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Psicologia

versão impressa ISSN 0874-2049

Psicologia vol.26 no.2 Lisboa  2012

 

O jogo­‑relacional de um grupo de pacientes psicóticos em atividade física: um estudo psicanalítico1

The relational­‑game of a group of psychotic patients in physical activity: a psychoanalytic study

 

Maria Cristina Zagoa*, Antonios Terzisb**

aMestre e doutoranda em psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Brasil.

bProfessor Titular do Programa de Pós­‑graduação e Professor da graduação em Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Brasil. Presidente, diretor e administrador do Centro de Formação e Assistência à Saúde (CEFAS)

Autor para correspondência

 

RESUMO

Este artigo é um relato de pesquisa que apresentou uma técnica de tratamento para pacientes psicóticos em crise Institucionalizados. O objetivo foi estudar a prática de atividades físicas como fator atenuante dos sintomas psicóticos, investigando, nesse setting não convencional, a atividade grupal como elemento propiciador da percepção do outro enquanto objeto relacional. Utilizou­‑se como procedimento a técnica denominada Grupo de Atividades Físicas, que compreendia três momentos principais: caminhada (de ida e volta da Instituição à Praça de Esportes da comunidade), atividade física coletiva e fechamento simbólico da sessão. A psicanálise foi o referencial teórico usado para a discussão e interpretação dos resultados. Conclui­‑se que a técnica utilizada direcionou o grupo no sentido da organização psíquica, oportunizando a relação com o outro se constituindo num espaço para legitimar afetos. Propiciou um cenário para o estabelecimento de processos de identificação ao funcionar como elemento facilitador do contato intersubjetivo no aqui e agora, agindo no sentido de atenuar os sintomas psicóticos, possibilitando ao sujeito a restauração dos laços com o mundo externo.

Palavras­‑chave: grupo psicoterapêutico, psicose, saúde mental, atividade física.

 

ABSTRACT

This article is a research report that presented a treatment technique for Institutionalized psychotic patients in crisis. The aim of this research was to study the physical activity as a mitigating factor of psychotic symptoms, investigating, in this unconventional "setting", the group activities as a favorable element in the perception of others as relational objects. This approach was used as a procedure technique called Group of Physical Activities, which comprised three main stages: walk (round trip institution to a community sports park), sports activities and a symbolic closing of the session. The psychoanalysis represents the theoretical referential for discussion and interpretation of the results. It was concluded that the technique used has led the group towards psychic organization and generated an environment that nurtured the relationship amongst the components of the group, which constitutes itself a legitimate space for expressing affections. The physical activity provided a stage for the establishment of procedures of identification, by acting in this sense as a facilitator of inter­‑subjective contact, here and now. Hence, this unconventional "setting" acted to alleviate psychotic symptoms, allowing the subject to restore his/her ties with the outside world.

Keywords: psychotherapeutic group, psychosis, mental health, physical Activity.

 

Introdução

A despeito do avanço da ciência no âmbito da psiquiatria e o nascimento da psicanálise no século XX, o sofrimento mental grave ainda representa um desafio aos profissionais dos diversos Serviços de Saúde Mental, apesar da descoberta de novos fármacos que trouxeram outras possibilidades à clínica das psicoses. No entanto, o ser humano, revela dia a dia nas Unidades de tratamento sua complexidade. Não basta apenas suprimir sintomas, “medicalizar” o sofrimento humano. Trata­‑se de resgatar o sujeito em meio a um padecimento atroz. Em se tratando da clínica da psicose, não há um modelo de práticas em psicanálise pré­‑estabelecido. Dessa forma, este artigo apresenta uma pesquisa que teve como proposta um setting não convencional, ou seja, uma clínica em movimento que ganhava as ruas se desenvolvendo em um espaço público comunitário (Praça de Esportes). A expressão “jogo­‑relacional” assinala o interjogo de relações intersubjetivas que emergem no cenário lúdico grupal de acordo com a técnica aqui descrita. Entende­‑se por terapêutico o que atua no sentido de propiciar uma ruptura no processo de adoecimento psicótico levando o sujeito a sair de uma situação de encarceramento psíquico e a se mover em direção ao outro, a realidade externa.

O grupo se constitui em dispositivo terapêutico efetivo para pacientes psiquiátricos como mostra a história do surgimento da psicoterapia de grupo desde o século passado com Lazell (1920) e Marsh (1931), W. R. Bion (1963/2006), Pichon­‑Rivière (1971), dentre outros. No entanto, o que dizer de uma prática grupal para pacientes psicóticos em crise que envolvia atividade física coletiva? Embora os benefícios da prática de atividade física venham sendo largamente discutidos na mídia e na literatura em diversas áreas do conhecimento, observa­‑se um interesse crescente dos pesquisadores das repercussões da prática de atividade física em pacientes psiquiátricos na década de noventa, século XX (Faulkner & Biddle, 1999; Faulkner & Sparkes, 1999; dentre outros) e no início do século XXI (Meyer & Broocks, 2000; Carter­‑Morris & Faulkner, 2003; Broocks, 2005; Giuliani, Micacchi & Valenti, 2005; Richardison et al., 2005; Faulkner, Cohn & Remington, 2006; Faulkner & Carless, 2006; Leibovich & Iancu, 2007; Ussher et al., 2007; Adamoli & Azevedo, 2009). Assim como outros autores (Skrinar et al., 1992; Faluker & Biddle, 1999; Hutchinson, Skrinar & Cross, 1999; Giuliani et al., 2005; Richardison et al., 2005; Ussher et al., 2007, dentre outros), Zago (2009) reporta a importância da prática de atividade física no tratamento do sofrimento mental em uma Unidade que atende pacientes psicóticos em crise, tendo como base a teoria psicanalítica e a psicanálise aplicada ao contexto grupal (grupanálise2) na busca pela compreensão das repercussões psíquicas desta prática como coadjuvante no tratamento de pacientes psicóticos.

