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Psicologia

Print version ISSN 0874-2049

Psicologia vol.11 no.2-3 Lisboa June 1996

https://doi.org/10.17575/rpsicol.v11i2/3.607 

Notas sobre as Representações Sociais e o Habitu: Esboço de uma análise comparada

 

Sofia d’Aboim Inglez*; Mónica Truninger**; Pedro Vasconcelos***

*-***Alunos da licenciatura de Sociologia do ISCTE, Lisboa

 


RESUMO

O presente artigo tenta fazer uma breve análise crítica de dois dos conceitos que mais utilização têm vindo a ter em Sociologia e em Psicologia Social: o conceito de habitus proposto por P. Bourdieu e o conceito de «representação social» proposto por S. Moscovici. Tenta-se demonstrar como ambos são tentativas, disciplinarmente diferenciadas, de superação dos tradicionais pólos de discussão paradigmática em ciências sociais (objectivismo versus subjectivismo), tentativas que muito têm de análogo, mas que apesar de tudo não conseguem escapar às suas inserções disciplinares, nem a aspectos teóricos condutores que delas advêm - a excessiva reprodutividade da teoria do campo em Bourdieu e a redução dos âmbitos sociais de construção das representações sociais a meras interacções grupais (não estruturais) em Moscovici.


ABSTRACT

This paper tries to make a brief critical analysis of two major concepts in Sociology and Social Psychology: P. Bourdieu’s concept of habitus and S. Moscovici’s concept of «social representations». One seeks to demonstrate how both concepts, having their origin in different disciplines, are attempts to overcome traditional paradigmatic dichotomies in social Sciences (objectivism versus subjectivism). Attempts which have much in common, but which, nevertheless, are not able to escape neither their respective disciplinary insertions, nor some theoretical conducting aspects grounded on those traditions, i.e., the excessive reproductiveness of Bourdieu’s Field Theory and the reduction to mere non structural group interactions of the social processes by which social representations are constructed in Moscovici’s theoretical approach.


 

Nestas notas de reflexão pretende-se dar conta dos aspectos centrais dos conceitos de habitus, desenvolvido por Pierre Bourdieu, e de representação social, como proposto, no âmbito das discussões teóricas em Psicologia Social, por Serge Moscovici. E nosso intuito tentar demonstrar como duas produções teóricas oriundas de áreas disciplinares distintas, mas vizinhas, partilham uma mesma procura de uma superação de pares antinómicos que classicamente têm atravessado a produção teórica em ciências sociais.

O problema que aqui se coloca é o do relacionamento entre indivíduo e sociedade, quer ao nível das relações entre as estruturas e as praticas, quer ao nível dos processos simbólicos e de produção de conhecimento que dão sentido e materializam uma determinada construção do real. Pensar a reflexão científico-sociológica em termos da real existência de um continuum na discussão e propostos teóricos de superação de velhas questões das ciências sociais levanta um outro problema de fundo, nomeadamente, até que ponto estaremos demasiado presos aos constrangimentos de uma certa representação teórica que pensa em termos de indivíduo versus sociedade, determinismo versus liberdade, sujeito autónomo (activo) versus sujeito condicionado (passivo), estruturas versus práticas. Enfim, não estaremos, porventura, presos a falsas divisões em ciência, e cuja génese não será mais do que político-ideológica (liberalismo versus totalitarismo)?

E na tentativa de superação da tradicional distinção entre objectivismo e subjectivismo que Bourdieu e Moscovici empenham os seus esforços, através dos conceitos de habitus e representação social, respectivamente, conceitos que pretendem articuladores de dimensões até então consideravelmente apartadas.

Se se construísse uma cartografia dos espaços paradigmáticos em ciências sociais1, teríamos que lançar mão de pares dicotómicos que acentuar ora a exterioridade (sujeito [inter]dependente e passivo), ora a interioridade do social (sujeito autónomo e activo), enquanto eixos de compartimentação de quadrantes teóricos. A operacionalização desta cartografia constitui, para nos, o ponto de partida, para, primeiro, situar cada um dos conceitos face ao objectivo comum de superação dos pólos dicotómicos configuradores dos referenciais paradigmáticos (que herdados delimitam o leque de possibilidades de inovação conceptual do habitus e da representação social). E, segundo, partindo da análise comparativa dos conceitos, procurar aferir o distanciamento ou a proximidade teórica destes em relação aos pares dicotómicos organizadores de quadrantes metateóricos de produção cientifica. Assim, poder-se-á saber em que medida são efectivamente superadores ou em que medida se vislumbrara sentidos mais ou menos fortes de determinação em direcção a algum daqueles eixos.

1. Teoria da Prática e Teoria das Representações Sociais.

Ambos os conceitos, o habitus e as representações sociais, expressam uma recusa comum. A recusa de abordagens reducionistas, quer sociologisticas, quer psicologisticas.

Bourdieu é lapidar: «a noção de habitus exprime sobretudo a recusa de toda uma série de alternativas nas quais a ciência social se encerrou, a da consciência e do inconsciente, a do finalismo e do mecanicismo, etc. (…) tal noção permitia-me romper com o paradigma estruturalista sem cair na velha filosofia do sujeito ou da consciência, a da economia clássica e do seu homo economicus que regressa hoje com o nome de individualismo metodológico»2. Moscovici dirá analogamente que «dans chaque individu, habite une societé»3, pretendendo ver na Psicologia Social a ciência do estudo das formas, tempos e modos do relacionamento entre indivíduo e sociedade, isto numa análise transversal aos diversos níveis das relações sociais, cuja articulação permitiria evitar perigos reducionistas e falsas antinomias. Esta Psicologia Social seria uma ciência superadora das tentativas, unívocas, de fornecimento de uma interioridade ao sujeito social, por um lado, e das tentativas de restituição do sujeito individual ao mundo social, por outro lado. Superadora porque desde logo recusa a separação entre individual e colectivo, visto entender que em cada indivíduo habita uma sociedade permanente e processualmente reconfigurada e construída, mas uma sociedade que é também um legado, uma herança na qual se nasce.

1.1. O habitus.

Bourdieu propõe uma Teoria da Pratica, avançada com a publicação em 1972 de Esquisse d’une Théorie de la Pratique4, que, fundamentada no conceito de habitus, lhe permite pensar a relação dialéctica entre praticas e estruturas objectivas. A prática seria, assim, o produto da relação dialéctica entre uma situação particular e um habitus particular. Esta é uma dimensão que nos reenvia para a relação entre estrutura objectiva e as condições de exercício do habitus (as situações que formam a conjuntura). Logo, o habitus é o elemento conceptual que articula práticas e estruturas, produção e reprodução, condutas e condições, propriedades simbólicas e propriedades materiais, indivíduos e classes.

