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Revista de Enfermagem Referência

Print version ISSN 0874-0283On-line version ISSN 2182-2883

Rev. Enf. Ref. vol.serVI no.1 supl.1 Coimbra Dec. 2022  Epub June 22, 2022

https://doi.org/10.12707/rv21049 

Artigo Teórico-Ensaio

Cuidado obstétrico na pandemia de COVID-19: Interrelações comunicacionais entre enfermeiro obstetra, mulher e doula

Obstetric care in the COVID-19 pandemic: Communication interactions between nurse midwives, woman, and doula

Cuidado obstétrico en la pandemia de COVID-19: Interrelaciones comunicativas entre enfermero obstetra, mujer y doula

Luciana Camila dos Santos Brandão1 
http://orcid.org/0000-0003-4421-4177

Adriano da Costa Belarmino1 
http://orcid.org/0000-0003-4401-9478

Maria Eunice Nogueira Galeno Rodrigues1 
http://orcid.org/0000-0002-3245-3712

Antonio Rodrigues Ferreira Júnior1 
http://orcid.org/0000-0002-9483-8060

1 Universidade Estadual do Ceará Fortaleza, Ceará, Brasil


Resumo

Enquadramento:

O cuidado obstétrico e a garantia da experiência de parto, assim como as interações profissionais foram atingidas pela pandemia de COVID-19, sendo necessárias reestruturações.

Objetivo:

Retratar o processo de comunicação entre a doula e o enfermeiro no cuidado obstétrico no contexto da pandemia de COVID-19.

Principais tópicos em análise:

Perturbações na interação da equipa de saúde têm vindo a repercutir-se em elementos como a comunicação em saúde e a colaboração, com déficits nas relações interpessoais entre enfermeiro e doula direcionadas à mulher. Associa-se à autonomia na execução e às interações profissionais, em que os conflitos e a perda de qualidade na assistência são observados. Reformas no trabalho em saúde incluindo respeito e qualidade no cuidado à mulher, família e comunidade são urgentes.

Conclusão:

O processo de comunicação tem sido prejudicado pela pandemia de COVID-19, o que exige o desenvolvimento de mecanismos de interação que facilitem as atividades de cuidado e as estratégias de melhoria das relações de poder que ocorrem entre enfermeiro obstetra e doula no cuidado da mulher.

Palavras-chave: cuidado; mulher; enfermeiras obstétricas; doulas; COVID-19

Abstract

Background:

Obstetric care, a positive birth experience, and professional interactions were affected by the COVID-19 pandemic and had to be restructured.

Objective:

To describe the communication process between doulas and obstetric nurses during the COVID-19 pandemic.

Main topics under analysis:

Disturbances in the interaction of the health team have impacted aspects such as communication in health and collaboration, with deficits in the interpersonal relationships between nurses, doulas, and women. It is associated with autonomy of action and professional interactions, where conflicts and loss of quality of care were observed. Health sector reforms are urgent, including the delivery of respectful and quality care to women, families, and communities.

Conclusion:

The communication process has been negatively affected by the COVID-19 pandemic, requiring the development of interaction mechanisms to facilitate care activities and strategies to improve power relations between obstetric nurses and doulas in caring for women.

Keywords: care; woman; nurse midwives; doulas; COVID-19

Resumen

Marco contextual:

La atención obstétrica y la garantía de la experiencia del parto, así como las interacciones profesionales se han visto afectadas por la pandemia de COVID-19, y es necesario reestructurarlas.

Objetivo:

Retratar el proceso de comunicación entre la doula y el enfermero en la atención obstétrica en el contexto de la pandemia de COVID-19.

Principales temas en análisis:

Las alteraciones en la interacción del equipo de salud han impactado en elementos como la comunicación sanitaria y la colaboración, y conllevan déficits en las relaciones interpersonales entre enfermeros y doulas dirigidas a la mujer. Se asocia a la autonomía en la ejecución y a las interacciones profesionales, en las que se observan conflictos y pérdida de calidad en la asistencia. Urge llevar a cabo reformas en el trabajo sanitario que incluyan el respeto y la calidad en la atención a la mujer, la familia y la comunidad.

Conclusión:

El proceso de comunicación se ha visto perjudicado por la pandemia de COVID-19, lo que exige desarrollar mecanismos de interacción que faciliten las actividades de atención y las estrategias de mejora de las relaciones de poder que tienen lugar entre enfermero obstetra y doula en la atención a la mujer.