A psicanálise e o sofrimento psíquico

A psicanálise figura como uma abordagem teórica marcante na clínica da psicose praticada em diversos Serviços de Saúde Mental frente às várias indagações sobre a construção de projetos terapêuticos que possam fazer sentido para os pacientes. Historicamente, a psicanálise nasce em meio a questionamentos sobre o sofrimento das mulheres afectadas por neuroses de tipo histérico. De neurologista, Sigmund Freud (1856­‑1939) vai caminhando progressivamente em direção a uma compreensão psicológica das enfermidades que restavam sem cura em sua época. Assim, percorrendo a obra de Freud, vê­‑se uma tentativa de formulação a respeito das dinâmicas psíquicas envolvidas no adoecimento mental.

O caminho percorrido na obra de Freud será trilhado em função dos aspectos sintomatológicos explicitados durante a construção da teoria psicanalítica a respeito do mecanismo de formação da psicose, da primeira até a segunda tópica. Dessa maneira, inicia­‑se um breve resgate da história da psicanálise com a psicose, atendo­‑se ao fato de que, em 1893, em Sobre o Mecanismo Psíquico Dos Fenômenos Histéricos: Comunicação Preliminar, Breuer e Freud fazem alusão à questão alucinatória ao falar de histeria (Freud, 1893/1996). Posteriormente, em 1894, no artigo As Neuropsicoses de Defesa, Freud traz um exemplo de caso clínico de confusão alucinatória. No mes­mo artigo, utiliza­‑se do termo psicose, ao falar de um mecanismo de defesa diferente do descrito em outros casos anteriormente abordados no artigo, que entende ser mais poderoso e melhor sucedido (Freud, 1894/1996). Através da leitura das Memórias de Schreber, Freud (1911/1996) teve a oportunidade de escrever um relato detalhado de sua análise dos processos inconscientes em ação na paranóia, pois a autobiografia escrita por Schreber retrata um sistema delirante de um homem perseguido por Deus. A homossexualidade recalcada seria a fonte do delírio, pois a paranóia se estrutura como uma defesa contra a homossexualidade. O retraimento dos investimentos libidinais dos objetos faz desmoronar o mundo subjetivo, o que, por projeção é vivenciado como o fim do mundo, do mundo externo. O delírio, segundo Freud, figura como uma peça que é colocada no lugar em que, inicialmente, produziu­‑se um rasgo na relação com o mundo externo. Em “Luto e Melancolia”, Freud (1917[1915]/1996) alude a uma primeira identificação com o objeto denominada narcísica, a qual se encontra na base da situação de psicose. Posteriormente, em 1923, O Ego e o Id, o autor discorre sobre a diferença genética entre neuroses e psicoses (Freud, 1923/1996). No artigo, A Perda da Realidade na Neurose e na Psicose (Freud, 1924e/1996), há um direcionamento de foco no entendimento de como se dá, no desenvolvimento da neurose e da psicose, a questão da relação do paciente com a realidade; na neurose o paciente ignora a realidade, ao passo que na psicose ocorre o repudio da realidade e a tentativa de substituição através do delírio. Posteriormente, Freud (1927/1996) argumenta que a gênese da psicose se coloca entre as estratégias de defesa contra os efeitos traumáticos da castração. O mecanismo psicótico renega um fato real que é tido como insuportável por causa da moção pulsional; o mecanismo da renegação ou rejeição (Verleugnung) aparece implicado à psicose. É como ataque ao narcisismo que a castração lega sua eficácia traumática; é contra a unidade adquirida que se dirige a castração. No entanto, depois de mais de cem anos do nascimento da psicanálise, indagações, desafios persistem na clínica. Pode­‑se dizer, que a literatura ainda busca ampliar a compreensão sobre a loucura e, conseqüentemente, em relação às perspectivas de tratamento. Às formulações propostas por Freud seguiram­‑se outras que ampliaram suas idéias, como o fez Melanie Klein (1882­‑1960), ou mesmo engendrou­‑se uma releitura de sua obra, como vemos nos textos de Jacques Lacan (1901­‑1981). Às formulações propostas por Freud que procuravam estabelecer um entendimento sobre a loucura, seguiram­‑se outras que ampliaram suas idéias, como as de Melanie Klein (1882­‑1960). Através do desenvolvimento da teoria das relações objetais de Klein (1946­‑1963/1991)3, ampliam­‑se as concepções psicanalíticas sobre as perspectivas de tratamento da psicose. Em 1952, no artigo “As Origens da Transferência”, Klein diz que o narcisismo se apresenta no amor pelo objeto bom internalizado, o qual é parte do self e do próprio corpo amado. É neste bom objeto que o self se refugia e com o qual estabelece relações. Abre­‑se assim, a porta para o estudo da transferência estabelecida pelos pacientes narcísicos. Assim, comenta Klein (1952/1991):

Até por volta de 1920 presumia­‑se que os pacientes esquizofrênicos fossem incapazes de estabelecer transferência, e assim não poderiam ser psicanalizados... Contudo, a mudança, de visão mais radical a esse respeito ocorreu mais recentemente e está estreitamente ligada ao maior conhecimento dos mecanismos, ansiedades e defesas operantes na infância mais remota. Uma vez descobertas algumas dessas defesas contra o amor e o ódio, engendradas nas relações de objeto primárias, tornou­‑se plenamente compreendido o fato de que pacientes esquizofrênicos são capazes de desenvolver tanto uma transferência positiva quanto uma transferência negativa (p. 76).