Sendo o habitus um sistema de disposições adquiridas duráveis e transponíveis (logo, integrando a experiência passada e assim funcionando a cada momento como uma matriz de percepções, de apreciações e de acções) e concomitantemente princípio gerador de praticas objectivamente classificáveis e de sistemas de classificação dessas praticas, é assim uma gramática orientadora quer da acção (das praticas), quer da construção representacional da realidade.

Para Bourdieu, o conhecimento praxiológico que propõe estuda não só o sistema de relações objectivas, mas também as relações dialécticas entre essas estruturas e as disposições estruturadas (nas quais as próprias estruturas se actualizam e onde tendem a ser reproduzidas), ou seja, «o duplo processo de interiorização da exterioridade e de exteriorização da interioridade»5.

A acção depende, então, fortemente (mas não totalmente) das estruturas das relações entre as posições objectivas dos agentes em interacção na estrutura social6, estrutura esta que comanda a forma das interacções observadas numa dada conjuntura. O que Bourdieu pretende fazer é uma teoria do modo de condicionamento/engendramento das praticas, chegando ao conceito de habitus (que, como mediação entre objectivismo e subjectivismo, é a categoria essencial da superação da dicotomia entre uma teoria do sujeito e uma teoria sem sujeito).

O habitus é produzido pelas condições materiais de existência características de uma condição de classe. Assim, o habitus pode ser entendido como um sistema de disposições duráveis que seria o princípio gerador e estruturador das praticas e das representações com certa regularidade e passíveis de regulação, sem cair na obediência a regras e normas exteriores de carácter holista. E o que Bourdieu chama de «estruturas estruturadas predispostas a funcionar como estruturantes»7.

Em consequência, as práticas que um dado habitus produz são determinadas pela antecipação (implícita) das suas consequências, ou seja, pelas condições em que no passado essas práticas levaram a cabo e produziram o seu princípio de produção (que é o habitus), de tal maneira que essas mesmas práticas tendem a reproduzir as estruturas objectivas das quais são o produto. E devido ao facto das práticas serem o produto de um habitus particular, que são, consequentemente, dotadas de um sentido objectivo (unitário e sistemático), que transcende as intenções subjectivas e os projectos conscientes (individuais ou colectivos). Assim, para Bourdieu, não se pode de todo reduzir a estrutura objectiva da relação entre os indivíduos agrupados à sua mera interacção numa situação particular. As estruturas objectivas são o produto continuamente reproduzido ou transformado de práticas históricas, sendo que o princípio produtor dessas práticas é produto das estruturas que tende ele próprio a reproduzir - o habitus.

Também o habitus não deve ser entendido como mero mecanismo mediador entre estruturas e práticas, se estas forem entendidas como pólos separados e sem contacto8. E, antes, mediador na medida em que estruturas e práticas são dois lados de um mesmo todo, dois extremos de um todo interdependente, mutuamente implicados. O habitus é, pois, produto (das condições estruturais objectivas) produtor e reprodutor (pelas práticas e representações que, relativamente, estrutura) daquilo que o produz (a estrutura), é, assim, uma estrutura estruturada e estruturante.

1.2. As representações sociais.

Desde a publicação de La Psychanalyse, son image et son public (1a ed. 1961, 2.a ed. 1976) de S. Moscovici9, muitos autores em Psicologia Social começaram a trabalhar com a noção de representação social. A pluralidade dos seus usos suscita igualmente pluralidade de definições conformes à perspectiva adoptada sobre o objecto. Enquanto conteúdo e processo, a ideia de representação social remete para um fenómeno psicossocial complexo, cuja riqueza se traduz na dificuldade de produção de um conceito que não esbata a sua multidimensionalidade, porque, como refere Moscovici: «Se é fácil darmo-nos conta da realidade das representações sociais, não é fácil defini-las conceptualmente. Há muitas razões (…) que finalmente se reduzem a uma só: a sua posição «mista», na confluência de conceitos sociológicos e psicológicos. E nesta confluência que teremos de nos situar»10.

Assim, se as representações sociais podem ser consideradas como uma modalidade de conhecimento prático construído socialmente e produtor dos princípios geradores das tomadas de posição (princípios esses articulados com as inserções específicas dos indivíduos num conjunto de relações sociais)11, o que aqui se constata é que os indivíduos intervêm activa e dinamicamente nos próprios processos de construção de uma realidade social significativa. Como nos diz Moscovici as representações sociais são «…um sistema de valores, de noções e de práticas relativas a objectos sociais, permitindo a estabilização do quadro de vida dos indivíduos e dos grupos, constituindo um instrumento de orientação da percepção e de elaboração das respostas, e contribuindo para a comunicação dos membros de um grupo ou de uma comunidade.»12

A teoria das representações sociais ao acentuar o facto de estas serem uma modalidade de conhecimento prático e social(são teorias sociais práticas), produtor, constituinte e interpretador da realidade, diferenciam-se das diferentes aproximações deste conceito em Psicologia, pois realçam o seu carácter social não pelo critério colectivo, mas porque socialmente constituídas no permanente intercâmbio inter-individual e inter-grupal (bem como entre indivíduo e grupo). Assim, estas modalidades de conhecimento prático, sendo relativas a uma realidade fenoménica em permanente mudança à qual conferem sentido, são discutidas e discutíveis em termos discursivos entre os agentes sociais e, consequentemente, sujeitas a processos de mudança relativamente rápidos (predominância analítica do «tempo curto»), sendo uma expressão das identidades individuais e sociais dos agentes. E a partir daqui que Moscovici pode dizer que os indivíduos, longe de serem receptores passivos, pensam por eles próprios, produzem e comunicam incessantemente as suas próprias representações e as soluções para as questões que eles próprios colocam (…). Os acontecimentos, as ideologias e as ciências oferecem simplesmente «um alimento para pensar».»13

As representações sociais, sendo concomitantemente um mecanismo de produção e reprodução de dada relação significativa com um objecto, orientadoras de comportamentos e produto profundamente ancorado num conhecimento socialmente constituído, devem ser entendidas como visualizando a relação indivíduo/sociedade de uma forma dinâmica e permanentemente levada a cabo, na qual as interacções não podem ser desligadas dos seus aspectos cognitivos, das situações de interacção, do efeito estruturante das posições sociais objectivas dos indivíduos (extra-situacionais) e das linhas de orientação simbólica reguladoras das normatividades de um dado todo social14.