Palabras clave: cuidado; mujer; enfermeras obstetrices; doulas; COVID-19

Introdução

O cuidado em saúde no contexto da pandemia do novo coronavírus tem vindo a adquirir novos contornos, com expressivas mudanças nos modelos de atenção, de assistência e cuidado, assim como de organização dos sistemas de saúde. A elevada taxa de infeção da doença e a consequente taxa de mortalidade têm tido um impacto nos comportamentos coletivos e individuais. Tem vindo a influenciar as relações sociais, linhas de cuidado em saúde, nas especificidades, referentes às práticas assistenciais e profissionais, além da economia mundial, com consequências nos mercados financeiros internacionais e indústrias de todo o mundo (Rafael et al., 2020).

Considerada como emergência global com 107.423.526 casos de COVID-19 até dia 11 de março de 2021(Organização Panamericana de Saúde, 2021), reflexões e estratégias importantes têm sido realizadas acerca de mudanças nas políticas públicas na saúde.

Exemplo disso, de uma forma global, são as ações de isolamento e distanciamento social que foram adotadas em diversos países como China, Itália, Espanha, Estados Unidos e Brasil, com resultados comprovados de diminuição da curva de contaminação, do número de casos confirmados e da consequente minimização da sobrecarga dos sistemas de saúde (Cruz, 2020). Na perspetiva da saúde materno-infantil brasileira, as práticas de parto e assistência ao parto também foram dimensões de vida alteradas, visando preservar a saúde materno-fetal e proporcionar dentro da nova conjuntura, uma experiência de parto e de nascimento segura e com qualidade (Ashokka et al., 2020).

As pesquisas iniciais da gravidez de mulheres com COVID-19 evidenciam a transmissão placentária-fetal rara, assim como a necessidade de critérios rígidos de proteção profissional e resoluções dinâmicas, com vista a evitar desfechos negativos para a mãe e o recém-nascido (Ashokka et al., 2020; Egloff et al., 2020). Estas evidências desafiam constantemente as práticas de cuidado no parto, principalmente em regiões que, historicamente, sofrem com desigualdades sociais, económicas e na saúde (Aquino et al., 2020).

As implicações da pandemia vão além do risco de infeção e invadem as dinâmicas de vida, das relações e de comunicação que constroem a sociedade e as relações de trabalho na saúde. Os critérios de distanciamento social, isolamento individual e medidas de proteção afetam as formas de comunicação e interação no mundo (Aquino et al, 2020).

Nesta perspetiva, o cuidado obstétrico objetiva uma experiência de parto adequada com o mínimo de intervenções, garantindo dignidade e empoderamento da mulher no trabalho de parto e o seu protagonismo nas decisões relativas aos seus cuidados.

Como fator facilitador da dinâmica do processo de parto, o enfermeiro obstetra surge alinhado com as práticas humanizadas de cuidado e assistência à mulher no parto e nascimento (Duarte et al., 2020). No entanto, perante as novas estruturas de cuidados em saúde associadas à pandemia, diferentes abordagens têm vindo a ser implementadas como forma de garantir um cuidado adequado e seguro à mulher e ao recém-nascido, além da proteção dos profissionais da equipa de saúde materno-infantil (Ashokka et al., 2020).

Entre os fatores que sofreram alteração encontram-se as interações entre o enfermeiro obstetra e outros componentes de apoio nas instituições de parto, incluindo a doula. As doulas surgem no cenário obstétrico como um apoio físico, fonte de informações e de suporte emocional nas experiências no ciclo gravídico e puerperal, estando intrinsecamente associadas a resultados positivos (Wint et al., 2019) e que utilizam, entre as habilidades principais no desempenho das atividades, a comunicação com a família e a mulher, durante a gestação e parto (Herculano et al., 2018). No Brasil, a doula é uma pessoa com habilitação em fisiologia do parto, métodos não-farmacológicos de alívio da dor, cuidados pós-natais e amamentação, sendo considerada uma ocupação (Herculano et al., 2018).