Klein traz uma grande contribuição à psicanálise ao estabelecer uma compreensão detalhada dos processos psíquicos através do conceito de posição: a posição esquizo­‑paranóide e a posição depressiva. Cada qual apresentando ansiedades características e respectivos mecanismos de defesa. Assim, um dos mecanismos de defesa importantes na posição esquizo­‑paranóide é o da cisão dos objetos internos e externos do ego, sendo a ansiedade persecutória predominante. A principal defesa contra a ansiedade na posição esquizo­‑paranóide é a identificação projetiva4. Já a posição depressiva é o resultado da síntese entre objeto bom e objeto mau, momento de uma integração mais forte do ego; a depressão e a culpa pelos ataques ao objeto se desenvolvem de maneira mais plena nesta posição.

Em Uma Nota Sobre a Depressão no Esquizofrênico (Klein, 1960/ 1991), Klein sustenta seu ponto de vista “de que a posição paranóide (que eu mais tarde denominei posição esquizo­‑paranóide) está ligada a processos de cisão e contém os pontos de fixação para o grupo das esquizofrenias, enquanto a posição depressiva contém os pontos de fixação para a doença maníaco­‑depressiva” (p. 301).

A autora descreve uma teoria do desenvolvimento em que o ego se apresenta ativo e capaz de estabelecer relações de objeto desde o início. Seus conceitos e formulações tornaram possível a psicanálise de crianças e de pacientes psicóticos.

Por outro lado, ao fazer uma releitura da obra de Freud, Jacques Lacan (1901­‑1981), utiliza um modelo linguístico para caracterizar a determinação simbólica do sujeito e introduz o nó borromeano para ilustrar como os registros do Real (falta), Simbólico (lei) e Imaginário (desejo) se entrelaçam. Esses três registros dependem uns dos outros e operam em conjunto. A articulação entre Imaginário e Simbólico pressupõe o estádio do espelho como uma primeira “matriz simbólica” do sujeito, que o complexo de Édipo permite ultrapassar. Para Lacan, o Nome­‑do­‑pai é o suporte da função simbólica. Na psicose, pode­‑se dizer que o indivíduo é remetido a uma situação de fora­‑do­‑discurso; a psicose situa­‑se sobre a égide da forclusão5 (Verwerfung) do Nome­‑do­‑Pai. O indivíduo recusa as exigências de renúncia às pulsões sexuais; recusa a lei simbólica e a regra universal da castração6. O psicótico “toca” o Simbólico e regride ao Real.

O sujeito para Lacan não é o agente, como no cogito7 na teoria freudiana, mas é determinado por uma função simbólica; sua posição em relação ao outro é mediada pelo sistema de regras e convenções do Simbólico (Lacan, 1966/1998). O processo de análise visa levar o sujeito a subjetivação. O sujeito passa de uma posição de assujeição (O/S), em que o sujeito está submetido ao desejo do Outro, à posição de subjetivação, isto é a de sujeito da enunciação; o sujeito constitui o objeto. O neurótico é o sujeito barrado, castrado pela lei.

Atualmente não temos uma teoria unificada, nem da psicopatologia, nem da técnica de tratamento de pacientes seriamente comprometidos psiquicamente, como os psicóticos ou borderlines8. Na psicopatologia não há um consenso nem sobre a etiologia do adoecimento mental, nem sobre a etiopatogenia, isto é, sobre as causas e mecanismos envolvidos.

Freud e Käes: o entorno teórico do jogo­‑relacional

Freud, no decorrer de sua obra, manifestou o desejo de que a psicanálise pudesse ser aplicada nos campos literário, artístico, mitológico e histórico. Logo na introdução de Psicologia de Grupo e a Análise do ego (1921/ 1996) considera que embora a psicologia se dedique ao homem individualmente, ela não pode desprezar as relações que o indivíduo estabelece com os outros. Assim, a psicologia individual acha­‑se imbricada na psicologia social. Freud argumenta que, quando um indivíduo é colocado num grupo, está sob condições em que as repressões de seus impulsos inconscientes se encontram mais fluídas. Nesse sentido, contrapõe a percepção da realidade, de uma realidade que não é objetiva, mas psicológica nos sonhos, na hipnose, às vivências de um indivíduo num grupo. Através do conceito de libido, fonte energética das pulsões, Freud (1921/1996) formula a hipótese de que as relações amorosas constituem a essência da alma das massas. No capítulo V de Psicologia de Grupo e a Análise do ego (1921/1996), encontra­‑se uma análise de grupos altamente organizados, permanentes e artificiais, como por exemplo a Igreja e o exército. Aponta que nesses dois grupos, laços libidinais unem o indivíduo ao líder e aos outros membros do grupo. Percorrendo a psicologia social de Freud, tem­‑se que em Totem e Tabú (1913/1996) o ônus da incursão na civilização seria o sacrifício da sexualidade e da agressividade. Posteriormente, Freud, em O Mal­‑estar da Civilização (1930[1929]/1996), propõe o fundamento da renúncia mútua à realização da pulsão. Assim, a psicologia social de Freud aparece como subsídio ao desenvolvimento da psicanálise. A leitura dos casos clínicos de Freud revela que o estudo das relações intersubjetivas que se colocam em torno do sujeito serve ao psicanalista no sentido de buscar reconstruir a malha de conexões na psique do sujeito.

