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Psicologia

versão impressa ISSN 0874-2049

Psicologia vol.14 no.1 Lisboa jan. 2000

 

O treino de competências sociais em doentes psicóticos

The social skills training of psychotics patients

 

Ana Marques1

1Terapeuta ocupacional.

 


RESUMO

O doente esquizofrénico apresenta, para além das alterações psicopatológicas, alterações nas suas várias esferas de relação: meio familiar, social, escolar e ou profissional, exigindo abordagens terapêuticas em contexto multidisciplinar. Neste artigo, a autora procurou descrever a abordagem cognitivo comportamental — treino de competências sociais — usada segundo a terapia ocupacional, entendida como uma abordagem que complementa o tratamento, promove o saber lidar com as dificuldades e necessidades emocionais, permite a expressão emocional, tornando a sua comunicação interpessoal mais eficaz, e oferece a oportunidade de redescobrir e reintegrar capacidades e competências interpessoais, envolvendo o indivíduo activamente no processo terapêutico.

Palavras-chave Reabilitação; competências sociais; doente psicótico.


ABSTRACT

The schizophrenic patient shows psychopathological alterations as well as changing in his various spheres of relationships: familiar, social, scholastic, and/or professional background, demanding therapeutic approaches in multidisciplinary background. In this essay, the author tried to describe the cognitive behaviourist approach — social skill training — used as occupational therapy. Seen as a complementary approach to the treatment, promotes the "know how" to deal with the emotional difficulties and needs, allows emotional expression making its interpersonal communication effective and offers the opportunity to rediscover and reintegrate interpersonal abilities and skills, actively involving the individual in the therapeutic process.


 

Não se pode não comunicar (Watzlawick)

Este axioma enunciado por Watzlawick e colaboradores (1967) no livro Pragmatics of Human Communication, constitui um dos núcleos centrais em torno do qual se desenvolvem muitas das perturbações do paciente esquizofrénico.

Esta frase paradigmática acentua o facto de que qualquer comportamento de um sujeito emissor que seja apreendido por um sujeito receptor terá para este, sempre um qualquer significado.

A comunicação é um processo complexo, que ultrapassa largamente a expressão verbal: se a simples presença do emissor pode constituir, só por si, uma forma de comunicação, a sua ausência inesperada encerra frequentemente uma mensagem de maior significado (Abreu, 1998). No limite, comunicar que não se quer comunicar é uma forma de comunicação.

Esta impossibilidade absoluta, que aprisiona quem quer fugir à comunicação, constitui um ponto nodal da problemática esquizofrénica: se ela alimenta e perpetua a doença, poderá também constituir uma das chaves terapêuticas para o seu tratamento.

O psicótico tem uma grande dificuldade em tolerar e regular a proximidade interpessoal, por manifesta incapacidade de modular os afectos associados à intimidade. A comunicação com o outro é, assim, um processo francamente perturbado e muito penoso, do qual procuram fugir de forma caracteristicamente inábil.

Estes pacientes não usam estratégias de evitamento na comunicação, antes procuram "desqualificá-la" através de neologismos, de discurso circunstancial e, mais frequentemente, tangencial, ou assumindo posturas e comportamentos bizarros, que conduzem o indivíduo psicótico para o autismo, para a introversão, para a perda de contacto com a realidade e oposição ao mundo exterior, sentindo-se assim incapazes de satisfazer as suas necessidades relacionais.

A sua qualidade de vida encontra-se, pois, grandemente prejudicada por essas necessidades não satisfeitas, sentindo-se os indivíduos inibidos, solitários e deprimidos.

Para responder às necessidades desta população, a intervenção da terapia ocupacional procura, assim, desenvolver o treino de competências sociais, focalizado nestes défices, procurando melhorar as competências a estes níveis; o que idealmente deverá ser feito em dois tempos distintos: primeira fase, em situação terapêutica controlada; e numa segunda fase, em situação real, ou seja, no contexto relacional em que o indivíduo vive.

O treino de competências sociais, metodologia desenvolvida principalmente nos últimos 15 anos por vários autores (e. g. Wallace et al, 1986; Liberman et al, 1982; Bellack & Muser, 1984; Brady, 1984) que, em mais de 50 estudos, estabelecem claramente a sua importância no tratamento de doentes esquizofrénicos.