A comunicação no trabalho em saúde pontua-se como um importante mecanismo de construção de relações, colaboração e cooperações interprofissionais para modificação de situações, fenómenos e realidades na saúde (Tørring et al., 2019). A comunicação é uma das bases dos profissionais na área da saúde (Herculano et al., 2018; Tørring et al., 2019), incluindo profissionais como enfermeiro obstetra e assistentes, como a doula. Esta é dotada de habilidades essenciais para o desenvolvimento das atividades e acompanhamento do trabalho de parto.

Na atualidade, torna-se necessário a realização de estudos que analisem os desafios inerentes ao cuidado da mulher em trabalho de parto, quando existirem suspeitas de COVID-19. É importante conhecer esta nova realidade em saúde para atuar no desenvolvimento de mudanças e na reconstrução da interação doula-mulher-família-equipa de saúde. Estas ações auxiliam na minimização de possíveis consequências negativas para a grávida decorrentes deste contexto pandémico, como a diminuição de partos naturais e aumento do número de cesarianas, o que anteriormente no Brasil apresentava valores considerados elevados, aproximadamente 56% no sistema público de saúde e 83% em instituições particulares, em 2018 (Oliveira et al., 2020).

No âmbito da pandemia, as relações individuais e coletivas foram fragilizadas e desconstruídas, assumindo contornos que implicam o desenvolvimento de distintas atitudes na saúde. Posto isto, a comunicação e interação devem ser repensadas, principalmente as que estão relacionadas com a dinâmica de trabalho das doulas e enfermeiros obstetras neste acompanhamento.

Assim, este relato reflexivo procura retratar o processo de comunicação da doula e enfermeiro obstetra no cuidado obstétrico no contexto da pandemia de COVID-19.

Desenvolvimento

Trata-se de uma reflexão acerca da vivência do enfermeiro obstetra e doula na perspetiva comunicacional com os sujeitos-atores no parto, durante a pandemia de COVID-19. A experiência apresenta as interações comunicacionais da doula e enfermeiro obstetra nas atividades desenvolvidas no Estado do Ceará, um dos estados brasileiros mais atingidos pela pandemia. O período descritivo foi de março de 2020 a fevereiro de 2021, sendo consistido por relatos de vivências provenientes das experiências de vida e trabalho em saúde, resultantes da memória reflexiva e conceptual do sujeito descritor.

Após a organização dos relatos experienciais, foram aplicadas as categorias temáticas utilizando-se a técnica de análise de conteúdo. Após a leitura dos relatos efetuados, identificaram-se os temas que estavam contidos na experiência descrita; depois das inferências e interpretações realizou-se a construção das categorias, principalmente pela relevância dos assuntos tratados e pela relação com os objetivos, dando origem a duas categorias: Interações do enfermeiro obstetra e doula no cuidado obstétrico no contexto pandémico e construção de estratégias de transformação da experiência comunicacional entre enfermeiros obstetras e doulas no cuidado obstétrico.

Interações do enfermeiro obstetra e doula no cuidado obstétrico no contexto pandémico

Com a pandemia e as restrições associadas, como o distanciamento e isolamento populacional, as relações profissionais no cuidado obstétrico reinventaram-se na perspetiva de conduta direta com a mulher e o seu acompanhante, com o propósito de multiplicar as suas capacidades interativas e as atitudes de apoio para lidar com situações de fragilidade da dinâmica relacional com as grávidas.

No Brasil, a pandemia apresenta atualmente um crescimento descontrolado dos números de contaminados em diferentes estados e municípios, tendo até ao dia 12 de março de 2021 cerca de 11.363.380 casos confirmados com 275.105 óbitos (Ministério da Saúde do Brasil, 2021). Neste contexto, mostrou-se urgente a reorganização das instituições de saúde e o desenvolvimento de protocolos e fluxogramas de atendimento nas maternidades e hospitais de referência na saúde materno-infantil.

A doula apareceu recentemente no cenário do parto e tem vindo a assumir um papel importante, não apenas no suporte no trabalho de parto e incentivo para as mulheres, mas como fonte de informação e formação em saúde materno-infantil. Muitos estudos já indicam que a sua presença contribui para a humanização na experiência do ciclo gravídico- puerperal, considerado um momento único para as mulheres e as suas famílias (Wint et al., 2019; Herculano et al., 2018).