Segundo René Käes (autor da escola francesa grupanalítica), o desenvolvimento de uma teoria de grupos de base psicanalítica estende o campo da psicanálise. O conceito de aparato psíquico grupal cunhado por Käes foi concebido de acordo com os termos da psicanálise, suas estruturas, locais, economias, e dinâmicas da psique, em termos de que a realidade psíquica subjetiva e a realidade psíquica grupal se coadunam. Käes retoma, em O grupo e o Sujeito do Grupo (1997), elementos de uma teoria do grupo que já havia sido formulada em O Aparelho Psíquico Grupal (1976). Segundo o autor o grupo é: “(...) a forma e a estrutura paradigmática de uma organização de vínculos intersubjetivos, sob o prisma de que as relações entre vários sujeitos do inconsciente produzem formações e processos psíquicos específicos” (Kaës, 1997, p. 18).

Käes acrescenta ainda: “‘Grupo’ irá designar também a forma e a estrutura de uma organização intrapsíquica caracterizada por ligações mútuas entre seus elementos constitutivos e pelas funções que desempenha no aparelho psíquico” (Kaës, 1997, p. 18). Nesse sentido, o grupo intersubjetivo e a grupalidade intrapsíquica mantém relações de fundação recíprocas; o primeiro é um dos lugares de formação do inconsciente e sua realidade psíquica se esteia em certas formações da grupalidade intrapsíquica. Dessa maneira, o “grupo” constitui um dispositivo de investigação e de tratamento das formações e dos processos da realidade psíquica compreendida na reunião de seus membros (Kaës, 1997).

Para Kaës (1976) todo grupo social é o resultado de um trabalho de construção de uma organização relacional, isto é, de uma sociabilidade, de uma cultura, para que se obtenha a satisfação de necessidades e o complemento de desejos. São asseguradas as diferenciações funcionais relativas às necessidades de sobrevivência individual e coletiva. O aparato psíquico grupal possibilita a reunião e o emprego das energias individuais ligadas ao objeto­‑grupo representado, segundo um dos organizadores grupais do psiquismo.

A instância ideológica é a instância unificadora do aparelho psíquico grupal, que rege as funções citadas anteriormente. Assim, a construção narcisista grupal está organizada pela instância ideológica e por seu representante histórico designado no grupo social ao posto de líder. O grau de diferenciação funcional e de mobilidade dos postos é variável de acordo com a estrutura particular psicótica ou neurótica do aparato psíquico grupal. Kaës (1976) estrutura a teoria do aparelho psíquico grupal através da análise das relações que se estabelecem entre o grupo enquanto objeto e o grupo social. A construção do grupo se dá através dos sistemas de representação: os organizadores psíquicos e os organizadores socioculturais. Os primeiros correspondem a uma formação inconsciente próxima ao núcleo do sonho, sendo constituídos pelos objetos do desejo infantil. Já os segundos advêm da transformação desse núcleo inconsciente pelo trabalho do grupo. Kaës (1976) define quatro organizadores psíquicos principais da representação do grupo: a imagem do corpo, a fantasia original, os complexos familiares e suas imagos, a imagem global de nosso funcionamento psíquico.

Acredita­‑se que as concepções teóricas desenvolvidas por René Käes trazem a possibilidade de uma leitura da dinâmica grupal produzida por pacientes psiquiátricos por propiciar condições para análise das formulações psíquicas, isto é, de uma realidade psíquica grupal inconsciente, onde a realidade psíquica subjetiva dos participantes e a realidade psíquica grupal se coadunam.

Objetivos

Estudar a prática de atividades físicas como fator atenuante dos sintomas psicóticos, segundo a técnica aqui descrita. Investigando, nesse setting não convencional, a atividade grupal como elemento propiciador da percepção do outro enquanto objeto relacional, ou seja, um deslizamento da libido narcísica em direção à libido objetal.

O método: a apreensão do simbólico

Este estudo tem como base a Psicanálise Aplicada. Anzieu (1967/1993) argumenta sobre o método psicanalítico nas situações de grupo. Segundo o autor, não há nenhum campo de manifestação dos efeitos do inconsciente que não seja aplicável o método psicanalítico, desde que suas regras sejam respeitadas.

Participantes

Os sujeitos eram pacientes com diagnóstico de psicose agudizados. As equipes técnicas validavam a participação dos pacientes na atividade grupal segundo avaliação (física e psíquica) realizada anteriormente.

Enquadre grupal

O grupo era aberto heterogêneo (jovens e adultos) e misto quanto ao gênero (homens e mulheres). A atividade grupal foi desenvolvida uma vez por semana, com duração total de duas horas cada sessão.