Os resultados desses estudos concluem que: a) os pacientes podem aprender os comportamentos necessários à melhoria das suas capacidades sociais dentro das relações interpessoais específicas; b) os pacientes possuem dificuldades de generalização, principalmente para comportamentos mais complexos, daí a necessidade de desenvolver este tipo de treino em meio natural utilizando para isso os recursos disponíveis de suporte ao indivíduo; c) o treino de competências sociais em regime intensivo pode reduzir os sintomas clínicos do doente; d) o doente esquizofrénico, estabilizado graças aos neurolépticos e em aprendizagem intensa dos comportamentos sociais, ganha capacidades adaptativas que lhe minimizam e facilitam o ultrapassar dos sintomas psicóticos; e) doentes esquizofrénicos, acompanhados em consulta externa recebendo ao mesmo tempo um treino de competências sociais, apresentam uma redução de sintomas, sendo estas melhorias mais duráveis e benéficas relativamente a doentes internados.

Liberman et al. (1982) conclui ainda que: 1) a adaptação social pré-mórbida é um bom indicador de evolução dos distúrbios psiquiátricos no doente; 2) quando o funcionamento social nas famílias é deficiente, as crianças apresentam um maior risco de esquizofrenia; 3) os défices crónicos nas competências sociais permitem predizer as recaídas e os reinternamentos; 4) a aprendizagem de competências sociais no contexto familiar pode reduzir os climas emocionais stressantes e, simultaneamente, reduzir as taxas de recaídas dos doentes esquizofrénicos; 5) o treino de competências sociais diminui a vulnerabilidade ao stress e permite o aumento da capacidade de lidar com o mesmo.

Partindo destes pressupostos realizamos uma sessão semanal, onde as competências sociais, a comunicação verbal e não verbal, os sentimentos, as atitudes e percepções num contexto relacional são combinadas entre si, determinando a melhoria das relações sociais e promovendo, assim, a realização e concretização das necessidades emocionais da pessoa.

Importa, aqui, realçar alguns conceitos e definir as linhas orientadoras que temos seguido no desenvolvimento deste trabalho.

O treino de competências sociais de orientação cognitivo-comportamental é um método que ensina a desenvolver competências necessárias à interacção social, através da utilização de várias técnicas específicas, nomeadamente: modificação de um comportamento, reforço positivo, lei de extinção, shaping, modelagem, resolução de problemas, role play, role reversal e homework — trabalho prático em situação real.

Competência social é uma série de comportamentos inter-relacionais, dirigidos para um objectivo, que podem ser apreendidos e estão sob o controlo do indivíduo (Hargie et al., 1981).

As capacidades necessárias à competência social incluem: 1) uma percepção social e a compreensão das situações inter-relacionais; 2) um processo cognitivo, ou seja, a tradução das percepções (várias possibilidades de acção e uma capacidade de escolha da melhor solução; 3) devolver a escolha ao outro (feed-back) utilizando a comunicação verbal e não verbal adequada.

Este método é composto por diversos exercícios sequências: 1) apresentação ao paciente dos fundamentos do método, despertando-lhe a motivação; 2) desenvolver capacidades necessárias à satisfação das suas necessidades dentro do domínio definido pelo método; 3) ensinar o paciente a reconhecer as capacidades mantidas e identificar as capacidades a adquirir; 4) solicitar a participação activa no sentido de resolver os seus problemas, utilizando as aptidões adquiridas; 5) estimular o paciente a utilizar as aquisições feitas no seu próprio contexto de desempenho.

O processo terapêutico proporciona uma mudança gradual das atitudes do indivíduo, reforçando a aproximação dos componentes comportamentais específicos e necessários à competência desejada.

A prossecução deste método no programa de intervenção da terapia ocupacional passa, obrigatoriamente, por:

1) Definir os problemas relacionais do indivíduo, o mais detalhadamente possível.

— Qual o sentimento ou emoção não expresso ou capacidade de comunicação em défice.

— Em que contexto surge problema.

— Com quem é que o indivíduo pretende melhorar as suas relações interpessoais.

— Como e quando se manifesta o problema.

Esta análise deverá ser enquadrada pelo conhecimento das situações da vida quotidiana geridas de forma autónoma pelo indivíduo, pela avaliação da motivação do paciente para a mudança, devendo o terapeuta decidir qual o programa de treino que mais se adapta ao paciente e proporcionar informações relativas ao treino de competências sociais.