Podemos dizer, com D. Jodelet15, que as representações sociais implicam um objecto e conteúdos determinados, um sujeito em relação com outros sujeitos, relação essa mediada pelas posições estruturais ocupadas pelos sujeitos, pela própria construção reflexiva dos sujeitos desses relacionamentos e posições (bem como categorias similares de objectos) e pelas formas de estruturação simbólica dominantes num determinado tempo e espaço histórico estrutural, tendo, portanto, uma funcionalidade adaptativo-construtiva, que, no entanto, não deve ser entendida como pura resposta a condicionantes exteriores, mas antes como sendo também constituinte da objectividade circundante (a realidade exterior é construída em termos de significância simbólica e consequentemente explicada e justificada inter-subjectivamente).

Seriam, assim, quatro os principais aspectos das representações sociais16: uma representação social é sempre a representação de um objecto; as representações sociais mantêm uma relação de simbolização (construção da realidade) e interpretação (actividades expressivas) com os objectos; as representações sociais adquirem a forma de modelos que se sobrepõem aos objectos, dando-lhes assim visibilidade e legibilidade; face a estas características, as representações sociais são uma forma de conhecimento prático (havendo então que questionar pelos vértices sociais da sua génese e pelas funções que preenche nas interacções quotidianas).

Deste modo, devemos considerar que as representações sociais não podem apenas ser vistas como factor mediador entre estímulos e respostas, visto serem «factores constituintes do estímulo e modeladores da resposta»17. Assim, preenchem três funções sociais básicas (interpretar e reconstruir a realidade, integrar a novidade e servir de referência social no tempo, orientar na prática os comportamentos e as relações sociais)18, além da sua função social por eminência, a de produzir e reproduzir conhecimentos práticos nos gruposl19.

Há que ter também em atenção, no entanto, os factores sociais que estão na génese das representações20, pois estas são relativamente determinadas pelas divisões estruturais da sociedade na qual são construídas e na qual se desenvolvem, quer a nível das condições sócio-económicas, quer a nível dos sistemas simbólicos de orientação valorativa e normativa.

2..Confluências e Especificidades analíticas.

E de notar que as concepções teóricas avançadas por estes dois autores não são estáticas, tendo havido, ao longo do tempo, alterações nas definições apresentadas dos conceitos.

Poder-se-ia dizer, no que se refere ao habitus, que o conceito tem vindo a caminhar das formulações mais deterministas de La Reproduction (1970) centradas no problema da reprodução das estruturas sociais, em direcção a urna inclusão de preocupações mais acentuadas com o problema da invenção. Em La Reproduction, o habitus seria «ce principe génerateur et unificateur des conduites et des opinions qui est le principe explicatif, puisquhl tend à reproduire en chaque moment d’une biographie scolaire ou intelectuelle, le système des conditions objectives dont il est le produit»21. Em Le Sens Pratique (1980) o habitus seria já «. ..constitué d’un ensemble systematique de príncipes simples et partiellement substituables, a parhr desquels peuvent être inventées une innité de Solutions qui se ne deduisent pas directement de ses conditions de production»22. Contudo, o que aqui se pode constatar é mais uma mudança de ênfaseteórico-analítico, do que uma transformação da proposta teórica de base de Bourdieu. Na primeira definição apresentada, o que está em causa é uma teoria do condicionamento das práticas, na segunda definição o ênfase é posto numa teoria do engendramento das práticas.

Também o conceito de representação social em Psicologia Social tem evoluído. Desde definições à la Durkheim, até definições mais sócio-cognitivas e centradas no indivíduo, e, concomitantemente, definições que confluem numa verdadeira articulação psicossociológica, sem pretenderem cair nem em exageros sociologísticos, nem em exageros psicologísticos. Este é um conceito que Moscovici pretende aberto23, no sentido em que dele não é dada uma definição apriori, sendo portanto aplicável a diversos níveis analíticos dos sistemas simbólicos e das práticas sociais, levadas a cabo em contextos grupais, i.e., não deixando de reconhecer o papel estraturante das condições sociais sobre as construções simbólicas orientadoras da prática, mas também não esquecendo a construção social da realidade (logo das condições sociais estruturais) que a representação e a vontade efectuam, aliás como em Bourdieu.

Assim, uma das primeiras questões que se nos coloca é a do uso teórico dos termos actor ou agente, termos que andam em regra associados a graus de actividade ou passividade do sujeito, dentro dos quadros dicotómicos que Bourdieu e Moscovci tentam ultrapassar. O actor seria o sujeito construtor e o agente o sujeito construído, pelo menos referenciando-nos uma vez mais a dicotomias de certo modo utilizadas nas ciências sociais. Bourdieu refere: «digo agentes e não sujeitos»24, não querendo dizer que o seu sujeito seja passivo, desprovido de acção, mas remetendo-o para a sua qualidade de operador prático25.

Ora, a grande clivagem (ou talvez a pequena?) que pode ser apontada entre o conceito de representação social e o de habitus, é o de que nas teorizações realizadas em torno do primeiro estamos face a um sujeito activo e interdependente, i.e., o indivíduo é compreendido como sendo um actor social fortemente envolvido nos processos reflexivos de construção de sentido (no fim de contas, em cada indivíduo habita uma sociedade permanentemente pensada e reconfigurada), sem que tal implique uma consciência transcendente sobre o mundo social, ou seja, sobre as condições de exercício da prática e de formação das representações sociais que conferem sentido prático a esse mundo26 27. Por seu lado, para Bourdieu, o ênfase não é dado tanto ao actor social, mas ao agente social, mais precisamente ao operador prático28. 0 agente social constrói os objectos sociais sem que tal implique necessariamente a existência de uma consciência ou de um discurso (os esquemas do habitus devem a sua eficácia ao facto de funcionarem fora do exame e do controlo voluntário), assim, ele constrói a realidade respondendo apenas, e não reflexivamente, a todo um conjunto de problemas práticos (é o operador prático), ou seja, esta é fortemente uma visão do sujeito como semi-activo e profundamente interdependente (o sujeito só não é prisioneiro porque tem a capacidade de actualizar e direccionar o seu habitus dentro de um determinado campo dos possíveis, e., tem uma relativa capacidade de escolha no âmbito de um determinado feixe de trajectórias modais, condicionadas pela sua posição objectiva e pelo seu capital incorporado - o habitus).

