométricas deste instrumento demonstram ser válido para diversos contextos culturais, nomeadamente para Portugal, em que o Alfa de Cronbach foi de 0,94 (Pais-Ribeiro et al., 2015).

Os dados recolhidos foram transferidos para uma base de dados no IBM SPSS statistics (versão 25.0), através da qual foram realizadas as análises estatísticas, descritivas e inferenciais ANOVA (na comparação de médias) e Chi-Quadrado (na comparação de variáveis categóricas).

Resultados

Na amostra total, a pontuação média do GHQ foi de 29,18 (± 12,99), sendo na subescala de disfunção social que se verifica a pontuação média mais elevada (11,44 ± 3.81), o que representa maior incapacidade a este nível. Seguem-se as subescalas da ansiedade e insónia (8,15 ± 5,74), sintomatologia somática (6,04 ± 3,31) e depressão grave (3,55 ± 4,46). A comparação das subescalas e da escala total do GHG por género, estatuto, ciclo de estudos, residência e rendimento, não revela diferenças estatisticamente significativas (Tabela 1).

Tabela 1 : Valores do Questionário de Saúde Geral por variáveis sociodemográficas e académicas 

GHQ-T GHQ-SS GHQ-AI GHQ-DS GHQ-DG
Total 29,18 (12,99) 6,03 (3,31) 8,15 (5,74) 11,44 (3,81) 3,55 (4,46)
Género Masculino Feminino 29,06 (13,73) 29,27 (12,60) 5,82 (3,38) 6,13 (3,25) 8,02 (5,74) 8,23 (5,74) 11,65 (3,99) 11,36 (3,69) 3,57 (4,48) 3,56 (4,47)
Estatuto Sim Não 28,39 (12,39) 29,35 (13,13) 5,96 (3,25) 6,05 (3,33) 8,15 (5,96) 8,15 (5,70) 11,30 (3,78) 11,48 (3,82) 2,98 (4,04) 3,68 (4,54)
Ciclo Estudos CTESP Licenciatura Mestrado 33,58 (15,49) 28,75 (12,76) 31,46 (13,84) 7,00 (3,56) 5,92 (3,27) 6,70 (3,49) 10,42 (6,62) 8,00 (5,63) 8,70 (6,33) 12,00 (4,28) 11,37 (3,84) 11,93 (3,36) 4,16 (4,27) 3,46 (4,41) 4,14 (4,97)
Residência Rural Urbano 28,82 (12,04) 29,60 (14,07) 5,97 (3,29) 6,10 (3,34) 7,93 (5,59) 8,42 (5,92) 11,37 (3,65) 11,53 (3,99) 3,55 (4,40) 3,55 (4,54)
Rendimento Menos de 650 650-1000 1000-2000 Mais de 2000 28,83 (11,91) 29,37 (14,08) 28,76 (12,05) 30,58 (14,44) 6,18 (3,29) 6,08 (3,37) 5,79 (3,02) 6,42 (4,07) 8,20 (5,46) 8,27 (6,01) 7,94 (5,58) 8,42 (6,00) 11,62 (3,84) 11,08 (4,00) 11,64 (3,48) 11,44 (3,81) 2,83 (3,42) 3,94 (4,89) 3,40 (4,41) 4,08 (4,64)

Nota. SS = Sintomas Somáticos; AI = Ansiedade e Insónia; DS = Disfunção Social; DG = Depressão grave.

Aplicando a pontuação total de 23/24 como valor fronteira para se estar em presença de um caso para estudo (Pais-Ribeiro et al., 2015), verifica-se que 60,5% dos participantes são considerados casos de estudo, isto é, apresentam risco de problemas de saúde mental. Dos itens com resultados mais preocupantes, destacam-se na subescala SS, o item 3 - Tem-se sentido em baixo de forma e maldisposto?, em que 28,4% referiu “mais do que o habitual” e 6,5% “muito mais do que o habitual”; na subescala AI, o item 10 - Tem-se sentido constantemente sobre tensão?, em que 30,3% referiu “mais do que o habitual” e 16,2% ”muito mais do que o habitual”; na subescala DS, o item 21 - Tem tido prazer nas suas atividades normais do dia-a-dia?, em que 15,7% respondeu “não em absoluto”; e na subescala DG, o item Acha que as vezes não consegue fazer nada por causa dos nervos?, em que 18,5% respondeu “mais do que o habitual” e 10,6% “muito mais do que o habitual”. Apesar de não terem sido os itens com maior frequência de resposta negativa, importa assinalar que 9,2% e 4,4% dos participantes assinalaram “mais do que o habitual” e ”muito mais do que o habitual”, respetivamente, no item 27 - Tem dado consigo a pensar estar morto e longe de tudo?, e 5,5% e 1,2% as mesmas respostas, no item 28 - Acha que a ideia de acabar com a sua vida está sempre a vir-lhe à cabeça?.