Inicialmente, não foram registadas restrições comprometedoras efetuadas pelas instituições hospitalares relativamente à doula, resumindo-se à não permissão da participação das doulas ou acompanhante da grávida, caso apresentasse sintomatologia de COVID-19. No entanto, atualmente, quase todas as maternidades e hospitais que permitiam a presença da doula antes da pandemia, incluíram nos seus protocolos a atitividade da doula na instituição, tendo como objetivo dar resposta aos processos de cuidado, parto e acompanhamento do trabalho de parto.

Os processos de cuidado foram reinventados através da colaboração entre o enfermeiro obstetra e a doula, no entanto ainda com a aplicabilidade de medidas restritivas e com a diminuição de pessoas, possivelmente, contaminadas no cenário do parto.

Estudos indicaram que poderia ocorrer a transmissão de COVID-19 por pessoas assintomáticas, por contacto direto em superfícies contaminadas e por gotículas. Piorando a situação, ocorriam relatos de falta de equipamentos de proteção para profissionais de saúde direta ou indiretamente envolvidos na assistência (Ashokka et al., 2020; Gallasch et al., 2020; Rafael et al., 2020).

Perante isto, a primeira reflexão foi de perda dos direitos da grávida e comprometimento do parto humanizado, que tanto se luta para que seja consolidado nas inúmeras instituições de saúde materno-infantis brasileiras e internacionais. Além disso, o isolamento da mulher no trabalho de parto poderia aumentar os relatos de violência obstétrica e o número de indicações de interrupção da gravidez através de cesariana, e ao mesmo tempo a sensação de insegurança, ansiedade e medo relacionados com o risco de contaminação.

O cenário obstétrico brasileiro, no contexto pandémico, reflete uma diminuição na perda de autonomia e do protagonismo da mulher e família na experiência do parto, submetendo-a à institucionalização e realização de práticas muitas vezes desnecessárias e iatrogénicas, determinando o processo de medicalização do parto e hegemonia do modelo obstétrico tecnocrático assistencialista (Herculano et al., 2018; Oliveira et al.,2020).

Entre as principais condutas obstétricas encontra-se o reforço nas recomendações dos partos por cesariana como intervenção na gravidez distócica e de risco, sendo que a Organização Mundial da Saúde (OMS) considera aceitável uma taxa de 10-15%, índice diferente do observado nos últimos anos em países desenvolvidos e em desenvolvimento (Herculano et al., 2018; Oliveira et al., 2020). Evidências iniciais sobre a recomendação de cesariana em mulheres grávidas com COVID-19 descrevem uma decisão definitva de término da gravidez, em casos específicos, como a presença de instabilidade hemodinâmica, risco fetal e/ou materno, sendo realizada caso a caso (Ashokka et al., 2020; Egloff et al., 2020).

Entre os fatores de risco relatados estão o ambiente de centro cirúrgico com maior número de pessoas em ambiente fechado, maior tempo de internamento com maior risco para o binómio mãe-bebé, além dos riscos de complicações cirúrgicas desnecessárias e do isolamento imposto no puerpério no período pandémico (Ashokka et al., 2020).

Tendo em conta esta realidade obstétrica, considerada desafiante, associam-se outros fatores intervenientes nas atividades da equipa de saúde, como problemáticas relacionadas com a comunicação do trabalho em saúde e as suas consequências.

Associa-se a isto as interações profissionais comprometidas e a qualidade do cuidado deficitário, conflitos interprofissionais e stresse decorrente dos riscos da pandemia de COVID-19. Além disso, as implicações de poder e autonomia limitada do enfermeiro obstetra e da inserção da doula no cenário de parto contribuem para a perda de qualidade do cuidado obstétrico, principalmente considerando que no Brasil não há uma legislação nacional que inclua a doula no cenário obstétrico e, juridicamente, é considerada como uma ocupação e não como profissão regulamentada (Duarte et al., 2020; Herculano et al., 2018).

Assim, há fatores anteriores que conectados com as circunstâncias de isolamento e distanciamento impostos pela pandemia de COVID-19 afetam as relações de trabalho construídas, sendo a comunicação entre mulher, enfermeiro obstetra e doula uma das principais atividades afetadas.

Outra dimensão que tem sido discutida é o aumento da ansiedade por parte das grávidas, pois inúmeras já tinham realizado o seu plano de parto e tiveram que modificar rapidamente as suas decisões, retirando a doula ou, algumas vezes até, o acompanhante escolhido. Verifica-se, ainda, a persistência do impedimento da entrada de doulas em algumas instituições de saúde e da incerteza relativamente à presença da equipa escolhida, além do medo de transmissão vertical de COVID-19 (Egloff et al., 2020).