O campo

O campo era uma Unidade de internação de um Serviço de Saúde Mental Público da rede de saúde do Município de Campinas, São Paulo, Brasil.

Procedimento: Atividade grupal proposta

O grupo elegeu como local para prática de atividades esportivas uma Praça de Esportes da Comunidade. Inicialmente, se dava a mobilização do grupo para a saída; reunia­‑se o material necessário de acordo com os interesses do grupo (voleibol, futebol ou basquetebol). Em seguida tinha­‑se a caminhada (aproximadamente quinze minutos) deste Serviço até a Praça de Esportes, que funcionou como acompanhamento terapêutico (AT); além da pesquisadora/terapeuta do grupo, um auxiliar de enfermagem acompanhou o grupo garantindo suporte em relação a alguma demanda de ordem física ou psíquica (agitação motora, fuga, etc.). Havia a construção dos subgrupos, isto é, de dois times formados pela escolha de dois pacientes que se ofereciam como “capitães”. Logo após, tinha­‑se o alongamento coordenado pela professora de educação física (funcionária da Praça de Esportes); depois ocorria a prática da atividade esportiva em grupo, a qual também contava com a supervisão da professora de educação física. O auxiliar de enfermagem normalmente participava ativamente deste momento jogando com os pacientes (tempo aproximado: trinta minutos). Ao fim da atividade esportiva, tinha­‑se um espaço para a reflexão, simbolização e elaboração da vivência do grupo (fechamento simbólico da sessão; vinte minutos). Num último momento, o grupo caminhava em direção ao Serviço.

Instrumento

Utilizou­‑se como instrumento desta pesquisa a técnica de Grupo de Atividades Físicas, a qual se apóia na técnica desenvolvida por Käes & Anzieu, 1979. Essa técnica pressupõe uma não­‑diretividade, isto é, deve­‑se proporcionar aos participantes a possibilidade da emergência de conteúdos psíquicos de maneira espontânea. O registro deve permitir conservar os acontecimentos emergentes. Assim, procura­‑se construir um registro integral não apenas das trocas verbais, gestuais, mas também das posições, posturas e atitudes dos participantes. A terapeuta estabeleceu comentários pessoais sobre os fatos, sobre o que foi percebido. O critério para a interrupção da construção dos registros foi o da saturação. Seguindo o protocolo de registro descrito por Käes (2005), procura­‑se tomar uns pontos de referência durante a sessão, porém sem fazer anotações. Imediatamente depois da sessão faz­‑se o relato oral para um gravador; posteriormente constrói­‑se um relato por escrito. Faz­‑se a comparação dos dois relatos atendo­‑se as suas diferenças, quando, somente então se efetua o registro da sessão tentando reconstruir a dinâmica relacional.

Análise dos conteúdos emergentes no processo grupal

A psicanálise e a grupanálise representam os referenciais teóricos para a discussão e interpretação dos resultados. A análise do material foi efetuada a partir dos registros de cinco sessões do grupo procurando identificar algumas formulações psíquicas no processo grupal. Buscou­‑se analisar os comentários dos participantes no grupo bem como suas comunicações não­‑verbais. Foram selecionados temas relacionados aos objetivos deste estudo, notadamente os que se apresentavam recorrentes no processo grupal. Segundo Mathieu (1967) essa característica de recorrência dos temas figura como o “código genético” do relato por evidenciar a presença de uma função particular dos referidos temas. Os comentários se concentraram na análise das formações psíquicas e dos processos revelados, atuantes e ativos que emergem no grupo de pacientes psicóticos.

Resultados e discussão

Desde a primeira sessão do grupo, tem­‑se a tarefa como uma representação libidinalmente investida, o que gerou uma transferência positiva seja pela não evasão dos pacientes, ou abandono da atividade, como também pelo engajamento durante o desenvolvimento da tarefa traduzido pela disputa de bola no jogo esportivo. Assistiu­‑se a um movimento grupal no sentido da procura de ser e ter corpo (Käes, 1976), de um início de processo de agregação, de constituição de um corpo através de jogos especulares que tiveram como cenário o jogo­‑relacional. Durante o transcorrer das sessões, a dinâmica grupal mostrou que os pacientes buscaram o olhar da terapeuta, que este incrementasse seu narcisismo. Assim, a terapeuta ofereceu o olhar especular através do qual a “criança grupo”, procurou se apropriar da percepção de um corpo unificado. Em Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade (1905/ 1996), Freud assinala a libidinização do bebê por parte da mãe, que atua no sentido de incrementar seu narcisismo primário:

O trato da criança com a pessoa que a assiste é, para ela, uma fonte incessante de excitação e satisfação sexuais vindas das zonas erógenas, ainda mais que essa pessoa – usualmente, a mãe – contempla a criança com os sentimentos derivados de sua própria vida sexual: ela a acaricia, beija e embala, e é perfeitamente claro que a trata como o substituto de um objeto sexual plenamente legítimo (Freud, 1905/1996, pp. 210­‑211).