2) Desenvolver a situação simulada, realçando as características do problema ocorrido na vida do indivíduo.

3) Definir os objectivos a alcançar (a curto e a longo prazo). Estes objectivos devem estar de acordo com as necessidades emocionais e materiais do indivíduo:

— Qual o objectivo a curto prazo?

— Qual o objectivo a longo prazo relativamente ao indivíduo e situação em causa?

4) Definir as experiências adquiridas; défices e desempenho do indivíduo ao nível do comportamento social.

5) Proporcionar um feed-back construtivo.

6) Escolher as alternativas mais adequadas, seleccionando os componentes positivos e construtivos que diminuem a frequência de um determinado comportamento ou interacção indesejável e estimular o indivíduo a compreender o motivo de determinada escolha.

7) Dirigir a atenção do paciente para os aspectos comportamentais apresentados e comentá-los imediatamente, procedendo assim a uma análise crítica no momento imediato.

8) Estimular a adesão ao treino, fornecendo indicações relativas ao(s) exercício(s), recordando-lhe as atitudes a adoptar. Dentro das atitudes praticadas devem ser escolhidas as atitudes funcionais, ou seja, aquelas em que o indivíduo obteve o máximo de vantagens, também denominadas atitudes adjuvantes. Devem ser escolhidas preferencialmente as interacções mais frequentes, ao invés daquelas que ocorrem ocasionalmente.

9) Fomentar suporte imediato através do reforço positivo dos comportamentos melhorados, no sentido de conduzir o paciente a melhorar o seu desempenho numa segunda sessão.

10) Proporcionar um reforço positivo perante os progressos e esforços do paciente na adopção de uma conduta adequada.

11) Abordagem de todas as dimensões das competências sociais:

— Escolha da semântica (comunicação verbal);

— Componentes não verbais;

— Tempo e reciprocidade;

— Adequação do contexto;

— Recepção-percepção social e capacidade de analisar a situação;

— Resolução de problemas.

12) Formular as mudanças comportamentais em pequenas partes, consoante as experiências do paciente, não exigindo melhorias imediatas numa só sessão.

13) Completar o treino, solicitando ao paciente uma tarefa a efectuar em contexto real.

14) Assegurar-se que o paciente compreendeu o problema e o plano de acção para a sua resolução, procedendo-se em seguida a uma revisão de toda a sessão.

15) Generalização, ou seja, a capacidade de ultrapassar as dificuldades sociais em contexto real:

— Praticar em contexto real;

— Cumprir tarefas específicas, realizáveis e funcionais;

Feedback positivo perante a capacidade de transferir as aquisições feitas para situações de vida real;

— Aprendizagem de auto-instrução, de auto-avaliação e auto-reforço.

O terapeuta, nesta fase, deverá avaliar as implicações do meio humano envolvente sobre o paciente em treino e diminuir progressivamente a estrutura e frequência das sessões.

Tendo em conta a diversidade da população estudada, o regime de funcionamento do grupo — aberto — e a introdução de outras actividades de carácter socio-terapêutico no programa semanal destes utentes, não nos é possível considerar este trabalho como um estudo representativo da população; porém, o facto de se terem obtido algumas diferenças significativas nas avaliações realizadas antes e após a implementação do trabalho, verificando-se uma evolução favorável ao nível das competências sociais, permite-nos pensar que existe uma associação positiva entre a terapêutica instituída e os resultados obtidos.

Assim, e sem pretensões de extrapolar ou generalizar conclusões, o trabalho desenvolvido ao nível das competências sociais básicas e das competências sociais complexas evidencia que: os pacientes esquizofrénicos apresentam maiores dificuldades para evoluir nas competências sociais complexas, revelando e mantendo uma conduta social caracterizada pela passividade e quase ausência de agressividade. Somente metade da população estudada consegue um comportamento social assertivo.

