SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.14 número1Da demência precoce à esquizofreniaA emoção expressa dos familiares de esquizofrénicos e as recaídas dos doentes índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Psicologia

versão impressa ISSN 0874-2049

Psicologia vol.14 no.1 Lisboa jan. 2000

 

Aspectos neuropsicológicos da esquizofrenia

A neuropsychological approach of schizophrenia

 

Manuel C. R. Domingos1

1Neuropsicólogo, Laboratório de Neuropsicologia Clínica do Hospital de São José, Lisboa.

 


RESUMO

A esquizofrenia tem uma base neuropatólogica de contornos difusos, envolvendo várias áreas encefálicas, que se traduz clinicamente em alterações neuropsicológicas, para além dos distúrbios comportamentais e da personalidade que constituem a sua semiologia clássica. Neste trabalho, de abordagem à neuropsicologia dos quadros esquizofrénicos, procurámos enumerar as principais disfunções da actividade nervosa complexa presentes na generalidade dos doentes, correlacionando-as simultaneamente com as áreas encefálicas envolvidas no processo patológico. Por outro lado, aludimos à vertente neuroquímica da neuropsicopatologia da esquizofrenia, aflorando também o efeito da terapêutica farmacológica ao nível da operatividade cognitiva e comportamental.

Palavras-chave Esquizofrenia; alterações neuropsicopatológicas; alterações anatomofuncionais; disfunções neuroquímicas.


ABSTRACT

Schizophrenia has a neuropathological basis, compromising the brain in an apparent diffuse way, involving several cerebral areas and causing several neuropsychological, behavioural and personality disfunctions. This setting seems to be the main kind of disturbances found in schizophrenic patients. In this introductory approach of the neuropsychological aspects of schizophrenia we intend to enumerate the main complex nervous activity disturbances frequently present in the disease, correlating them with the cerebral areas thought to be involved in the pathological process. On the other hand, and besides focusing some neurochemistry aspects of schizophrenia, we will refer the possible effects of pharmacological therapy on the cognitive and behavioural performances as well.


 

A ideia da existência de uma neuropsicologia da esquizofrenia é relativamente recente (Frith & Done, 1988).

A esquizofrenia pode ser inserida no grupo das doenças progressivamente desagregadoras dos processos neuropsicológicos e comportamentais mediados pelo encéfalo, tomando-se, para além da sua identificação psiquiátrica clássica, num quadro eminentemente neuropsicopatológico, dadas as variadas e acentuadas alterações da dinâmica cognitivo-operativa (ou da actividade nervosa complexa) que invariavelmente se encontram nos doentes portadores de tal patologia do estado mental. Tudo indica que Alzheimer (1897) e Kraepelin (1919) terão sido os primeiros clínicos a considerarem a doença como orgânica, baseando-se em constatações neuropatológicas difusas do encéfalo, analisando e descrevendo a chamada dementia praecox. Contrariamente, as correntes psicanalíticas defendiam uma origem puramente psíquica, derivada da insolvência de problemas pessoais graves, que originam uma conflitualidade interior progressivamente acentuada, causando a ruptura do aparelho psíquico e uma incapacidade crescente para interagir com o meio, de forma adequada. Mas, apesar desta ideia, nenhum destes gigantes da psicopatologia jamais considerou (tanto quanto se sabe) a esquizofrenia como uma entidade abordável, do ponto de vista terapêutico, pela psicanálise.

Abordagem neuropsicológica da esquizofrenia

Hoje, a esquizofrenia é, de forma inquestionável, considerada uma disfunção encefálica (Nasrallah & Weinberg, 1986), geradora de perturbações cognitivo-operativas, do comportamento e da personalidade. Na realidade, as evidências a favor da sua origem neuropatológica têm-se acumulado ininterruptamente nos últimos vinte anos, graças às descobertas e avanços das neurociências cognitivas e das suas variadas técnicas clínico-experimentais, com relevo para a neuro-imagiologia (TAC, RMN e PET) e para a neuroquímica. Também a neuropsicologia, que igualmente se desenvolveu significativamente desde há vinte anos para cá, começou a estudar a esquizofrenia e constatou que os padrões disfuncionais encontrados, nos vários estudos efectuados, apontavam para quadros clínicos de predominância difusa, assemelhando-se às síndromes demenciais, mas apresentando, relativamente a estas, diferenças semiológicas e dinâmicas significativas. Do ponto de vista anatomoclínico, a constelação sintomatológica neuropsicopatológica da esquizofrenia (a que adiante nos referiremos de modo mais detalhado) correlaciona-se, nas mais das vezes, com alterações da histologia fronto-temporo-límbica. Em muitos casos é patente a dilatação dos ventrículos laterais ou ventriculomegália (Shelton & Weinberger, 1986; Schwarzkopf et al, 1990). Alguns doentes apresentam um espessamento significativo do corpo caloso, conforme constataram, em estudos post mortem, Rosenthal e Bigelow (1982) e Nasrallah et al. (1983), e em investigações in vivo, através da ressonância magnética nuclear (Nasrallah et al., 1986).