Assim, pode­‑se dizer que a terapeuta oferece o olhar especular através do qual a “criança grupo”, procura se apropriar da percepção de um corpo unificado, ao mesmo tempo em que ela se coloca num processo de aprendizagem a respeito das relações afetivas com o outro. Através da escolha dos times e a formação dos subgrupos o jogo­‑relacional foi se desenhando. As transferências laterais vão sendo geradas dentro do cenário lúdico. Assim, desejos inconscientes se atualizaram em outros membros do grupo enquanto objetos relacionais (Laplanche, 2001). Iniciou­‑se um sentido de pertença (Käes, 1976) onde pequenos movimentos de identificação foram contemplados. Nesse sentido, como diz Freud em Psicologia de Grupo e a Análise do Ego (1921/1996), a identificação se coloca como “a mais remota expressão de um laço emocional com outra pessoa” (Freud, 1921/1996, p. 115), fazendo parte da pré­‑história do complexo de Édipo. Assim, pode­‑se dizer que os pacientes parecem experienciar movimentos em direção ao outro, aos objetos externos, estabelecendo relações afetivas através de uma comunicação não­‑verbal que se dá dentro do espaço do jogo. A seguir, inserem­‑se fragmentos de relato dos registros construídos pela pesquisadora, bem como de depoimentos livres selecionados aleatoriamente, nos quais o grupo comunica verbalmente suas impressões em relação à atividade desenvolvida. Entre idas e voltas, nessa excursão entre a saúde e a doença, o que dizem os pacientes através de palavras, gestos, mímicas, posturas, ou mesmo pelo silenciar­‑se? Neste trecho, relata­‑se aspectos inerentes a dinâmica relacional estabelecida pelo grupo: “Todos conseguiram exercitar ‘passes de bola’. Pareciam bem atentos aos movimentos dos outros participantes, ao jogo”.

Exercitar “passes de bola” significa poder ceder à posse da bola ao outro. Isso denota a circulação da bola entre os participantes. A circulação da bola pode ser entendida como a capacidade que o grupo apresentou de se comunicar, de promover a circulação dos afetos. Essa circulação da energia que se expressa pela dinâmica grupal remete ao sadio. Pode­‑se esperar que pacientes psicóticos, marcados por um narcisismo exacerbado tendam a reter a bola. Nesse momento do grupo, porém, vê­‑se que existiu um movimento mais sadio em que houve a possibilidade de doar a bola e assim o jogo não se estagnou. Outro ponto importante se refere á atenção ao movimento dos outros participantes. Estar atento aos outros é poder num primeiro momento enxergá­‑los como objetos pertencentes à realidade externa, estabelecer contato visual, reconhecer o outro. Esse movimento em direção ao externo, ao encontro do outro inaugura uma relação intersubjetiva. Ao mesmo tempo, estar atento ao jogo indica que há uma adesão à atividade, a tarefa. Existe um comprometimento, um investimento que pressupõe uma nova posição do sujeito frente ao mundo. A libido é investida no jogo, na tarefa, o que denota um abandono de uma posição narcísica.

Quando se fala em jogo disputado, refere­‑se a dois subgrupos que pareciam comprometidos em buscar o êxito. Motivações inconscientes direcionam a disputa; o envolvimento emocional em torno da tarefa (investimento libidinal), as quais os levam a um funcionamento psíquico diferente do da psicose.

Durante as disputas acirradas pela posse da bola, há que se pensar que, assim como o psicótico busca as regras edípicas para conter sua destrutividade, observou­‑se que o grupo procurou as regras do jogo para conter sua agressividade. Em Inibição, Sintoma e Angústia, Freud (1926/1996), preocupa­‑se em focar o conjunto da clínica psicanalítica sobre o complexo de castração, o qual tem para a psicanálise um caráter nuclear e estruturante do Édipo. Assim, o complexo de castração refere­‑se à ordem cultural em que o direito a um determinado uso está sempre relacionado a uma interdição (Laplanche, 2001). Por outro lado, o grupo pôde ser um espaço para se legitimar afetos, como por exemplo, a agressividade, que encontrou dentro do jogo uma possibilidade de expressão culturalmente aceita:

Gustavo também teve um desempenho bom na atividade. Ele lembrava o tempo todo às regras aos colegas. Fazia pedidos recorrentes de desculpas aos outros participantes durante o jogo temendo aparentemente lesionar alguém em função de disputa de bola. (...) diz que as pessoas às vezes acham que ele é agressivo quando ele joga futebol. A terapeuta perguntou o que ele achava disso. Ele nega, dizendo que isso era do futebol, um esporte para ‘macho’, era um esporte de contato, que os homens se machucam jogando futebol.

No momento do fechamento simbólico da sessão, observou­‑se uma possibilidade de evolução psíquica do grupo, ou seja, foi possível ficar lado a lado, ouvir o outro, estar junto. Assim, a realidade externa não pareceu ser intrusiva, ameaçadora e o grupo figurou com um lugar de acolhimento. Os pacientes contaram em depoimentos como a retirada marcante da libido dos objetos nas situações de psicose se traduz em encarceramento em si mesmo.