Contudo, esta clivagem deve ser também relativizada, pois a classificação em termos do binómio activo/passivo (ou de graus de actividade ou passividade) é discutível porque demasiado próxima, quiçá algo decalcada, dos eixos de oposição conceptual que estas duas propostas teóricas pretendem ultrapassar. O que ambas fazem é, na realidade, apontar que os sujeitos sociais são concomitantemente agentes e actores, criadores criados, produtos produtores. Sendo que, habitus e representações sociais se referem a aspectos diferentes da realidade social, mas que apesar dessa diferença, não são desconexos, antes mutuamente implicados. A questão não reside, portanto, na natureza social, mas sim nos níveis analíticos a que ambas as propostas teóricas diferencialmente se referem.

O que se pode constatar em ambas as propostas conceptuais é um declarado primado da razão prática29, ambas dando prevalência teórica ao conhecimento prático e afirmando que a consciência é sempre uma consciência possível, e que a eficácia do conhecimento prático reside consideravelmente no desconhecimento das delimitações objectivas desse conhecimento, pela ilusão de liberdade e livre-arbítrio, pelo credo na consciência que se crê possuir. Como nos diz Bourdieu, a liberdade existe na medida em que é ilusão de liberdade dos seus constrangimentos sociais (o que por sua vez confere liberdade a esses constrangimentos para se exercerem)30, toda a acção de violência simbólica (de inculcação de um dado arbitrário cultural) que se consegue impor, impõe-se pelo «…desconhecimento da sua verdade objectiva de violência»31. Moscovici dirá analogamente que «… the act of constructing is less a Creative liberty of reality than an illusion about the conditions of this liberty.»32

O conceito de representação social, tal como o de habitus, nega a separação entre sujeito e objecto: «considera se que não há corte entre o universo exterior e o universo interior do indivíduo, que o sujeito e o objecto não são essencialmente distintos»33. Ou, como nos diz Bourdieu, há uma relação de cumplicidade onlológica34 entre o indivíduo e a realidade social, ou melhor, entre o habitus e o campo social onde esse se inscreve. E assim que afna: «La relation entre Vhabitus et le charnp est d’abord une relation de conditionnement: le champ structure Vhabitus qui est le produit de Pincorporation de la nécessité immanente de ce champ (…). Mais c’est aussi une relation de connaissance ou de construction cognitive: Vhabitus contribue à constituer le champ comme monde signifiant, doué de sens et de valeurs…»35. Se para Moscovici em cada indivíduo habita uma sociedade, para Bourdieu «Le corps est dans le monde social mais le monde social est dans le corps»36, i.e., para ambos, o agente é habitado pela sociedade na qual habita, sociedade essa que é feita habitável pelos actores que a produzem.

Se não há na formulação de Bourdieu urna concepção de interiorização de valores e normas em termos mecanicistas, em que os agentes não fariam nas suas práticas mais do que actualizar algo adquirido de uma forma rígida e fixa, é também verdade que a acção está sempre condicionada aos limites do habitus, que incorpora a história do grupo ou classes de pertença do agente. Os agentes enquanto operadores práticos encontram no campo dos possíveis os limites da sua acção, encontrando-se esse campo limitado pela configuração específica do lugar ocupado na estrutura social.

No estudo das representações sociais estão formulados dois grandes objectivos compreender o processo criativo de formação da vida social ao invés de formas estruturais pré-estabelecidas, bem como compreender a mudança social. Assim, a teoria das representações sociais foca os processos criativos, a geração do novo, os processos de transformação social e mental nos significados que têm para os indivíduos. Por isso as representações sociais estão intrinsecamente ligadas à análise de um mundo em rápida transformação. Embora Moscovici37 destaque o que denomina representações «polémicas», ou seja, representações geradas no curso do conflito social, mutuamente exclusivas e determinadas por relações sociais antagónicas inter-grupais, não nega a existência de outros níveis representacionais, dotados de um grau mais elevado de estruturação e cristalização temporal, as representações emancipadas possuidoras de um certo grau de autonomia relativamente aos segmentos sociais inter-actuantes, e as representações hegemónicas (com alguma analogia com as representações colectivas de que falava Durkheim) que podem ser partilhadas por um dado grupo estruturado sem terem sido produzidas pelo grupo, assumindo estas um carácter mais ou menos uniforme e coercivo.

Como se pode constatar, quer em Bourdieu, quer em Moscovici, os aspectos mais estritamente simbólicos não podem ser desligados das condições objectivas nas quais são levados a cabo (condições essas que contribuem a constituir). Problemas como os da reprodução e mudança sociais só podem ser pensados ultrapassando a já clássica e excessiva dicotomia entre o material e o ideal, ou seja, tendo em mente que as produções simbólicas se inscrevem geneticamente, mas também performativamente, numa realidade social já constituída e que se vai constituindo, nomeadamente, nos campos sociais de que fala Bourdieu e nas relações grupais de que nos fala Moscovici, i.e., nos lugares objectivos de luta subjectiva, também lugares subjectivos de luta objectiva.

Transformação e reprodução funcionam numa total interligação. E nesse sentido que Moscovici refere que:«We are fond of separating what should be kept together: conformity and innovation, resistance to change and change, relationships’ within and between the groups. On the contrary, the two terms of an opposition can be understood only in relation to each other.»38 Analogamente Bourdieu nega a cisão teórica reprodução/mudança, frisando o quão «est artificielle l’alternative de la statistique et de la dynamique»39, tentando, assim, abolir a distinção entre conflito e consenso, que, diz-nos, nos interdita de pensar todas as situações reais onde a submissão consensual se realiza no e pelo conflito40.

De facto, Bourdieu, ao contrário do carácter exclusivamente reprodutivo que alguns autores têm imputado à sua teoria, não nega a inovação, nega a consciência transcendental e racional como estando na génese das práticas sociais. As estratégias dos agentes nascem do seu sentido prático e desse operador de cálculo inconsciente que é o habitus, realçando-se aqui os limites da consciência possível, socialmente delimitados. A eficácia da orquestração objectiva das práticas levada a cabo pelo habitus reside, de facto, na ignorância dos limites da concertação explícita dessas práticas.

Assim não é no conceito de habitus, esse social incorporado mas aberto, que se pode eventualmente encontrar um excessivo acento reprodutivo de raiz estruturalista na proposta de Bourdieu. O habitus não nega a consciência e a reflexividade, funciona apesar delas. E no seguimento desta questão que Firmino da Costa afirma41: «A crítica ao conceito de habitus parece-nos equivocada. Não é no conceito de sistemas de disposições incorporadas, na análise dos processos de interiorização da exterioridade e de exteriorização da interioridade, (…), que se origina o enviesamento da excessiva centragem na reprodução, mas, cremos, no modelo dos mercados concorrenciais (alargados) onde se defrontam agentes utilitaristas (igualmente em sentido alargado)», ou seja, nos campos sociais autonomizados. Deste modo, é na economia das trocas simbólicas que se efectuam no interior dos campos (ou entre eles) e no postulado da maximização do lucro simbólico por parte dos agentes42 que se encontra o princípio fundamental da relativa adequação das estruturas cognitivas às estruturas objectivas.

Para Bourdieu, a realidade social está diferenciada em campos de práticas sociais relativamente autónomos, havendo, no entanto, uma homologia estrutural entre o funcionamento dos diversos campos e a estrutura das relações de classe (que são relações de poder assimétricas, portanto de dominação, no processo de divisão social do trabalho, material e simbólico). Assim, apesar do autor diferenciar mercado material e mercado simbólico, postula uma homologia formal estrutural entre ambos, cabendo ao último, nas sociedades capitalistas avançadas, o papel de transfigurar a verdade objectiva do arbitrário da dominação de classe. Deste modo, a produção de bens simbólicos cumpre a função de naturalizar e legitimar uma ordem social vigente.

Assim se pode perceber que, para Bourdieu, a ciência económica estude apenas «…um caso particular de uma ciência geral da economia das práticas, capaz de tratar todas as práticas, inclusive aquelas que se pretendem desinteressadas ou gratuitas, e destarte libertas da economia, como práticas económicas, orientadas para a maximização do lucro, material e simbólico.»43

Se a lógica de campo é, com certeza, uma dimensão infiltrante dos relacionamentos sociais, nota-se, contudo, em Bourdieu, um certo «imperialismo» do conceito de interesse44 apesar deste não ser um interesse racional e conscientemente estratégico, mas sim, um interesse estratégico de uma dada posição de luta objectiva num campo estruturado de posições diferencias, logo, interesse objectivo actualizado nas práticas estruturadas pelo sistema de disposições adquiridas. Portanto, embora em Bourdieu não haja uma transposição linear da força em sentido, parece-nos, no entanto, haver uma certa redução das práticas e representações à lógica de mercado concorrencial estruturadora de um dado campo. Ou seja, podemos vislumbrar, na obra de Bourdieu, um excessivo acentuar do que de campo pode haver na lógica das praticas.

Moscovici, por sua vez, afirma que as representações sociais estão em estreita relação com as relações sociais, sendo estas elementos fundamentais da sua constituição. Assim, podemos nós dizer que as representações se constituem socialmente a vários níveis: primeiramente, são condicionadas pela estrutura da sociedade onde se desenvolvem (o que Bourdieu chamaria de campos…); em segundo lugar, a estrutura social remete-nos para clivagens, diferenciações (distinções…), relações de dominação na construção das diferentes representações sobre um mesmo objecto (logo, relações entre dominados e dominantes na luta pelo poder simbólico)’, em terceiro, constata-se que as diferenciações no espaço social se registam a pelo menos dois níveis: o nível das condições sócio-económicas (a que poderíamos chamar objectivas) e o nível dos sistemas de orientação simbólica, desde as normas e as representações mais persistentes até às atitudes e motivações efémeras, sendo que nenhum destes níveis é redutível ao outro.

O conceito de representação social surge-nos, então, associado à estruturação das relações grupais (inter e intra-grupais), espaço de reconstrução dessas representações sociais, espaço da dialéctica de transformação do velho em novo.

Em ambos os autores, embora com enfoques particulares (que muito têm a ver com as heranças disciplinares a que estão ligados) há um reconhecimento de que as condições sociais da produção de sentido e das práticas delimitam, grosso modo, os âmbitos de possibilidade do que se faz e do que se pensa. O que é em ambos interessante, embora muitos autores o neguem, é o carácter construtivo e criador que conferem aos sujeitos.

E neste sentido que Moscovici afirma que «The reason we know our life is that we create it day by day»45. São afirmações deste tipo, aliás, que têm levado a que muitos considerem a teoria das representações sociais como, apenas, mais uma perspectiva fenomenológica sobre a realidade social. Não é essa a nossa leitura, porque, como já se viu, Moscovici não nega os condicionalismos sociais e os âmbitos grupais que estruturam o que é representável. Há aqui, apesar de tudo, uma relativa redução da realidade social estruturante a apenas processos interactivos grupais, parecendo adquirir as representações sociais uma espécie de independência face às relações sociais objectivas, havendo assim uma autonomia dos processos simbólicos, o que pode reificar o representacional desligando-o da sua génese profunda.

Bourdieu é, por seu lado, acusado de fazer exactamente o oposto, ou seja, de cair num reducionismo estruturalista. Esta não é também a leitura que fazemos da sua obra. Tal é patente quando escreve que «…le monde social est aussi «représentation et volonté». Représentation, au sens de la psychologie mais aussi du théatre, et de la poli tique, (…). Ce que nous considérons comme réalité sociale est pour une grand part représentation ou produit de la représentation, en tous les sens du term46.

Como se pode ver pelo acima dito, Bourdieu, usa também o termo representação no sentido de delegação, de grupo de mandatários (os representantes), e no sentido de ritos interactivos, do que se representa face a outrem. O que aqui interessa particularmente é, apesar dessa pluralidade de usos, o que Bourdieu entende por representação como é para a Psicologia, i.e., uma representação simbólica, de génese social, que funciona como matriz de significações e classificações, quer discursivas, quer práticas.

Por outro lado, é de realçar a relação entre essas «práticas representacionais» e os campos de lutas objectivas pelo poder de nomeação (relação essa mediada pelo habitus). Representar é transfigurar alegoricamente uma relação de força. Em Bourdieu, a construção de categorias perceptivas e de conteúdos avaliativos, que ao representarem o mundo o constituem, está estreitamente ligada ao princípio de autoridade que domina num dado campo. Nomeia com efectividade quem está, pela lógica desse campo, instituído no poder de nomear, e que, nomeando, consagra o princípio de consagração do poder de consagrar.

De facto, para este autor, o mundo social é um lugar de lutas sobre palavras e isto porque as palavras fazem as coisas e mudar as palavras, ou melhor, as representações, é mudar as coisas, mudar o mundo social que nos cria. Assim, os agentes lutam pelo poder simbólico, do qual o poder de nomeação, de trazer à realidade, de constituir, de nomeando fazer existir, é uma das manifestações mais típicas. «Répresenter, porter au jour, produire, n’est pas une petite affaire. Et l’on peut, en ce sens, parler de création.»47 Apesar desta afirmação, as representações têm, para Bourdieu, o efeito fundamental de consagrar e legitimar a ordem estabelecida, enunciando simbolicamente a violência arbitrária de uma relação de força, de poder, metamorfoseando, desta maneira, dominação objectiva em violência simbólica, cuja eficácia reside exactamente no facto de não ser percebida como arbitrária, mas sim como natural e justa48.

Contudo, apesar desta lógica de legitimação simbólica do arbitrário do poder de um campo, o campo, como campo de lutas objectivas, é o lugar privilegiado da mudança, pois as lutas pela maximização do lucro simbólico levam a estratégias49 extremamente diversificadas. Este processo é enfatizado quando se verificam discordâncias entre as aspirações subjectivas e as condições objectivas de sucesso, assim, a desadequação entre as estruturas cognitivas e as estruturas objectivas é um importante factor de inovação, pois as contradições específicas dos modos de reprodução num campo são dos factores mais importantes da mudança. Apesar de tudo, a mudança social parece estar aqui demasiado confinada à lógica dos interesses imanentes a um dado campo de posições estruturais.

Por seu lado, na teoria das representações sociais de Moscovici o enfoque na mudança social é claramente privilegiado em detrimento dos aspectos mais permanecentes e reprodutivos do social. Embora a actividade representacional não seja uma processo totalmente transformativo e de inovação, pois a integração do novo, do inesperado, é feita a partir das categorias simbólicas pré-existentes (que por sua vez se adaptam ao que de novo encontram), transparece, apesar de tudo, uma ideia dominante de fluidez e instabilidade da realidade social.

3. Conclusão: «faire des choses avec les mots.s50

As noções de habitus e de representação social são, de algum modo, relativamente compatíveis e articuláveis, sendo de salientar que se referem a níveis diferentes de uma mesma realidade. São estruturas específicas, de produção dinâmica do social (para transformá-lo ou reproduzi-lo), estruturas modeladas pela sua inserção em campos sociais determinados, cuja constituição contribuem a modelar. Assim, são indispensáveis, a níveis diferentes, é certo, para que possamos compreender não só a realidade estruturada, mas também a estruturação da realidade.

Quer Pierre Bourdieu, quer Serge Moscovici, ao ultrapassarem as dicotomias em que se encerrou a ciência social, ultrapassam também excessivos vícios cartesianos no pensamento científico, de divisão antinómica entre opostos irredutíveis. Salientam ambos que a realidade é um processo relacional, não redutível a uma realidade atomística ou fenomenológica nem a uma realidade holística de estruturas anónimas que tudo coagem.

Ambos nos dizem, então, que, de facto, produzimos o real. Mas também que o que podemos produzir é delimitado pelas condições em que o produzimos, sendo certo que o que produzimos vem alterar as condições da nossa produção, logo, os limites possíveis do que podemos produzir.

Porém, há em ambos uma diferente equivalência epistémica, não total e exclusivista, entre os dois termos interligados do social - o objectivo e o subjectivo.

Bourdieu está particularmente interessado em saber de que modo os enquadramentos sociais e institucionais em que nascem e vivem os indivíduos (ou seja, os âmbitos sociais entendidos não apenas no sentido de meio social geral enquadrador de interacções colectivas ou grupais) delimitam os seus sistemas de disposições, e assim, estruturam as suas práticas e as suas representações, logo o que é pensável e o que é fazível. Assim, interessa-lhe saber quais são os limites do que é possível trazer à realidade, quer pelo que fazemos (práticas), quer pelo que pensamos (representações). Bourdieu, ao dizer-nos que é trabalho da sociologia «… construir e un modèle vraie des luttes pour l’imposition de la représentation vraie de la réalité qui contribuent à faire la réalité telle qu’elle se livre à Penregistrement.»51, diz-nos, portanto, que a construção social da realidade está, em última análise, dependente do sentido de jogo (illusio) de um determinado campo social estruturado. Deste modo, esse processo de constituição da realidade é um processo de luta, mas de lutas num campo, logo, lutas que estão dependentes da lógica dos interesses imanentes desse campo.

Por seu lado, em Moscovici esse aspecto sócio-estrutural do campo está pouco conceptualizado, parecendo haver às vezes uma relativa estruturação autónoma do simbólico, do representacional (não só das representações mas também das identidades), face às coordenadas sócio-estruturais em que os indivíduos vivem, portanto, estando estes, de certo modo, desvinculados da sua posição na estrutura social, e, assim, do contexto estrutural no qual se desenrolam as actividades grupais. A este autor interessam particularmente os processos expressivos e práticos pelos quais os indivíduos constroem socialmente os contextos da sua vivência, ou seja, os modos e maneiras através dos quais uma sociedade pensante se vai processualmente constituindo e realizando. Este autor dá, então, ênfase aos processos de mutação rápida pelos quais os indivíduos mudam, intersubjectivamente, as representações sociais, logo, mudando, também, os contextos de produção social dessas representações.

Em Bourdieu é dada uma prioridade epistemológica à ruptura objectivista com o sentido fenoménico da realidade. Tal não implicando uma transposição linear do sentido da força à força do sentido, mas sim salientando que só podemos mudar partindo do que temos, e que, portanto, os limites da nossa mudança residem consideravelmente naquilo que podemos eventualmente mudar.

Moscovici, por seu lado, salienta que a força do sentido é factor de constituição e mudança do sentido da força. Não negando que a sociedade na qual nascemos e vivemos nos molda, o que Moscovici salienta é que nós a moldamos.

Mas, em ambos, este duplo processo pelo qual produzimos as condições que nos produzem não deve ser visto como uma luta heróica entre os grilhões e a liberdade, mas como um criar prático das práticas que nos criam. Ou seja, o acento epistémico diferenciado de cada um dos autores não implica um retorno aos pares dicotómicos que, de facto, ultrapassaram, mas antes um trabalhar diferencial de aspectos diferentes de um mesmo primado da razão prática.