Reportando-nos, agora, mais proximamente, aos estudos neuropsicológicos da esquizofrenia, de relevância incontestável (Frith, 1995; Gray et al, 1991) parece haver dados — seguramente — sugestivos de compromissos de tipo pré-frontal, traduzidos por adinamia, no início (espontâneo) da acção, e acriticismo (Frith, 1995), que, no contexto da sintomatologia esquizofrénica, são considerados sintomas "negativos" (ou de redução da actividade). Por outro lado, a reactividade, descontextualizada e desinibida, aos estímulos que emanam do meio externo, sugere igualmente um compromisso pré-frontal. As alterações perceptivas, como as alucinações e os surtos delirantes, resultariam de uma desarmonização anatomofuncional córtico-subcortical generalizada (onde, mais uma vez, as áreas pré-frontais desempenham um papel crucial). As disfunções positivas da esquizofrenia parecem ser resultantes de uma alteração da funcionalidade córtico-subcortical, havendo a destacar o papel das conexões entre o sistema límbico (com relevo para o hipocampo) e os gânglios da base, no processo neuropsicopatológico (Gray et al, 1991). Assim, esta perturbação da neuropsicofisiologia conduz a uma desarticulação entre controlos emocional e intencional, que presidem à execução da acção.

No que toca à actividade cognitivo-operativa que é, como sabemos, a área de trabalho da neuropsicologia, existe um sem-número de alterações consequentes à instalação de um quadro esquizofrénico. Assim, e referenciando-nos às que mais frequentemente encontramos na nossa prática clínica, temos:

1) a anosognosia ou ausência de auto-consciência da doença, que se pode correlacionar com alterações do processamento de informação ao nível da porção orbitária das áreas pré-frontais ou das regiões parietais do hemisfério direito;

2) a ausência da capacidade de planeamento sequenciado das actividades quotidianas, indicadora do constante envolvimento pré-frontal na esquizofrenia;

3) o acriticismo, resultante de uma disfunção predominantemente orbitolímbica;

4) a incapacidade para iniciar tarefas, de forma espontânea, que resultará, principalmente, de uma alteração da dinâmica pré-frontal dorsolateral;

5) a disfunção da atenção, audioverbal e visuo-espacial, originada por um envolvimento difuso córtico-subcortical;

6) as alterações mnésicas (a curto, médio e longo termo), que se constituem em sinais sugestivos do envolvimento dos lobos temporais no processo patológico;

7) as apraxias dos membros superiores (ideomotoras e ideativas), consequentes a uma dinâmica disfuncional fronto-parietal (predominantemente) hemisférica esquerda;

8) a estereoagnosia e a grafastesia, que se manifestam após compromisso parietal direito ou esquerdo;

9) a desorientação temporal, espacio-geográfica e autopsíquica, tradutoras de um envolvimento difuso das estruturas encefálicas e da noção direita/esquerda, comum nas lesões ou disfunções parietais esquerdas;

10) a diminuição qualitativa do vocabulário, de tipo pré-frontal, com frequente perseveração;

11) a prosopoagnosia ou não reconhecimento de faces familiares, consequente a alterações da dinâmica temporal posterior bilateral (sendo geralmente a lesão direita mais volumosa do que a esquerda).

Cientes da vastidão, complexidade e polémica do tema tratado, que seguramente não se esgotará num artigo (por muito exaustivo que tente ser), procurámos fornecer uma visão de conjunto dos principais aspectos neuropsicológicos da esquizofrenia. No entanto, não gostaríamos de o encerrar sem aludir, embora de forma sucinta, a algumas correlações que parecem existir entre as alterações neuropsicológicas e a neuroquímica (conhecida!) dos quadros esquizofrénicos, e aos efeitos da medicação ao nível das disfunções cognitivo-operativas (ou da actividade nervosa complexa). Assim, e no que toca ao primeiro aspecto, durante muito tempo defendeu-se a hipótese segundo a qual a esquizofrenia resultaria de uma hiperfunção dos neurônios dopaminérgicos (opondo-se à doença de Parkinson, causada por uma carência de funcionalidade dos neurônios produtores de dopamina). actualmente, o primado dopaminérgico já não se colocará como explicação para a doença, embora as alterações desta monoamina se mantenham presentes no processo patológico. Acontece que a desregulação dopaminérgica parece associar-se a outras alterações neuroquímicas de tipo monoaminérgico. Assim, às disfunções daquele neurotransmissor juntar-se-ão as que atingem a serotonina, tão importante na regulação dos estados afectivos, do ciclo sono/vigia e da memória, e a noradrenalina, fundamental para a integração sensorial durante a vigília (Meunie & Shivallof, 1992). Por outro lado, parece-nos mais do que provável o envolvimento dos neurônios acetilcolinérgicos, já que a sua importância na dinâmica mnésica parece ser inquestionável, sendo que esta está frequentemente alterada nos doentes esquizofrénicos.