Pareceu existir a fantasia de que o grupo pudesse legar vitalidade, energia. Os pacientes dão indícios de que o grupo se coloca como ambiente paradisíaco, capaz de nutrir (Käes, 1976). Ao falar da atividade, Tiago se remete ao aspecto esportivo. Ressalta as repercussões físicas ao falar do bem estar do corpo, e psíquicas da prática, ao se referir a aspectos emocionais: “–Sinto mais disposição do corpo tudo, mais animado, mais forte”. Interessante notar no discurso de Tiago que ele estabelece um dentro e um fora, provavelmente se referindo ao Serviço e ao mundo externo à internação: “... fora é mais difícil eu praticar algum esporte. Abracei essa oportunidade que eu tive aqui dentro de praticar esporte”. Tiago reconhece que a atividade faz parte, está integrada ao Serviço que figura como representante do tratamento. Ele comenta que “fora” é difícil praticar esporte. Essa fala dá indícios de que embora haja esporte, Tiago não consegue acessar, se integrar, isto é, embora exista a possibilidade de ingressar no jogo­‑relacional, existe a “dificuldade”. Quando ele utilizou o verbo “abraçar” em seu discurso para expressar a maneira como reagiu, ele diz o quanto pôde trazer para perto de si essa oportunidade. Outro ponto importante a respeito do depoimento de Tiago se refere à questão da comunicação verbal, ele diz: “– Bem assim tudo assim, até na minha maneira assim de conversá, tudo, ficá mais disposto”. Importante perceber que ele aponta uma diferença na maneira dele estabelecer contato verbal; que através da atividade pôde incrementar sua capacidade de comunicação com o “outro”.

De maneira geral, a atividade desenvolvida pelo grupo foi vista como um espaço lúdico, uma oportunidade de “brincar”. O grupo verbaliza que quando todo mundo pode participar da “brincadeira” por igual é mais prazeroso, ou seja, quando há o predomínio do narcisismo grupal sobre o narcisismo individual. Caio diz que pegar na bola é existir, é estar no grupo, é ser reconhecido: “(...) é preciso deixar ele pegar na bola. Para que ele possa demonstrar que ele está ali por presença, que ele está ali para jogar”. Por outro lado, ser “fominha” é reter a bola. Tiago diz “(...) que é por ansiedade; a pessoa esquece que tem mais gente jogando”. Deve­‑se esperar em pacientes psicóticos em crise um narcisismo exacerbado que pode ser traduzido pela atitude de reter a bola e “esquecer” que existem objetos disponíveis à relação. Assim, dentro da estratégia do jogo, os “passes de bola” apresentam­‑se como tarefa rotineira para se alcançar o cesto, porém, muitas vezes, quem estava com a bola procurava se movimentar sem efetuar “passes de bola”, olhando fixamente para o cesto, sem ater­‑se aos demais. Parece existir a necessidade da satisfação imediata no correr solitário em direção ao cesto sem que haja uma mobilização dos outros jogadores na direção da obtenção de um êxito comum. A fala de Pedro corrobora essa hipótese ao assinalar um investimento em si mesmo naquele que retém a bola: “(...) que é por egoísmo, por ser ‘fominha’”. Ao mesmo tempo, as vivências grupais parecem ser sentidas por Caio como um momento de elaboração em que pôde se perceber dentro da dinâmica grupal: “– (...) foi bom para se aprender que foi uma maneira ruim de se viver de se agir”. Tiago parece trazer novamente a questão da rivalidade entre irmãos no grupo ao dizer: “(...) – ninguém pode querer ser mais que o outro”. A sua fala aponta ainda a questão da “brincadeira”, que quando se pode abandonar uma posição narcísica e dividir a posse da bola existe um gozo compartilhado: “no esporte a pessoa divide a brincadeira, fica mais gostoso; todo mundo participando por igual”.

Em busca do êxito grupal, pôde­‑se observar, de maneira geral, que o narcisismo individual deu lugar ao narcisismo grupal. Assim, pode­‑se entender que à medida que o vínculo libidinal com os objetos foi se estabelecendo no grupo, dentro da dinâmica do jogo­‑relacional, houve a possibilidade de uma compensação ao ataque narcísico. Nesse sentido, assinala Freud (1921/1996):

...os indivíduos do grupo comportam­‑se como se fossem uniformes, toleram as peculiaridades de seus outros membros, igualam­‑se a eles e não sentem aversão por eles. Uma tal limitação do narcisismo (...) só pode ser produzida por um determinado fator, um laço libidinal com outras pessoas. O amor por si mesmo só conhece uma barreira: o amor pelos outros, o amor por objetos (Freud, 1921/1996, p. 113).

Maria traz a dor do grupo diante do aprisionamento da doença: “– É bom sair de lá; a gente fica preso”. O processo de adoecimento psíquico conduz os pacientes a uma Unidade de tratamento de crise; são levados a um espaço mais protegido, permanecendo longe de seus familiares e conhecidos. Maria aborda a questão do confinamento durante o período de internação. Ao mesmo tempo, ao falar de um “estar preso” na Unidade, a paciente parece falar de um aprisionamento que é de ordem psíquica; de como a psicose remete a um encarceramento em si mesmo: “Marcos usa uma metáfora para falar do assunto: diz que é como um passarinho preso”. Assim, “(...) sair de lá (...)”, pode ser entendido como a possibilidade de provocar uma ruptura no funcionamento psicótico, que se traduz pela oportunidade de ocupar outro lugar no mundo. O grupo sinaliza através de Maria, que a atividade proposta pôde proporcionar aos pacientes um outro lugar que não o da “doença”.