Assim, qual o balanço e qual a articulação possível entre estas duas propostas teóricas?

O conceito de habitus proporciona-nos um forte instrumento para que possamos compreender os processos através dos quais as estruturas sociais são incorporadas e vividas pelos agentes. O conceito de representação social fornece-nos, por sua vez, a compreensão dos processos através dos quais os actores constroem socialmente a realidade que os condiciona.

Ora, para pensar o habitus é preciso pensar os campos e para pensar as representações sociais é preciso pensar os relacionamentos grupais. Cremos que é nestes dois conceitos, os campos sociais e os grupos sociais, como são entendidos respectivamente por Bourdieu e Moscovici, que residem as principais insuficiências das propostas teóricas destes dois autores. Nomeadamente, a saber, a dificuldade que o primeiro tem, apesar de todos os pontos de fuga que eventualmente coloca no seu sistema teórico, em pensar o mutável, o irremediavelmente novo; e a dificuldade que sentimos no segundo em, por seu lado, pensar o permanecente, o irremediavelmente anterior, e isto apesar de todas as considerações preliminares em que diz tomar em conta o que de estrutura pode haver nos relacionamentos e pensamentos dos indivíduos.

Parece-nos permanecerem em ambos os autores ainda alguns hábitos de pensamento que muito devem às suas inserções disciplinares. A Psicologia Social ainda pensa o social a partir do indivíduo, a Sociologia ainda pensa o indivíduo a partir do social. O que nos parece ser necessário é uma perspectiva transdisciplinar e pluriparadigmática que alcance uma verdadeira e integrada integração psicossociológica.

 

Referências

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Agradecimentos

Várias versões deste texto foram comentadas pelo Professor Doutor Jorge Vala e pelo Dr. António Firmino da Costa .Agradecemos profundamente o seu inestimável e imprescindível apoio, comentários e críticas sem os quais não teria sido possível chegar à versão final aqui apresentada.

 

Notas

1Cfr. Jorge Vala, Notas sobre as Representações Sociais e as Orientações Paradigmáticas da Psicologia Social, dact., s.l., 1993, p. 16.

2Pierre Bourdieu, «Esboço de uma teoria da pratica», in: R. Ortiz e F. Fernandes (org.). Pierre Bourdieu, São Paulo, Ática, 1983, p. 60.

3Serge Moscoici, «Le domaine de la psychologie sociale», in: S. Moscovici (ed.), Psicochologie Sociale, Paris, PUF, 1984, p. 5.

4Contudo o conceito de habitus é uma formulação anterior à publicação da obra referida. Foi introduzido por Pierre Bourdieu na tradução francesa que fez em 1967 de dois artigos de E. Panofsk (E. Panofsk Architecture gothique et pensée scolastique, Paris, Minuit, 1967). No seguimento do Esquisse... Bourdieu viria a aperfeiçoar e desenvolver a sua proposta teórica em Le Sens Pratique (Paris. Minurt, 1980).

5P. Bourdieu, «Esboço de uma teoria da prática», in: R. Ortiz e F. Fernandes (org.), Pierre Bourdieu, São Paulo, Ática, 1983, p. 7.

6O que é o mesmo que dizer, das relações de concorrência ou de antagonismo objectivo ou de relações de poder e autoridade.

7P. Bourdieu, ibid., p. 61.

8Cfr. P. Bourdieu. Réponses, Paris. Éd. du Seuil, 1992, p. 114.

9Também de importância capital para a força da proposta teórica de Moscovici foi o artigo que escreveu em 1984 - «The phenomenon of social representations» (in R. Farr e S. Moscovici [ed.]. Social Representations, Cambridge, Cambridge Uni. Press 1984).

10Serge Moscoivci cit. in Jorge Vala, Representações Sociais - para uma Psicologia Social do Pensamento Social, dact., s.l.. s.d., p. 14-15.

11Cfr. W. Doise, «Representations Sociales», in R. Ghiglione et al. (ed.), Traité de Psychologie Cognitive, Paris, Dunod, 1990.

12Serge Moscovici cit. in Jorge Vala, «Sobre as representações sociais - para uma epistemologia do senso comum», Cadernos de Ciências Sociais, no 4, Abril, 1986 p. 5.

13Serge Moscovici cit. in J. Vala, Representações Sociais - para uma Psicologia Social do Pensamento Social, p. 67.

14Deve-se notar, no entanto, que as características acima referidas assumem, em Psicologia Social, uma conteúdo diferente daquele que têm em Sociologia, ou seja, restringem-se a um âmbito inter e intra-grupal (mesmo que as situações não sejam de interaccão directa entre os membros dos diversos grupos) de relações estruturadas de poder diferencial entre os indivíduos. Portanto, as inserções objectivas dos indivíduos são entendidas como construções sócio-cognitivas, como ordem simbólica de percepção das pertenças a determinados grupos, e não como coordenadas estruturais de posicionamento na estrutura social (estrutura de classes).

15Cfr. Denise Jodelet, Représentations sociales: phénomènes, concept et théorie» in: S. Moscovici (ed.), Psychologie Sociale, Paris PUF. 1984, p. 362.

16Cfr. Francisco Elejebarrieta, «Las Representatdones sociales», in: A. Echeberria Echabe (org.), Psicologia Social Sociocognitiva, Bilbao, Desclée de Broume, 199 1, p. 263.

17Jorge Vala, Representações Sociais -para uma Psicologia Social do Pensamento Social, dact., s.l. s.d., p. 5.

18Cfr. F. Elejebarrieta. ibid., p. 268

19São os seguintes os dois tempos analíticos do processo de construção (sócio-cognitiva) das representações sociais (S. Moscovici, La Psychanalyse, son image et son public, 2a ed., Paris. PUF, 1976): a objectiação. que diz respeito aos mecanismos organizativos e constituintes das representações sociais bem como aos modos pelos quais estas são tomadas categorias naturais (esta construção social da realidade tem três fases: selecção e descontextualização da informação, formação de um esquema figurativo estruturante, naturalização - o ideal torna-se real); a ancoragem, pois uma representação ancora sempre nessas categorias cognitivas pré-existentes que são os grupos sociais, e, em ultima análise, é sempre devolvida à realidade social, assinalando a cabo as suas funções.

20Decorrentes dos factores sócio-cognitivos e sociais da sua génese, bem como das funções que levam a cabo, podemos apontar três grandes parametros que condicionam a constituição das representações sociais. São eles a dispersão da informação (a informação está diferencialmente distribuída pelo espaço social), a focalização (as trajectórias individuais e as pertenças grupais equacionam um âmbito de visibilidade social e o grau de estruturação de dada representação social sobre um objecto particular) e a pressão à inferência (necessidade de apelar a quadros de sentido para a rápida tomada de posições e opiniões práticas, individual e grupalmente).

21Pierre Bourdieu cit. in: Alain Accardo e Philippe Corcujj, La Sociologie de Bourdieu, Bourdeux, La Mascare, 1986, p. 56.

22Pierre Bourdieu, Le Sens Pralique, Paris, Éd. de Minuit, 1980, p. 80.

23Cfr. Serge Moscoici, «Notes towards a description of social representations», European Journal of Social Psychology, vol. 18 (3). p. 213 etpassim. Este carácter aberto das representações sociais tem sido contestado por autores como Gustavjahoda, que numa certa tradição molecularista do pensamento anglo-saxónico, acusa Moscovici de ser pouco explícito e de generalismo, caindo numa indefinição do próprio conceito de representação social que se esbate nos confrontos com outros conceitos como serlso comum, ideologia ou cultura (G. Jaboda, «Critical notes and retlections on ‘social representations’», European Journal of Social Psychology, vol. 18 (3) 1988).

24P. Bourdieu, Choses Dites, Paris, Éd. de Minuit 1987, p. 19. Nesta citação de Bourdieu. na senda das discussões sobre os paradigmas teórico-sociológicos, Bourdieu usa o termo sujeito como sinónimo do significado que tradicionalmente tem revestido o termo actor em Sociologia.

25P. Bourdieu, ibim., p. 24.

26Na teoria das representações sociais nunca é dito que o actor social é livre clarividente na construção de um mundo que lhe é exterior. O actor não é um Deus ex machina, mas um indivíduo que em conjunto com outros indivíduos, constrói na prática e no discurso sobre a prática uma partitura de acção e interpretação sempre mutável. O processo de construção das representações sociais assemelha-se, segundo Jorge Vala (Notas sobre as representações Sociais e as Orientações Paradigmáticas da Psicologia Social, dact., s.l., s.d., p. 37 et p assim), a uma orquestra de, jazz que improvisa como que numa jam sessiom.

27Moscovici diz-nos (S. Moscovici, ibid., p 231) que «… representations are forms of world making. There is nothing arbitrary in this process, since the regularities of thought, language and life in society act all yogether to delimit the possibilities. That is why the concept of constructing once trivialized, loses its exact emancipating character, if it is envisaged as a simple product of talking and of consensus among individuais.»

28Daí o substituir o termo acção social pelo de práticas.

29Cfr. P. Bourdieu, O Poder Simbólico, Lisboa Difel, 1989. p. 61; P. Bourdieu, Choses Dites, Paris. Ed de Minuit. 1987 p. 23.

30Cfr. P. Bourdieu, Choses Dites, Paris. Éd. de Minuit, 1987, p. 26.

31P. Bourdieu, A Reprodução, Lisboa. Ed. Vega, s.d., p. 7.

32S. Moscovici, ibid., p. 231.

33S. Moscovici cit in Jorge Vala, Representações Sociais - para uma Psicologia Social do Pensamento Social, dact., s.l.. s.d., p. 5.

34Cfr. P. Bourdieu, Réponses, Paris, Éd. du Seuil, 1992, p. 103.

35Cfr. idem, p. 102/103

36P. Bourdieu cit. in A. Accardo e P. Philippe, La Sociologie de Bourdieu, Bourdeux, La Mascarei, 1986, p.83,

37Cfr. Jorge Vala, Notas sobre as Representações Sociais e as Orientações Paradigtmáticas da Psicologia Social, dact., s.l., 1993, p. 47.

38Serge Moscovici. «Notes towards a description of Social Representations», European Journal of Social Psychology, vol. 18 (3), p. 223.

39P. Bourdieu cit. in A. Accardo e P. Corcujj, ibid. 1986, pp. 19.

40Cfr. P. Bourdieu, Choses Dites, Paris, Éd. de Minuit, 1987, p. 55.

41A. Firmino da Costa, «Novos contributos para velhas questões da teoria das classes sociais», Análise Social, vol. XXIII (98), p. 675.

42Esta afirmação não de e ser de modo algum entendida como dizendo que Bourdieu transpõe para a sua teoria dos campos um modelo de acção racional maximizadora e estratégica. no sentido que é dado a estes termos pelas teorias do homo economicus. Tal afirmar seria substituir «… as estratégias práticas e sobredeterminadas, que não são necessariamente conscientes e calculadas e que exprimem os interesses, ao mesmo tempo estéticos e sociais [Bourdieu refere-se ao campo cultural], associados a uma posição no campo» por «… estratégias exclusivamente e explicitamente orientadas por uma espécie de vontade de poder genérica que poderia ser exercida tanto no campo político como no campo económico» (P. Bourdieu. O Poder Simbólico, Lisboa, Difel, 1989, p. 72. nota 16).

43Pierre Bourdieu cit in S. Miceli, «A Força do Sentido», in Pierre Bourdieu, A Economia das Trocas Simbólicas, São Paulo, Ed. Perspectiva, p. XIX.

44Conceito que o autor tem indo recentemente a substituir pelo de Illusio (Cfr. P. Bourdieu, Choses Dites, Paris. Éd de Minuit, 1987. pp. 106, 124 e 176).

45S. Moscovici, ibid., p. 229.

46P. Bourdieu, Choses Dites, Paris. Éd. de Minuit, 1987, pp. 68/69.

47Idem, p. 177.

48Cfr. P. Bourdieu, Poder Simbólico, Lisboa, Difel. 1989, p. 38 et passim.

49De facto, «… loin d’être posées comme telle dans un projet explicite et conscient, les stratégies suggérées par l’habitus comme sens du jeuvisent, (…), des ‘potentialités objectives’ immédiatement données dans le présent imédiate.» (P. Bourdieu, Réponses, Paris, Éd. du Seuil, 1992, p. 104).

50J. Austin citado por P. Bourdieu (Réponses, Paris, Seuil, 1992, p. 122).

51Pierre Bourdieu, Leçon sur la Leçon, Paris, Minuit, 1982, p. 16.

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