O planeamento do parto ou plano de parto envolve não só conhecer a maternidade em que ocorrerá o parto e a equipa de saúde que irá assistir nesse momento, mas também uma construção imaginária da experiência de vida da mulher, família e comunidade, sendo uma importante recomendação da OMS no pré-natal desde 1996 (Pasqualotto et al., 2020).

No que diz respeito ao atendimento das doulas, houve estranheza por parte das mulheres pelas mudanças inesperadas no cenário do parto com inclusão de equipamentos de proteção, preocupação com a proximidade e a interrupção da interação entre mulher-doula. Neste âmbito, o processo de comunicação sofreu com o distanciamento imposto pelas medidas sanitárias em todo o mundo (Cruz, 2020).

A Figura 1 ilustra as interferências na comunicação no trabalho em saúde e as suas repercussões no cuidado obstétrico.

Figura 1 Interferências na comunicação no trabalho em saúde na pandemia de COVID-19 

Os processos de interferência na comunicação entre os atores envolvidos no parto, impostos pela pandemia, comprometem as interações para o desenvolvimento de atividades, repercute na cooperação entre os individuos nas ações do parto e resulta em conflitos pela autonomia. Entre alguns resultados desfavoráveis encontra-se o aumento de intervenções desnecessárias, incluíndo indicação de cesariana, e diminuição da qualidade do parto planeado e humanizado.

O desafio mostra-se nas limitações já existentes no cuidado obstétrico relativas à comunicação em saúde, que foram potencializadas com o contexto pandémico, em que o medo de contaminação se torna maior que a garantia de uma experiência de parto rica e humanizada.

A construção de estratégias de transformação da experiência comunicacional entre enfermeiros obstetras e doulas no cuidado obstétrico

No contexto da pandemia de COVID-19, ressignificar as construções dinâmicas e vivas do trabalho em saúde materno-infantil envolve a organização da vida, do espaço de atuação e dos processos de saúde e doença. Destarte, o sofrimento ocupacional, alterações na saúde mental dos profissionais de saúde, a recuperação do bem-estar e prazer (Dantas, 2021), são facetas que devem ser consideradas no desenvolvimento do cuidado obstétrico e podem contribuir para complexas modificações nos resultados em saúde.

Contextualmente, as relações de trabalho em saúde são fatores diretamente relacionados com a qualidade nos cuidados a mulheres que enfrentam intervenções, inúmeras vezes desnecessárias, impostas e que não consideram a mulher e as suas singularidades nos processos assistenciais. Relações interpessoais são importantes elementos que contribuem nesta dinâmica, assim como a comunicação e superação de dificuldades e conflitos (Miltona et al., 2020).

Neste contexto, o enfermeiro obstetra e a doula reconstruíram os modelos de interação e comunicação, primeiramente entre si, e posteriomente, com a mulher por meio de estratégias com a família, as tecnologias e restante equipa de saúde. Como diferentes atores com formações distintas e competências diferentes, destacando-se que a doula tem formação de capacitação para o cuidado no Brasil e o enfermeiro obstetra tem formação de nível superior, as suas ações encontram-se conectadas ao objetivo principal: garantir à mulher um parto humanizado, com o seu protagonismo na experiência do parto e colaboração do enfermeiro obstetra como profissional facilitador e da doula como apoio (Ferreira Júnior et al., 2021; Herculano et al., 2018).

Uma das estratégias foi fortalecer o acompanhante da mulher, sendo que nunca foi tão necessária a sua contribuição. Este é sujeito de ação no cenário do parto, sendo necessária a sua contribuição para apoiar física e emocionalmente o trabalho de parto, assim como contribuir no desenvolvimento dos planos de cuidado e da construção da dimensionalidade de experiências (Wint et al., 2019; Herculano et al., 2018).

Salienta-se que ainda há maternidades que não respeitam a Lei Federal nº 11.108, que garante um acompanhante de livre escolha da mulher durante o trabalho de parto e parto (Silva & Siqueira, 2020). Algumas instituições obrigam a grávida a escolher entre a doula ou outra pessoa como acompanhante, não respeitando a perspectiva da mulher e a situação laboral da doula neste processo. No entanto, é importante realçar que o papel do acompanhante é também participar da tomada de decisões diante de imprevistos e representa um fator decisivo no sucesso e fracasso do trabalho de parto (Silva & Siqueira, 2020).