Através de mecanismos relativos ao processo secundário, no momento do fechamento simbólico do grupo, há a possibilidade de significação do vivido e o estabelecimento de identificações paralelas. Ocorre a utilização da palavra, a associação de idéias (Laplanche, 2001), em que o grupo parece dizer que este setting não convencional pôde ser um espaço para se trabalhar a “loucura”, isto é, que se oportunizou um lugar onde os sintomas psicóticos puderam ser acolhidos, “Liliane fala do preconceito, o quanto ela sente o preconceito dentro da sua família. Ela acha importante ‘esse trabalho que é feito’, porque ela está em comunidade”.

Conclusão

Dentre as inúmeras facetas que poderiam ser descortinadas, tem­‑se que a análise direcionou seu foco na busca pelo entendimento dos processos psíquicos inconscientes que emergiram na situação do grupo, a fim de se analisar a prática de atividades físicas como fator atenuante dos sintomas psicóticos, segundo a técnica descrita. Neste jogo­‑relacional, como os sujeitos participantes do grupo perceberam a si mesmos? E o que dizer da percepção do outro enquanto objeto pertencente à realidade externa?

Primeiramente, observou­‑se que a técnica aplicada pôde gerar um ambiente que oportunizou a relação com o outro e, ao mesmo tempo, constituiu­‑se num espaço elaborativo. Dessa forma, o grupo funcionou como elemento facilitador do contato intersubjetivo no aqui e agora. Observou­‑se o estabelecimento de processos de identificação, o que significou o início de uma ligação afetiva com o outro, ou seja, um direcionamento da libido aos objetos externos.

O momento da atividade física coletiva fez da quadra um palco para a emergência de afetos, dos quais, a agressividade surge de maneira marcante nas cenas protagonizadas pelos pacientes durante a disputa pela posse bola. Dessa forma, a atividade física com bola aparece como uma via para se legitimar a agressividade desde que é culturalmente justificável a rivalidade inerente ao jogo. Dessa maneira, as manifestações agressivas que se fazem inadequadas em outros espaços de convívio puderam encontrar um cenário legítimo dentro deste setting não convencional.

O reconhecimento do outro se traduziu pela maneira como a dinâmica do jogo­‑relacional foi se desenhando, ou seja, receber a bola significava existir num plano simbólico. Nesse sentido, o envolvimento na tarefa denota um movimento da libido em direção aos objetos externos, o que dá notícia de um afastamento do processo de adoecimento psicótico. Dentro deste processo, os cuidadores, principalmente na figura da terapeuta e do auxiliar de enfermagem, atuaram neste setting não convencional no sentido de secretariar estes pacientes em direção ao reencontro com os objetos externos.

Tem­‑se que o estabelecimento de regras do jogo é fundamental para que os pacientes possam lidar com a castração, isto é, a possibilidade de viver afetos num tempo determinado e com leis e normas culturais recortadas dentro desse cenário lúdico, o que pode atuar no sentido da organização atenuando os sintomas psicóticos. Assim, a tarefa proposta para o grupo propicia se trabalhar a castração oportunizando um movimento organizador no sentido de atenuar os sintomas psicóticos.

A atividade grupal foi vista pelo grupo como algo que legou saúde, que pôde nutrir e trouxe vitalidade. Sair do Serviço, ganhar as ruas, praticar um esporte em grupo em um espaço da comunidade, se constituiu na possibilidade de reencontrar o mundo externo.

Finalmente, conclui­‑se que a técnica aplicada, nos seus diversos momentos, atuou no sentido de secretariar o sujeito em direção à estabilização da psicose, ao funcionar como elemento facilitador do contato intersubjetivo no aqui e agora propiciando um cenário para o estabelecimento de processos de identificação, e também por trabalhar a questão edípica por meio das regras do jogo esportivo. Dessa maneira, este setting não convencional agiu no sentido de atenuar os fenômenos psicóticos possibilitando restauração dos laços com o mundo externo.

 

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Autor para correspondência

*Correio eletrónico: maria_zago@uol.com.br (Maria Cristina Zago)

**Correio eletrónico: aterzis@uol.com.br (Antonios Terzis)

 

Notas

1Artigo referente à: Zago, M. C. (2009). O jogo­‑relacional de um grupo de pacientes psicóticos em atividade física: um estudo psicanalítico. Dissertação (Mestrado em Psicologia) – Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Centro de Ciências da Vida, Programa de Pós­‑Graduação em Psicologia, Campinas.

2Psicoterapia grupo­‑analítica: análise de grupo como forma de tratamento; o método em questão é analítico (Foulkes & Anthony, 1967).

3Klein, M. (1946­‑1963/1991). Inveja e gratidão e outros trabalhos (1946­‑1963).Rio de Janeiro: Imago Ed., 2ed.

4“Expressão introduzida por Melanie Klein para designar um mecanismo que se traduz por fantasias em que o sujeito intoduz a sua própria pessoa (his self) totalmente ou em parte no interior do objeto para o lesar, para o possuir ou para o controlar” (Laplanche, 1982/2001, p. 232).

5Designa o mecanismo essencial da psicose: a forclusão do Nome­‑do­‑Pai, isto é, à não inclusão na norma edipiana (Quinet, 1951/2006).

6Lacan, J. (1966/1998). Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.

7“cogito ergo sum”, em uma de suas variantes: “penso, sou”, em outra, “penso, logo sou” (Descartes, 1983).

8“O termo borderline (fronteira) designa distúrbios da personalidade e da identidade que se encontram na fronteira entre a neurose e a psicose” (Roudinesco, 1998, pp. 82­‑83).