Dos dados clínicos obtidos, relativamente à aquisição de competências sociais básicas, podemos observar que os pacientes adquirem um contacto visual adequado, identificam as expressões primárias, porém manifestam uma inibição na expressão das mesmas. Relativamente à gestualidade, postura, proximidade e aparência verificamos que a maior parte dos indivíduos consegue uma adequação destes componentes, apresentando porém uma inibição para o toque corporal. A maioria dos indivíduos adquire a capacidade de iniciar, desenvolver e terminar a conversação, revelando espontaneidade, partilha de acontecimentos, opiniões e sentimentos, compatibilidade, reconhecimento social e aceitação do outro. No que diz respeito à escuta, esta evolui com dificuldades, pois no final do processo terapêutico a maior parte dos indivíduos mantém uma escuta desadequada caracterizada pela escuta selectiva e dificuldades de concentração. Do ponto de vista da relação empática e positive regards, a maior parte dos indivíduos adquire uma adequação destes componentes.

Deste tipo de trabalho, particularmente revelador daquilo que vários estudos têm acentuado, concluímos também que as maiores dificuldades do doente esquizofrénico se centram na resolução de problemas. Assim, se quando em situação terapêutica o problema parece estar resolvido, o mesmo poderá não acontecer em situação real. Isto acontece fundamentalmente por existirem dificuldades de comunicação interpessoal a vários níveis: a) dificuldade de recepção por sensibilidade aos elementos contextuais inerentes à relação interpessoal; b) dificuldade de tratamento de informação — formular diferentes respostas possíveis e avaliar as consequências de determinadas alternativas escolhendo a melhor opção; c) dificuldades de expressão, ou seja, de utilizar a opção escolhida, adequada à forma e dimensão verbal e não verbal da relação interpessoal.

Dado o funcionamento do nosso espaço terapêutico — Área de Dia, e a filosofia que lhe é inerente, desenvolvemos este método num grupo de utentes que, embora padecendo de diferentes perturbações mentais, apresentam défices semelhantes ao nível das competências sociais. A heterogeneidade do grupo vai ter implicações nos procedimentos terapêuticos, determinando algumas limitações, principalmente na fase do estabelecimento de objectivos.

Consideramos fundamental a adaptação aos pacientes dos procedimentos técnicos inerentes ao treino de competências sociais, pois aqueles apresentam diferentes registos nas competências sociais, diferentes défices e diferentes possibilidades de aprendizagem. Assim, e dependendo do indivíduo, o reforço positivo poderá ser benéfico, comparado com a imitação e a modelagem ou vice-versa.

O desenvolvimento deste trabalho, num grupo de utentes com as características mencionadas, revelou algumas vantagens, que destacamos: a) oferece situações "naturais" e espontâneas de contacto social; b) oferece a possibilidade de exercício de forma informal das novas capacidades sociais; c) aumenta e reforça as capacidades adquiridas através do feed-back dos outros elementos do grupo; d) as possibilidades de utilização da técnicas são múltiplas e mais credíveis; e) o espírito de grupo pode ser utilizado para facilitar a realização de tarefas no exterior; f) a motivação para continuar o treino surge em pacientes com maior permanência no grupo; g) a orientação e directrizes do treino de competências sociais pode surgir paralelamente do terapeuta e de outros participantes do grupo.

Saliente-se que, tal como qualquer outro processo terapêutico, este deverá proporcionar ao terapeuta a utilização do seu estilo pessoal na relação com os seus pacientes. Assim, a natureza sistemática do procedimento terapêutico deverá permitir uma relação terapeuta/paciente espontânea e viva e, ao mesmo tempo, fomentar a coesão e participação activa de todo o grupo envolvido no processo.

O treino de competências sociais encoraja a independência e actividade e promove a generalização dos conhecimentos apreendidos em situação terapêutica para a situação real. Para que estes objectivos sejam atingidos, consideramos fundamental que o paciente, independentemente da patologia que o afecta, se envolva através da participação activa e gradual no processo terapêutico, reconhecendo neste o meio de alcançar o objectivo final — a capacidade de viver de forma autónoma.

 

Referências

Abreu, P. (1998). Comunicação e medicina. Coimbra: Virtualidade.         [ Links ]

Bellack, A., & Muser, K. (1984). A comprehensive treatment program for schizophrenia and chronic mental illness. Community Mental Health Journal, 22,175-189.         [ Links ]

Brady, J. (1984). Social skills training for psychiatric patients: II clinical outcome. American Journal of Psychiatry, 4,141-42.         [ Links ]

Hargie, O., Saunders, C., & Diekson, D. (1981). Social skills in interpersonal communication. Nova Iorque: Routledge.         [ Links ]

Liberman, R. (1991). Rehabilitation psychiatrique des malades chroniques. Paris: Masson.         [ Links ]

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