Na tentativa de diminuir as repercussões dessa dificuldade, outra estratégia adotada foi a das interações reconstruídas na perspectiva principal de garantir cuidado de qualidade e protagonismo feminino no cenário de parto, garantindo diretrizes contidas no contexto da Estratégia Rede Cegonha e Programa de Humanização no Pré-natal e Nascimento (Silva & Siqueira, 2020), para mulheres com ausência de sintomatologia.

Essas estratégias envolvem definição de competências e dos papéis dos diferentes atores, habilidades comunicacionais aperfeiçoadas e melhoradas, estabelecimento de confiança e autonomia, práticas baseadas em evidências científicas atualizadas que assegurem proteção do enfermeiro, da doula e da mulher em trabalho de parto.

A comunicação em saúde baseada na partilha de conhecimento, na escuta, interpretação e compreensão para construção de metas para resultados viáveis são alguns elementos importantes no trabalho em saúde (Tørring et al., 2019; Rodrigues et al., 2020) e que devem ser fortalecidos, neste momento, entre o enfermeiro obstetra e a doula.

Inúmeros estudos enfatizam a importância do processo comunicativo e como as suas fragilidades contribuem para dificuldades na equipa de saúde interprofissional, na segurança e na qualidade da assistência e cuidado (Tørring et al., 2019; Miltona et al., 2020; Rodrigues et al., 2020). Importantes habilidades de abertura e construção de vínculos são estabelecidas através da comunicação e contribuem para a cooperação entre diferentes profissionais da equipa de saúde, fortalecendo as medidas de segurança para evitar contágios (Rodrigues et al., 2020), garantir equidade e humanização nas práticas obstétricas e satisfação para mulheres, família e comunidade.

Deste momento, resulta o estabelecimento de cooperações e colaborações tendo em conta cada caso em particular, o contexto sociocultural da mulher, os seus desejos e perspetivas futuras relativas ao parto e nascimento. Modelos de colaboração tem demonstrado mudanças significativas nos contextos de trabalho em saúde, de liderança, performances adequadas e competentes (Behruziet al., 2017; Rodrigues et al., 2020) enfatizando a criação de confiança, organização, de habilidades competentes e poder de decisão (Miltona et al., 2020).

A pandemia exige a colaboração para superação de exigências cada vez maiores, riscos de infeção, agravamento de casos clínicos e isolamento nos processos de cuidado, sendo a comunicação, a ferramenta de destaque neste contexto crítico. Ricas interações, dinâmicas de colaboração melhoradas e eficientes são descritas em espaços de cuidado mediados pela comunicação e interação da equipa de saúde (Behruzi et al., 2017).

A autonomia nas ações e o poder de decisão dentro da equipa de saúde são componentes relacionados com maior desempenho e que merecem destaque no cuidado obstétrico (Ferreira Júnior et al., 2021).

Os pontos-chave a serem melhorados para potencialização destes requesitos são a harmonização dentro da equipa, com diminuição do stresse e construção de interações efetivas entre o enfermeiro obstetra e a doula na assistência do parto.

Historicamente caracterizada por complicações quanto à autonomia no cuidado do parto dominado pelo obstetra, o surgimento da figura da doula no cenário do parto trouxe conflitos com outras categorias profissionais, relativos à delimitação de técnicas e conhecimentos considerados específicos de cada uma, oposição a técnicas tradicionalmente executadas, assim como disputas de modelos obstétricos e espaços de atuação (Herculano et al., 2018).

Considerando essa realidade descrita, com as implicações da pandemia relativa à limitação de sujeitos neste cenário, empregabilidade de materiais de proteção individual e riscos inerentes (Ashokka et al., 2020), maximizaram-se problemas posteriormente enfrentados relativos à autonomia no desempenho e competências, que devem ser repensados e redefinidos para diminuição dos efeitos no cuidado obstétrico.

O respeito mútuo representa outro elemento importante, que unido à construção de confiança e vínculos profissionais contribuem para superação de fragilidades na equipa de saúde. O respeito das opiniões contribui para corresponsabilização, comprometimento e cooperação em saúde (Behruzi et al., 2017; Ferreira Júnior et al., 2021; Rodrigues et al., 2020).