Quando comparamos estes valores com as alterações que ocorreram nas suas vidas com a pandemia, verificam-se diferenças estatisticamente significativas, no sentido em que quem reporta alterações laborais tem melhor saúde mental (Tabela 2). Mais especificamente quem referiu ter sofrido alterações laborais teve uma pontuação média na escala total de 27,54 (± 11,34) e quem não assinalou este tipo de alterações teve uma pontuação de 29,71 (± 13,46; p ≤ 0,1). Já na análise das subescalas, é possível verificar que ter alterações laborais está associado também a menos sintomatologia depressiva (p ≤ 0,1), visto que os estudantes que assinalaram ter tido alterações laborais durante a pandemia têm menor pontuação média (2,96 ± 3,89) do que aqueles que não identificaram este tipo de alterações (3,75 ± 4,62). Já ter alterações nas rotinas familiares está associado a mais sintomatologia depressiva, visto que os estudantes que identificaram este tipo de alterações têm maior pontuação média (3,85 ± 4,66) do que os que não o fizeram (3,02 ± 4,04; p ≤ 0,05). E ter alterações nas relações familiares está associado a mais sintomatologia ansiógena e insónia, pois os estudantes que identificaram este tipo de alterações têm maior pontuação média (8,60 ± 5,77) em relação aos que não apresentam alterações desta natureza (7,75 ± 5,70; p ≤ 0,1).

Tabela 2 : Valores do Questionário de Saúde Geral por alterações provocadas pela pandemia 

GHQ-T GHQ-SS GHQ-AI GHQ-DS GHQ-DG
Laborais Sim Não 27,54 (11,34) * 29,71 (13,46) 5,80 (3,10) 6,11 (3,38) 7,76 (5,55) 8,28 (5,81) 11,03 (3,53) 11,58 (3,89) 2,96 (3,89) * 3,75 (4,62)
Rotinas Familiares Sim Não 29,66 (13,48) 28,31 (12,06) 5,95 (3,38) 6,17 (3,19) 8,34 (5,87) 7,81 (5,51) 11,52 (3,62) 11,22 (3,81) 3,85 (4,66)** 3,02 (4,04)
Relações familiares Sim Não 30,18 (12,84) 28,36 (13,10) 6,16 (3,29) 5,92 (3,33) 8,60 (5,77)* 7,75 (5,70) 11,61 (3,71) 11,30 (3,89) 3,72 (4,56) 3,40 (4,37)
Relações pessoais Sim Não 28,84 (12,73) 29,66 (13,41) 5,91 (3,25) 6,21 (3,41) 8,05 (5,83) 8,29 (5,61) 11,41 (3,84) 11,52 (3,75) 3,47 (4,39) 3,64 (4,54)
Desempenho académico Sim Não 28,99 (13,21) 29,42 (12,73) 5,98 (3,36) 6,10 (3,24) 8,01 (5,65) 8,33 (5,87) 11,50 (3,78) 11,44 (3,81) 3,50 (4,43) 3,62 (4,50)
Autocuidado Sim Não 30,05 (13,41) 28,62 (12,71) 6,26 (3,46) 5,88 (3,21) 8,36 (5,93) 8,01(5,62) 11,67 (4,02) 11,30 (3,67) 3,76 (4,54) 3,42 (4,41)

Nota. SS = Sintomas Somáticos; AI = Ansiedade e Insónia; DS = Disfunção Social; DG = Depressão grave.

** p ≤ 0,05 e *p ≤ 0,1

Discussão

Este estudo demonstra que o valor médio do questionário de saúde geral de uma amostra de estudantes do ensino superior na altura do segundo confinamento foi de 29,18, com uma pontuação mais elevada (negativo) na subescala da disfunção social. Apesar de não estarem disponíveis dados sobre a saúde mental destes participantes antes da pandemia, ao compararmos os valores deste estudo com outros publicados com base na população portuguesa, é possível perceber que estes são muito elevados. Por exemplo, no estudo de Pais-Ribeiro et al. (2015), com 351 pessoas maiores de 18 anos, a pontuação média do GHQ foi de 22,43 e nas subescalas foi de 5,90 para SS, 6,37 para AI, 7,59 para DS e 2,52 para DG. Embora a média de idades desse estudo seja superior (46,33 vs 23,9 anos), deve ser ressalvado que os autores encontraram “valores incipientes” (Pais-Ribeiro et al., 2015, p. 283) de correlação entre a pontuação de cada subescala e da escala total com a idade dos participantes. Também no estudo de Nogueira e Sequeira (2017) com 560 estudantes, onde foi usado como instrumento de medida o Inventário de Saúde Mental, os resultados indicam níveis considerados satisfatórios de saúde mental, ainda que a maior percentagem dos participantes se situasse no nível Moderado (67,7%) e no nível Baixo (16,6%).