Finalmente, quanto à terapêutica neuropsicofarmacológica da esquizofrenia tudo indica que os neurolépticos têm um efeito positivo sobre a sintomatologia ne uropsicológica e comportamental positiva; pelo contrário, o mesmo já não acontece rá com os sinais cognitivo-operativos e da conduta, de tipologia negativa.

Comentários finais

Em conclusão, a análise neuropsicológica da esquizofrenia aponta-nos uma situação de (clara) difusibilidade anatomoclínica e de grande riqueza semiológica que no entanto, e contrariando a ideia de Kraepelin, não nos parece uma demência vera tal como as que vemos diariamente em consequência de doenças como as de Alzhe imer, Pick, Parkinson ou Creutzfeldt-Jackob.

Finalmente, e defendendo a existência inequívoca de uma interacção sistemicofuncional de todas as estruturas encefálicas (à boa maneira dessa constante e ilustre referência que foi, e sempre será, J. Hughling Jackson) poderemos, com uma dose apreciável de segurança, defender a ideia segundo a qual quaisquer lesão ou disfunção que atinjam uma ou várias áreas que compõem o encéfalo poderão sei potenciais causadoras de alterações de tipo esquizofreniforme, sejam elas predominantemente cognitivo-operativas ou comportamentais. No entanto, aquelas parecem ser mais comuns e graves, após compromisso mais ou menos maciço do eixo fronto-temporo-límbico, o que se correlaciona positivamente com os achados neuro-imagiológicos obtidos em grande número de doentes.

 

Referências

Alzheimer, A. (1897). Beitrage zur pathologischen anatomie der himrinde und zur anatomischen grundlage der psychosen. Monatsschrift Psychiatrie und Neurologie, 2, 82-120.         [ Links ]

Frith, C. & Done, D. (1988). Towards a neuropsychology of schizophrenia. British Journal of Psychiatry, 153,437-443.         [ Links ]

Frith, C. (1995). Neuropsychologie cognitive de la Schizophrenie. Paris: PUF.         [ Links ]

Gray, J., Feldon, J., Rawlins, J., Flemsley, D., & Smith, A. (1991). The neuropsychology of schizophrenia. Behavioural and Brain Sciences, 14,1-84.         [ Links ]

Kraeplin, E. (1919). Dementia Praecox and paraphrenia. Edimburgo: E. & S.         [ Links ]

Meunier, J-M., & Shivallof, A. (1992). Neurotransmetteurs: Bases neurobiologiques et pharmacologiques. Paris: Masson.         [ Links ]

Nasrallah, H., Mcalley, M., & Rausher, F. (1983). A histological study of corpus callosum in subtypes of chronic schizophrenia. Psychiatry Research, 8,151-160.         [ Links ]

Nasrallah, H., Andreasen, N., & Cofman, J. (1986). A controlled magnetic resonance study of corpus callosum thickness in schizophrenia. Biological Psychiatry, 21, 174-282.         [ Links ]

Nasrallah, H., & Weinberg, D. (1986). Handbook of schizophrenia. Amesterdâo: Elsevier.         [ Links ]

Rosenthal, R., & Bigelow, L. (1982). Quantitative brain measurements in chronic schizophrenia. Bristish Journal of Psychiatry, 121,259-254.         [ Links ]

Schwarzkopf, S., Olson, S., & Nasrallah, H. (1990). Third and lateral ventricular volumes in schizophrenia. Psychopharmacological Bulletin, 26, 385-391.         [ Links ]

Shelton, R., & Weinberger, D. (1986). X-ray computerized tomography studies in schizophrenia: A review and synthesis. In H. A. Nasrallah & D. R. Weinberger (Ed.), Handbook of schizophrenia (Vol. I). Amesterdâo: Elsevier.         [ Links ]

Creative Commons License Todo o conteúdo deste periódico, exceto onde está identificado, está licenciado sob uma Licença Creative Commons