Além disso, a reconstrução das comunicações neste processo representa avanços na interação da mulher, enfermeiro obstetra, doula e família, além de apoio no processo de gravidez, parto e pós-parto da mulher, podendo diminuir ansiedade, medo, riscos iatrogénicos e intervenções desnecessárias (Wint et al., 2019; Herculano et al., 2018). A seguir, a Tabela 1 demonstra alguns elementos que contribuem para a superação das fragilidades comunicacionais e das suas consequências:

Tabela 1: Estratégias de combate às fragilidades comunicacionais no contexto da pandemia de COVID-19 

Equipa de saúde Fragilidades Estratégias
Enfermeiro obstetra e Doula Deficiências na comunicação Utilização de habilidades comunicacionais de escuta, atenção e interpretação de informações
Cooperação e colaboração fragilizada Construção de interações intraequipa, definição de responsabilidades e habilidades de decisão, estabelecimento de confiança
Conflitos de poder e autonomia Harmonia, respeito e definição de competências profissionais e ocupacionais na equipa
Intervenções desnecessárias no trabalho de parto e parto Práticas seguras e baseadas em evidências científicas de diminuição de risco infecioso

Na perspetiva da doula e do enfermeiro obstetra, a utilização da comunicação em saúde, tanto verbal como não-verbal, são elementos intrinsecamente relacionados com o desempenho das suas atividades e no desenvolvimento de relações entre mulher, família e equipa de saúde. As relações da equipa de saúde e doula, e desses com a mulher grávida e família, contribuem para o aumento de práticas benéficas e positivas no ciclo gravídico-puerperal (Duarte et al., 2020; Herculano et al., 2018; Oliveira et al., 2020; Pasqualotto et al., 2020).

Conclusão

A situação pandémica gerou para a mulher, no seu processo de gravidez, parto e puerpério, mudanças em relação ao acolhimento e apoio nas organizações de saúde em todo o mundo, tendo que se adequar a realidade de combate à COVID-19 em relação aos protocolos de isolamento no cenário do parto.

O estudo contribui para discussões sobre o papel da comunicação entre enfermeiro obstetra e doula para efetivação das práticas humanizadas direcionadas para a parturiente, fortalecendo mudanças e adaptações no contexto pandémico para manutenção de cuidado obstétrico de qualidade.

Deste modo, o desenvolvimento de discussões efetivas dentro das maternidades e outras instituições, que prestam assistência às mulheres em trabalho de parto, e que inserem as doulas na assistência ao processo de parto, juntamente com enfermeiros podem resolutivamente ter resultados favoráveis nos índices de parto normal, mesmo diante de contextos complexos de saúde como da pandemia de COVID-19.

Novas mudanças no cenário atual levam a repensar as estratégias de melhoria para a saúde da mulher, no apoio a pesquisas na área que suportem a inserção das doulas. Além de reaver protocolos de assistência para o envolvimento dos profissionais relacionados com o cuidado obstétrico em situações de pandemia no Brasil.

Há necessidade de reformular e reconstruir através de novos mecanismos como as interações, cooperação e resolução de conflitos, a comunicação com a mulher, família e a equipa de saúde para suprimir os entraves nas tarefas e obter resultados positivos no apoio à experiência de parto.

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7Como citar este artigo: Brandão, L. C., Belarmino, A. C., Rodrigues, M. E., & Ferreira Júnior, A. R. (2022). Cuidado obstétrico na pandemia de COVID-19: Interrelações comunicacionais entre enfermeiro obstetra, mulher e doula. Revista de Enfermagem Referência, 6(Supl. 1), e21049. https://doi.org/10.12707/RV21049

Recebido: 18 de Março de 2021; Aceito: 23 de Junho de 2021

Conceptualização: Brandão, L. C., Ferreira Júnior, A. R.

Tratamento de dados: Belarmino, A. C., Rodrigues, M. E.

Metodologia: Belarmino, A. C.

Redação - rascunho original: Brandão, L. C., Belarmino, A. C., Rodrigues, M. E.

Redação - análise e edição: Belarmino, A. C., Ferreira Júnior, A. R.

Autor de correspondência Adriano da Costa Belarmino E-mail: adrian_belarmino@hotmail.com

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