Partindo da premissa de que o GHQ-28 avalia o estado atual do indivíduo e identifica se este difere do seu estado normal e que é sensível a perturbações psiquiátricas recentes, mas não a estados estáveis com existência prolongada (Goldberg & Hillier, 1979), os resultados encontrados no presente estudo leva-nos a considerar a pandemia como possível fator explicativo destes resultados. No entanto, dada a natureza deste estudo, não podemos afirmar que estas diferenças se devem exclusivamente à pandemia, pese embora no trabalho de Maia e Dias (2020), que teve como objetivo explorar os níveis de ansiedade, depressão e stresse em estudantes universitários portugueses, comparando dois momentos distintos, isto é, um período normal (2018 e 2019) e o período pandémico (entre a suspensão das aulas e o estado de emergência em Portugal), se tenha concluído um aumento significativo de perturbação psicológica (ansiedade, depressão e stress) entre os estudantes universitários na pandemia.

Os resultados encontrados vão também ao encontro do panorama internacional sobre o impacto da pandemia, que mostram que mais de oito em cada 10 estudantes tenham stresse moderado a severo e cerca de um terço ansiedade e/ou depressão severa (Lee et al., 2021). Das pessoas com doença mental prévia, 32% concorda que a sua saúde mental piorou muito devido à pandemia (YoungMinds, 2020). Assim, a pandemia parece ter contribuído para alterações na posição das pessoas no continuum dos problemas de saúde mental. Muitas, que antes lidavam bem com as adversidades, poderão estar agora menos aptas em consequência dos fatores de stresse gerados pela pandemia; aquelas que anteriormente tiveram poucas experiências de ansiedade e stresse podem experimentar um aumento no número e na intensidade dessas experiências; e aquelas que anteriormente tinham um problema de saúde mental, podem experimentar um agravamento dessa condição.

Relativamente à influência das alterações na vida dos estudantes provocadas pela pandemia foram encontrados resultados que importa discutir. No que se refere a quem reportou alterações laborais ter obtido melhor valor de saúde mental, o que não era esperado, poderá ser explicado a partir de algumas premissas. A primeira, de que as alterações laborais se deveram fundamentalmente a alterações de horários e procedimentos, permitindo, eventualmente, que tivessem conseguido manter passatempos, hobbies e uma rotina diária (na hora de deitar, refeições, trabalho, etc.), constituindo-se como possíveis fatores de proteção (Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge [INSA], 2021). A segunda, de que houve uma passagem a teletrabalho e neste caso, estes resultados parecem contrariar a maioria dos estudos e relatórios (e.g., European Agency for Safety and Health at Work, 2021) que apontam para um impacto psicossocial negativo desta forma de trabalho. No entanto, também é sublinhado que a autonomia que ele permite poderá ter um papel relevante nas estratégias de coping, prevenindo o stresse e incrementando a motivação, o que pode explicar os resultados. Também no estudo Português “Saúde Mental em tempos de pandemia covid-19” (INSA, 2021) se concluiu que esta forma de trabalho não estava associada a ansiedade e a depressão e que 83% dos inquiridos afirmaram que algumas formas alternativas de organização do trabalho podem ser vistas como positivas. Finalmente, apesar das alterações relatadas e da vivência de stresse, emoções e pensamentos negativos, pode ter havido uma adaptação global e intuitiva das estratégias de adaptação utilizadas pelos participantes, tal como foi encontrado no estudo de Pires et al. (2021), que concluíram que globalmente os participantes se focaram nos aspetos positivos (flexibilidade de horário, conforto), investindo em si e revelando resiliência.

As alterações nas rotinas familiares que se apresentam associadas a maior sintomatologia depressiva vão no sentido esperado, uma vez que a maioria destes estudantes está deslocado da morada familiar e ou ficou impedido de se deslocar para perto da família. De acordo com estudos revistos por Romeo et al. (2021), a redução da interação social devida ao confinamento, a preocupação com a sua saúde e com o contágio dos familiares e amigos podem afetar o bem-estar psicológico e a saúde mental dos estudantes do ensino superior. Acresce que igualmente se verificou que as alterações nas relações familiares estavam associadas a mais sintomatologia ansiógena e insónia indo no sentido dos mesmos autores, que referem que esta sintomatologia tem maior probabilidade de ocorrer na ausência de comunicação interpessoal e que o apoio social pode ser um fator de proteção face às adversidades (Lee et al., 2021; Nogueira & Sequeira, 2020).

Estes resultados são ainda mais preocupantes quando confrontados com dados que demonstram a reduzida procura de alunos por apoio psicológico (Lee et al., 2021).

Conclusão

Os resultados deste estudo revelam pior saúde mental e bem-estar psicológico nos estudantes inquiridos, nomeadamente ao nível da disfunção social. Apesar de não se poder assumir que estes valores se devem apenas à pandemia, tendo em conta que o GHQ-28 avalia o estado atual do indivíduo e identifica se este estado difere do seu estado normal e que é sensível a perturbações psiquiátricas recentes, mas não a estados estáveis com existência prolongada, leva-nos a considerar que, no geral, a saúde mental da maioria dos participantes é preocupante, tendo-se verificado que as alteração nas rotinas e nas relações familiares se constituíram como os fatores mais relevantes associados a sintomatologia depressiva, ansiógena e insónia.

Os resultados encontrados, semelhantes a outros estudos já referenciados, reforçam a importância e urgência de, em todos os momentos e particularmente durante tempos de incerteza e crise, se continuar a apostar no acompanhamento psicossocial dos estudantes do ensino superior, através de medidas de avaliação e diagnóstico, medidas de promoção do bem-estar, desenvolvimento de competências e estratégias de adaptação para lidar com situações mais adversas, bem como reforço do suporte social, nomeadamente estratégias de coesão da comunidade e apoio dos pares.

Como limitações do presente estudo, realçamos as técnicas de amostragem utilizadas, que não permitem a generalização dos dados. Seria importante dar continuidade a investigações para conhecer melhor nesta realidade, nomeadamente sobre a influência de variáveis que neste momento já sabemos serem de maior risco para a saúde mental, como ser estudante internacional membro da comunidade LGBTIQ, ter estado ou estar infetado com COVID-19, ter piores resultados académicos e ter maus hábitos de alimentação e de sono. Próximos estudos devem considerar também a influência de indicadores de saúde mental positiva, até porque a combinação de níveis de distresse psicológico e saúde mental positiva é considerada um melhor indicador para identificar os alunos que precisam de apoio. Também a realização de estudos longitudinais permitiria investigar o efeito da pandemia a médio e longo prazo e indicar com maior robustez que o impacto verificado foi causado pela COVID-19, e de estudos qualitativos para se entender melhor o significado de alguns resultados como o efeito das alterações laborais.

Financiamento

Este trabalho é financiado por fundos nacionais através da FCT - Fundação para a Ciência e a Tecnologia, I.P., no âmbito dos projetos com as seguintes referências UIDB/04255/2020 e UIDP/04255/2020.

Referências bibliográficas

American College Health & Association National college health assessment III. (2020). Undergraduate student reference group executive summary: Executive summary: Spring 2020. https://www.acha.org/documents/ncha/NCHA-III_SPRING-2020_UNDERGRADUATE_REFERENCE_GROUP_EXECUTIVE_SUMMARY-updated.pdfLinks ]

Cao, W., Fang, Z., Hou, G., Han, M., Xu, X., Dong, J., & Zheng, J. (2020). The psychological impact of the COVID-19 epidemic on college students in China. Psychiatry Research, 287, 112984. https://doi.org/10.1016/j.psychres.2020.112934 [ Links ]

European Agency for Safety and Health at Work. (2021). Telework and health risks in the context of the COVID-19 pandemic: Evidence from the field and policy implications. https://osha.europa.eu/en/publications/telework-and-health-risks-context-covid-19-pandemic-evidence-field-and-policy-implicationsLinks ]

Farnell, T., MatijeviĆ, A., & Schmidt, N. (2021). The impact of COVID-19 on higher education: A review of emerging evidence. https://doi.org/10.2766/069216 [ Links ]

Goldberg, D. P., & Hillier, V. F. (1979). A scaled version of the General Health Questionnaire. Psychological Medicine, 9(1), 139-145. https://doi.org/10.1017/s0033291700021644 [ Links ]

Hashemian, A., Direkvand-Moghadam, A., & Direkvand-Moghadam, A. (2015). Predictive factors for general health status in Iranian university students an univariate and multivariate logistic regression analysis. International Electronic Journal of Medicine, 4, 6-10. [ Links ]

Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge. (2020). Saúde mental em tempos de pandemia COVID-1: Dashboard. https://sm-covid19.pt/dashboard/Links ]

Kitzrow, M. (2003). The mental health needs of today’s college students: Challenges and recommendations. NASPA Journal, 41(1), 165-179. http://ccvillage.buffalo.edu/wp-content/uploads/sites/74/2017/06/NASPA-Mental-Health-Needs-of-College-Students.pdfLinks ]

Lee, J., Jeong, H., & Kim, S. (2021). Stress, anxiety, and depression among undergraduate students during the COVID-19 pandemic and their use of mental health services. Innovative Higher Education, 46, 519-538. https://doi.org/10.1007/s10755-021-09552-y [ Links ]

Li, L., & Wang, S. (2020). Prevalence and predictors of general psychiatric disorders and loneliness T during COVID-19 in the United Kingdom. Psychiatry Research, 291, 113267. https://doi.org/10.1016/j.psychres.2020.113267 [ Links ]

Maia, B., & Dias, P. (2020). Ansiedade, depressão e estresse em estudantes universitários: O impacto da COVID-19. Estudos de Psicologia, 37, e200067. http://dx.doi.org/10.1590/1982-0275202037e200067 [ Links ]

Nogueira, M., & Sequeira, C. (2020). Preditores de bem-estar psicológico em estudantes do ensino superior. Revista ROL de Enfermaria, 43(1), 356-363. [ Links ]

Nogueira, M., & Sequeira, C. (2017). A saúde mental em estudantes do ensino superior: Relação com o género, nível socioeconómico e os comportamentos de saúde. Revista Portuguesa de Enfermagem de Saúde Mental, 5(Spe.) 51-56. http://dx.doi.org/10.19131/rpesm.0167 [ Links ]

Pais-Ribeiro, J., Neto, C., Silva, M., Abrantes, C., Coelho, M., Nunes, J., & Coelho, V. (2015). Ulterior validação do questionário de saúde geral de Goldberg de 28 itens. Psicologia, Saúde & Doenças, 16(3), 278-285. http://dx.doi.org/10.15309/15psd160301 [ Links ]

Pires, M., Fonseca, C., João, R., & Santos, M. (2021). COVID-19, confinamento e teletrabalho: Estudo qualitativo do impacto e adaptação psicológica em dois estados de emergência. Investigação Qualitativa em Saúde: Avanços e Desafios, 8, 26-34. https://doi.org/10.36367/ntqr.8.2021.26-34 [ Links ]

Romeo, A., Benfante, A., Castelli, L., & Di Tella, M. (2021). Psychological distress among Italian University students compared to general workers during the COVID-19 pandemic. International Journal of Environmental Research and Public Health, 18(5), 2503. https://doi.org/10.3390/ijerph18052503 [ Links ]

Ware, J., Manning, W., Wells, K., Duan, N., & Newhouse, J. (1984). Health status and the use of outpatient mental health services. American Psychologist, 39(10), 1090-1100. https://doi.org/10.1037//0003-066x.39.10.1090 [ Links ]

World Health Organization. (2003). Investing in mental health. https://apps.who.int/iris/handle/10665/42823 [ Links ]

World Health Organization. (2012). Risks to mental health: An overview of vulnerabilities and risk factors: Background paper by WHO Secretariat for the development of a comprehensive mental health action. https://www.who.int/mental_health/mhgap/risks_to_mental_health_EN_27_08_12.pdfLinks ]

YoungMinds. (2020). Coronavirus: Impact on young people with mental health needs. https://www.youngminds.org.uk/about-us/reports-and-impact/coronavirus-impact-on-young-people-with-mental-health-needs/Links ]

6Como citar este artigo: Araújo, L., Fonseca, S., Amante, M. J., Xavier, P., Silva, C., Cordeiro, L., & Magalhães, C. (2022). Saúde mental em estudantes do ensino superior politécnico na pandemia COVID-19. Revista de Enfermagem Referência, 6(1), e21109. https://doi.org/10.12707/RV21109

Recebido: 09 de Setembro de 2021; Aceito: 21 de Março de 2022

Autor de correspondência Lia Araújo E-mail: liajaraujo@esev.ipv.pt

Conceptualização: Amante, M., Araújo, L., Fonseca, S., Xavier, P., Silva, C., Cordeiro, L., Magalhães, C.

Tratamento de dados e análise formal: Araújo, L., Fonseca, S.

Administração do projeto: Amante, M.

Redação - rascunho original: Araújo, L.

Redação - análise e edição: Amante, M., Araújo, L., Fonseca, S., Xavier, P., Silva, C., Cordeiro, L., Magalhães, C.

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons