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Ex aequo

versão impressa ISSN 0874-5560

Ex aequo  n.19 Vila Franca de Xira  2009

 

Um problema de saias: dificuldades de representação do género na linguagem pictográfica

 

Pedro Bessa

DeCA, Universidade de Aveiro

 

Resumo

O presente artigo trata de sinalética, sinalização rodoviária e sistemas de informação e orientação no espaço, os quais recorrem ao uso de imagens/representações figurativas de objectos para expressar conceitos abstractos – algo que requer aprendizagem e contexto para ser compreendido. Mas a pictografia parece ter outras limitações. Quando comparada com o código verbal, um exemplo inequívoco dessas limitações está na representação do género. Em 2005, uma análise a 49 programas de sinalética na Universidade de Aveiro concluía que o feminino estava subrepresentado e reduzido a estereótipos. Contudo, o artigo analisa algumas tentativas recentes de utilizar sinalética não-sexista, interrogando-se sobre a possibilidade de reformar ou melhorar as linguagens pictográficas.

Palavras-chave linguagem; género; pictogramas; sinalética.

 

Abstract

A question of skirts: difficulties with the representation of gender in pictographic language

The article deals with signage, traffic signs and way-finding systems, which use pictures of individual objects to express abstract concepts. This requires learning and context to be understood. But pictography seems to have other limitations. When compared to verbal language, a major example of these limitations is the representation of gender. In 2005, a survey of 49 signage systems at the University of Aveiro concluded the female gender was underrepresented, and heavily stereotyped. Notwithstanding, the article analyses a few recent attempts to use non-sexist traffic signs and signage, in order to determine whether it is possible to reform or improve pictographic languages.

Keywords language; gender; pictograms; signage.

 

Résumé

Une question de jupes: difficultés de la représentation du sexe-genre dans le langage pictographique

Cet article traite de signalétique, signes de circulation et systèmes d’information, qui utilisent images d'objets individuels pour exprimer des concepts abstraits. Ils exigent étude et contexte pour être compris. Mais la pictographie paraît avoir d'autres limitations. Quand comparé à langue verbale, un exemple majeur de ces limitations est la représentation du sexe-gendre. En 2005, une étude de 49 systèmes de signalétique à l'Université d'Aveiro conclue le sexe féminin était peu représenté, et très stéréotypé. Néanmoins, l'article en analyse quelques récents essais d’utiliser des signes de circulation non-sexistes, a fin de déterminer si c'est possible de faire une réforme ou amélioration des langages pictographiques.

Mots-clé langage, gendre, pictogrammes, signalétique.

 

 

1. Introdução

No decurso de grandes acontecimentos de massas, nos pavilhões das feiras internacionais, nos congressos, nas grandes competições desportivas – mas também nos aeroportos e centros comerciais, nos hotéis, restaurantes e escritórios, nas próprias ruas, cruzamentos, rotundas e jardins – somos hoje confrontados/as com uma multidão de sinais de trânsito, placas de sinalização e sinalética comercial variada, cuja presença influi directamente na vida das populações. Inevitáveis, diríamos mesmo imprescindíveis, tais sistemas de informação e orientação no espaço recorrem ao uso de pictogramas, i.e. de imagens ou signos figurativos utilizados para exprimir conceitos abstractos, comunicar ordens e/ou proibições.

Neste artigo pretendemos reflectir sobre o modo como esta linguagem pictográfica, longe de constituir (como é frequente afirmar-se, cf. Krug et al., s.d.: 2; Costa, 1998: 89; Dreyfuss, 1984: 16 e ss.; Aicher e Krampen, 1995: 5, 129; Ota, 1993: 18; Horton, 1994: 6) uma espécie de «linguagem universal», intuitiva e de reconhecimento imediato, antes apresenta, pelo contrário, algumas importantes limitações. De facto, é nossa convicção que, não só a pictografia sinalética não tem um alcance universal – até porque historicamente situada, como qualquer outra linguagem, num contexto sociocultural específico –, mas a sua própria pretensão «universalista», obrigando a um elevado grau de redundância na transmissão da mensagem, conduz ao uso empobrecedor da caricatura e do estereótipo, nomeadamente ao nível das representações de género.

Em 2005, um estudo levado a cabo na Universidade de Aveiro, em que foram analisados 49 programas de sinalética oriundos de diversos países (perfazendo uma amostra de cerca de 800 sinais) encontrou a reprodução de inúmeros estereótipos de género, para além de uma utilização sistemática da forma masculina genérica, com uma ocorrência de pictogramas masculinos muito superior à dos femininos (Bessa, 2005).

Esta área cada vez mais importante do design de comunicação, alegadamente empenhada na procura de uma linguagem universal, informativa e neutra, compreende assim uma componente ideológica, possivelmente inelutável mas que é importante compreender e documentar.

Recentemente, contudo, algo de absolutamente inesperado aconteceu: Fuenlabrada, um pequeno município nos arredores de Madrid, decidiu feminizar uma parte dos seus sinais de trânsito e semáforos (El País, 2006; 2007; Público, 2006). Entre 2006 e 2007, em cerca de metade das placas e postes de sinalização luminosa, as tradicionais silhuetas masculinas, utilizadas para assinalar a travessia de peões, receberam saias e rabos-de-cavalo (Fig. 1).1

Figura 1

Novo pictograma para «Travessia de peões» – Fuenlabrada, 2006 – e antigo sinal (à direita)

 

Como seria de esperar, uma tão desrespeitosa e inconveniente medida, fazendo tábua rasa de velhas prerrogativas masculinas, não pôde passar impune. Apesar da reacção positiva da maioria dos habitantes locais, a iniciativa foi imediatamente atacada pelos partidos da oposição2. Foi também ridicularizada nalgumas rádios e jornais, vilipendiada pelos sectores mais conservadores da sociedade espanhola, resultando finalmente numa advertência da Dirección General de Tráfico sob o argumento de que violava o protocolo das Nações Unidas sobre sinalização rodoviária (o que se demonstrou ser falso). A própria extensão e virulência dos ataques apenas vêm demonstrar que, ao contrário do que chegou a afirmar-se, o assunto estava longe de se poder considerar irrelevante.

Na verdade, tal como veremos a seguir, há já alguns anos que um ou outro país europeu vinha utilizando os pictogramas de sinalética – rodoviária ou outra – como forma de questionar certas representações e estereótipos de género. Mas constituirão essas pequenas tentativas de mudança, independentemente das suas louváveis intenções, uma verdadeira solução? A linguagem pictográfica será passível de reforma?

 

2. Da pictografia à sinalética

Em inícios do século XX, com o crescimento das cidades, a proliferação de serviços administrativos, comércios e espaços de lazer, com a globalização da economia e a mobilidade das populações, começam a surgir situações em que os idiomas nacionais (ou os caracteres tipográficos que lhes correspondem), são por vezes substituídos com vantagem por figuras, i.e. pictogramas. A primeira tentativa séria de criar um sistema organizado de signos gráficos deste tipo ficou a dever-se aos esforços do filósofo vienense Otto Neurath. Nos inícios dos anos 20, Neurath e a sua equipa estavam absolutamente convictos da possibilidade de criar um idioma pictográfico internacional, a que mais tarde chamaram Isotype, e que foi utilizado sobretudo em livros, cartazes e outro material didáctico (Fig. 8)3. O projecto de Neurath resultava, em parte, da sua actividade como filósofo: ele é um dos fundadores do Positivismo Lógico, corrente filosófica que se desenvolve inicialmente em Viena, nos anos 1920-30, e que tinha entre os seus objectivos o aperfeiçoamento de uma linguagem ideal, descritiva e lógica, e por isso superior à linguagem corrente, cheia de imprecisões e deficiências (Granger 1995: 83-86; Cordon e Martinez, 1987: 149-59). Neurath acreditava ter descoberto esse idioma no Isotype, espécie de língua hieroglífica intemporal, em que seria possível transcrever todas as línguas do mundo4 – optimismo que constitui a base da actual pictografia sinalética e continua, em parte, a informar o ensino e a prática desta área do Design.

Mas as investigações de Neurath são igualmente contemporâneas dos primeiros convénios europeus para unificação dos sinais de trânsito. E, de facto, nas décadas seguintes, o uso de pictogramas estender-se-á a muitas outras áreas, dos transportes aéreos aos acontecimentos desportivos internacionais (Fig. 2), passando a ter como campo de actuação privilegiado a sinalética e já não a ilustração didáctica.

Figura 2

Pictogramas referentes a modalidades desportivas, Jogos Olímpicos de Munique, 1972, d. Otl Aicher

 

3. Ideogramas, ícones e símbolos

Alguns destes «pictogramas» são, na verdade, sinais de fundo arbitrário ou extremamente convencional. Assim, por exemplo, três triângulos dentro de um círculo para «abrigo nuclear». Mas mesmo no caso dos signos de tipo mais figurativo, ou ilustrativo, deparamo-nos com duas situações distintas: o sentido literal do signo, e o seu sentido derivado.

São exemplos de sentido derivado, a imagem de uma cruzeta querendo significar «vestiário» (e não «cruzeta»), ou de um garfo e uma faca querendo significar «restaurante». A este segundo tipo de sinais, alguns autores preferem chamar ideogramas, designando por esse termo o uso de signos figurativos para exprimir conceitos abstractos (Frutiger, 1999: 81-83; Lupton e Miller: 1999a: 48). A maioria dos pictogramas são, de facto, ideogramas. Um dos casos mais conhecidos é o do recurso à figura de um homem e uma mulher para denotar «Instalações Sanitárias»; enquanto pictograma, lê-se «homem e mulher»; enquanto ideograma, «instalações sanitárias» (Fig. 3). Ou seja, estamos perante algo cujas regras interpretativas implicam aprendizagem e algum grau de convencionalidade – o que contraria a tese da pictografia como uma linguagem intuitiva, de alcance universal e absolutamente neutra, em termos de conteúdos e significações que transmite.

Figura 3

Pictograma ou ideograma? (Da esquerda pra a direita: cruzeta [«vestiário»], chave e carro [«aluguer de automóveis»], homem e mulher [«Instalações sanitárias»]; programa DOT, EUA, 1974-79)

 

Mas de onde vem, então, essa crença tão fortemente arreigada nas vantagens da pictografia como modo de comunicar? Na verdade, o interesse de Neurath numa linguagem visual de carácter «científico» era comum a muito do design modernista das décadas de 1920-30 – um design que, tomando por modelo a pura visualidade da forma, visava alcançar uma comunicação objectiva e unívoca (Lupton e Miller, 1999 b; Golec, 2002). A juntar a isto, nos inícios dos anos 1950, a psicologia da Gestalt favorece o inato e o biológico a expensas do cultural e do adquirido (i.e. a percepção à custa da interpretação), enquanto a Teoria da Informação se concentra na eficácia do processo de comunicação: optimização do canal e redução do ruído. Em ambos os casos, a mensagem é vista como um mero elemento neutro, a ser transportado do ponto A para o ponto B (Moles, 1958, 1982; Kinross, 1989: 140 ss.).

Não menos influente na teoria e prática do design de comunicação, a Semiótica concentra a sua atenção não apenas na mensagem mas também no leitor/receptor. Para descrever a significação, o filósofo americano Charles S. Peirce utilizou o conhecido modelo triangular, de que o signo/significante5, o significado e o referente (i.e. o objecto real que o signo refere) constituíam os vértices (Fig. 4). Já o linguista suíço Ferdinand Saussure, pelo contrário, postulava uma estrutura dual: significante e significado, indissoluvelmente ligados – a relação de significação estabelece-se entre estes dois elementos apenas, não tendo aqui o referente qualquer papel a desempenhar (Peirce, 1931-1935; Saussure, 1915).

Figura 4

Os elementos da significação, segundo Eco (1997: 24)

 

Apesar de Saussure manifestar pouco interesse pela forma como os signos se relacionam com o leitor (aparentemente inconsciente de que diferentes leitores potenciam diferentes interpretações), tivera a vantagem de se aperceber que um signo apenas tem sentido na sua relação com outros signos: significante e significado estão sempre ligados de modo arbitrário. A inclusão do referente neste processo acabou por determinar a procura de uma relação directa entre objectos e palavras, como sucede na teoria da linguagem dos Positivistas Lógicos.

O nó do problema poderá estar no conceito de ícone (Eco, 1997: 123). A semiótica referencial, desenvolvida pelos discípulos de Peirce, distingue entre três tipos de signos: índices (signos que têm uma conexão física com o objecto que referem ou indicam, e.g. o fumo, indício de fogo), ícones e símbolos. Enquanto num símbolo a ligação entre signo e objecto é arbitrária (letras, palavras), um ícone «assemelha-se» ou imita o objecto a que se refere (será o caso de um desenho, uma fotografia, etc.). Foi esta distinção entre ícones e símbolos que determinou as futuras tentativas de substituir convenções culturais (palavras, caracteres tipográficos) por imagens analógicas. Quer o Isotype quer a pictografia sinalética assentam neste princípio.

O norte-americano Charles Morris, que aliás mantinha ligações estreitas com os neopositivistas do grupo de Viena6, foi quem adaptou, transformou e finalmente divulgou as definições de Peirce. A classificação índice/ícone/símbolo, contudo, usada fora do seu contexto original, acabou por resultar em frequentes confusões, abrindo a porta a problemas de difícil solução (ibid.: 53).

Assim, aquilo que parece um ícone pode, por vezes, ser um símbolo. É o caso do já referido pictograma tradicional para «Instalações Sanitárias». Apenas de uma forma muito indirecta, culturalmente determinada, poderia a imagem de um homem e um mulher juntos assemelhar-se, de algum modo, ao seu referente. Ao ponto de vários designers terem proposto a sua substituição por representações mais realistas, e.g. com a inclusão de uma sanita ou de um lavatório nos desenhos (Lupton e Miller, 1999a: 42, 48; Lupton, 1989: 149; Modley, 1976: X; Ota, 1993: 119; Frutiger, 1999: 273).

Figura 5

Da esquerda para a direita: «urinóis» e «WC/retretes», Jogos Olímpicos de Munique, 1972, d. Otl Aicher; «sanitários», Japão, c. 1993, d. Yukio Ota; sinalização a bordo de aviões, c. 1970 [Dreyfuss, 1984: 36]

 

4. Masculino e «falso neutro»

Temos portanto que, por um lado, a alegada «monosemia» dos pictogramas (Massironi, 1996: 129; Costa, 1989: 141) é ilusória – de que modo poderemos saber, em cada caso, se estamos perante um pictograma em sentido estrito, denotando o objecto físico por si representado, ou perante um ideograma? Apenas o contexto nos permite decidir. Por outro lado, mesmo pictogramas stricto sensu visam prefigurar não um objecto físico, específico e único, mas o inumerável conjunto de todos os objectos possíveis, pertencentes a uma classe. O pictograma de uma mesa não representa uma mesa, mas sim o conjunto de todas as mesas possíveis e imagináveis. Ora, como já Platão referia, todo o objecto particular contem limitações relativamente ao conceito (eidos) que pretende ilustrar. Se a ideia de «mesa» for ilustrada através duma mesa rectangular, de quatro pernas, fica de fora a mesa pé-de-galo; se o conceito «pessoas» for – como geralmente é – ilustrado por um adulto do sexo masculino, ficam de fora crianças e mulheres.

Acresce que o mesmo signo gráfico, (ou signos gráficos muito semelhantes), podem, num mesmo programa de sinalética, revestir significados diferentes. Em cada uma das Figs. 6 e 7, por exemplo, os dois últimos pictogramas («I.S. masculinas » e «I.S. femininas») denotam apenas um dos sexos. Em todos os restantes casos, porém, pictogramas masculinos são utilizados para referir pessoas de ambos os sexos, i.e. homens e mulheres. Caso especialmente flagrante desta variação de sentido é a Fig. 6: o segundo sinal significa «Homens», enquanto o primeiro significa «Proibida a entrada [a homens e mulheres]». Sucede isto porque na linguagem corrente (códigos falado e escrito) o masculino funciona como uma espécie de significante universal.

Figura 6

Osaka, Japão, 1970, d. Isozaki Arata e Fukuda Shigeo

 

Figura 7

EUA, 1985, d. P. Singer e P. Reedijk

 

Comparando a relação entre os dois sexos à de duas electricidades, Simone de Beauvoir (1975: 11 ) disse uma vez que «o homem representa ao mesmo tempo o pólo positivo e o neutro»; à mulher restava-lhe ser o negativo, o Outro do homem. Por isso dizemos «o Homem», ou «os homens», para designar o conjunto dos seres humanos (cf. Fig. 8 para um exemplo desta prática em pictografia). Maria Isabel Barreno (1985) utilizou também a expressão «Falso Neutro» para referir este uso abusivo do masculino universal – fenómeno que não pode ser interpretado em termos puramente linguísticos mas antes se enquadra numa prática discursiva mais generalizada, inerente a uma cultura patriarcal que desvaloriza e exclui as mulheres constituindo-as excepção à norma masculina (Cameron, 1985; Spender, 1985).

Figura 8

Quadro estatístico mostrando a diversidade étnica de diversos países/impérios; O. Neurath, Die Bunte Welt (Viena, 1929)

 

Nos últimos anos têm-se procurado modos de discurso alternativos, nomeadamente substituindo os termos masculinos por outros, sem especificação de sexo. Em vez de «o homem», dizer por exemplo «as pessoas» ou «os seres humanos » (Miller e Swift, 1981; Cameron, 1994). Contudo, em pictografia, este procedimento revela-se difícil.

A Fig. 9 mostra uma placa de sinalização em que se lê: «Peão, na estrada caminhe pela sua esquerda». Neste caso, a inclusão do pictograma de um homem particulariza, i.e. reduz o alcance da mensagem – limitação flagrante do código visual relativamente ao escrito7. Em pictografia, de facto, um termo como «pessoas » é demasiado abstracto; os pictogramas nunca representam «pessoas», mas sim homens e mulheres. Foi esta mesma constatação que, muito provavelmente, levou as autoridades de Fuenlabrada a redesenhar os seus sinais de trânsito.

Figura 9

Placa de sinalização rodoviária

 

 

5. Marcadas pela saia

Apesar da barba, o primeiro homem das cavernas tinha uma mentalidade infantil e só pelo instinto, e não pela razão, podia ele distingir um sexo do outro. Podia diferenciar uma mulher de um homem, mas não sabia dizer porquê. Esta ignorância primitiva era realmente embaraçosa... [Até que] estando ele diante da caverna o dia inteiro, a ver as pessoas irem e virem, fez-se-lhe luz no espírito. As que traziam saias eram mulheres, os que tinham calças eram homens – excepto na Escócia (Groucho Marx (1987: 41-42).

Homens vs. mulheres: as oposições binárias gozam de um estatuto especial em linguística e semiologia8. De facto, para alguns autores elas constituem uma propriedade intrínseca da «mente humana» – a melhor, se não mesmo a única forma de produção de sentido (Lévi-Strauss, 1964; Lacan, 1966; Leach, 1976). À semelhança dos dígitos binários (1 e 0) na linguagem dos computadores, masculino e feminino apenas fariam sentido por contraste mútuo (para uma crítica desta opinião cf. Cameron, 1985: 58).

Mas associada a estes pares binários existe a tendência para privilegiarmos um dos elementos relativamente ao outro. Tendemos a valorizar alto relativa mente a baixo, direito relativamente a esquerdo, destro a canhoto, etc. Este fenómeno é conhecido, em Linguística, por teoria da marcação. Palavras etimologicamente mais antigas ou de uso mais frequente, denominadas «não-marcadas», possuiriam um carácter mais universal ou neutro relativamente a outras. Assim, por exemplo, a palavra satisfeito, seria não-marcada relativamente a insatisfeito, com o prefixo in- indiciando um desvio ou derivação do termo anterior (o mesmo sucederia, a um outro nível, com destro e canhoto: estatisticamente os/as destros/as constituem a maioria, etc.).

Alguns linguistas consideram, para além disso, que em qualquer língua a forma masculina constitui o padrão, o termo de comparação relativamente ao qual se situa o feminino9. Da mesma forma que valorizamos alto relativamente a baixo, e direito relativamente a esquerdo, assim também quando atribuímos ao feminino o estatuto de «segundo sexo», isso ocorreria de modo natural. A des-valorização do termo mulher, a razão porque dizemos «o Homem» para significar «as pessoas», estaria assim explicada: é parte integrante da própria estrutura da língua. As autores feministas, por seu lado, têm frequentemente argumentado que assumir que o masculino é não-marcado, é o mesmo que assumir que o mundo é masculino (Spender, 1985: 20).

Qualquer que seja a validade desta teoria, a verdade é que, como refere o designer japonês Yukio Ota (1993: 119), «a diferenciação entre homens e mulheres [nos pictogramas] constitui um problema para os designers. Até agora a maioria recorreu às roupas. Mas… com o defeito de a figura, como um todo, se tornar mais complicada».

Como pode observar-se nas Figs. 10 a 12, a saia – mas também o cabelo comprido, o peito, as nádegas – constituem um acrescento, uma espécie de sufixo ou desinência, que tornam a forma feminina marcada. Daí a dificuldade em utilizar o pictograma de uma mulher para designar «pessoas em geral». Pela complexificação do desenho, pela inclusão de um ou mais pormenores, a figura feminina torna-se um caso particular da masculina. Esse pormenor é geralmente a saia. A sua presença é ubíqua nos pictogramas, apesar da grande percentagem de mulheres que usa calças.

 

Figura 10

Marcação saia (Da esquerda para a direita: Isotype, c. 1940; aeroportos alemães (RFA), 1968, d. Krampen e Kapitzki; ERCO, Alemanha,1976, d. O. Aicher; DOT/transportes aéreos, EUA, 1974-79)

 

Figura 11

Marcação cabelo e saia (Da esquerda para a direita: Jogos Olímpicos do México, 1968, d. L. Whyman e B. Cole; Caminhos de ferro holandeses, s.d.; sinalética hospitalar, Índia, c. 2002, d. Ravi Poovaiah)

 

Figura 12

Marcação anatómica (Da esquerda para a direita: Departamento de Turismo da Nova Scotia, Canadá, anos 70; Medical Access, EUA, 1985, d. Michael Everitt; pormenor do anterior)

 

 

Mas a saia pode ainda ser explicada pelas características intrinsecamente conservadoras do medium – as mesmas que determinam o recurso a estereótipos visuais de vária ordem como, por exemplo, o pictograma de uma obsoleta locomotiva a vapor no sinal de «Passagem de nível sem guarda». Ironicamente, nos países ocidentais as calças constituem desde há séculos um símbolo da autoridade masculina (cf. a expressão «vestir as calças do marido»), a ponto de se terem tornado igualmente um símbolo da emancipação das mulheres (Lurie, 1994: 250; Wilson, 1989: 218)10.

Um pormenor que, como veremos, as/os reformadoras/es de Fuenlabrada parecem ter subestimado.

 

6. Uma análise de conteúdo

Como referimos no início, a análise de conteúdo efectuada em 2005, na Universidade de Aveiro, a 49 programas de sinalética encontrou uma relação directa entre o sexo-género representado e a frequência de representação (Bessa, 2005). O Quadro I mostra, em valores absolutos, o número de pictogramas representando adultos (ou adultos acompanhados de crianças) então analisados11.

 

Quadro I

Número de pictogramas representando pessoas adultas (ou pessoas adultas acompanhadas de crianças). Análise da frequência de ocorrência, em termos de género

Masculino 360
Feminino 87
Misto 60
Indeterminado 215
Total 722

 

Como pode observar-se, a percentagem de pictogramas femininos é muito inferior à de pictogramas masculinos – provavelmente em resultado do estatuto de significante universal (falso neutro) atribuído a estes últimos. O mesmo não sucede, curiosamente, nos casos de pictogramas representando crianças (Quadro II); embora o universo da amostra seja menor, os dois sexos surgem aí equilibrados.

Quadro II

Número de pictogramas representando exclusivamente crianças. Frequência de ocorrência, em termos de género

Masculino 9
Feminino 8
Misto 9
Indeterminado 41
Total 67

 

A reforçar este fenómeno de semi-invisibilidade (Smith, 1978), o feminino, quando representado, configura situações de excepção, bem definidas relativamente ao masculino. Assim, nos programas analisados, deparamo-nos com duas espécies de estereótipos. Em primeiro lugar, a constante associação entre mulheres e crianças, ou profissões que lidam com crianças. Não só a percentagem de pictogramas femininos é, como vimos, muito maior nas crianças do que nos adultos, como as mulheres adultas aparecem frequentemente acompanhadas de bebés e crianças (Quadro III; cf. também Fig. 13).

Quadro III

Pictogramas referentes a pessoas adultas que acompanham crianças. Frequência de ocorrência, em termos de género

Masculino 4
Feminino 13
Misto 3
Indeterminado 2
Total 22

 

Figura 13

Diversos pictogramas mostrando adultos acompanhados de crianças (Da esquerda para a direita: Austrália, 1972; aeroporto de Frankfurt, 1970; New York City Hospitals, EUA, c.1970 ; parques naturais da Suécia, s.d.; EUA, c. 1990; Áustria, 1980; Japão 2002; Suécia, 1972)

 

Mas é igualmente possível descortinar a actuação do estereótipo ao nível da limitação/promoção de determinados papéis de género. Para além das já referidas profissões que lidam com crianças, encontramos numerosos exemplos das chamadas «profissões femininas», envolvendo a realização de tarefas mais ou menos subalternas: recepcionista, hospedeira, secretária, empregada de limpeza (Quadro IV)12.

Quadro IV

Principais profissões encontradas nos programas de sinalética. Frequência de ocorrência em termos de género

Profissão Masculino Feminino
Médico/a 10 1
Enfermeiro/a - 5
Polícia ou agente da autoridade 27 -
Educador/a de infância ou auxiliar - 6
Recepcionista, balcão de informações 3 8
Serviço de quartos (hotel) - 3
Gestor/a, director/a 3 -
Secretariado - 1
Hospedeira de bordo 1 2
Homem/mulher de negócios, viajante 25 1

 

Como pode observar-se, os cargos de autoridade e de chefia (ou pelo menos assim considerados) são, de um modo geral, representados por figuras masculinas. A profissão de enfermeiro, por exemplo, surge como profissão feminina, enquanto a de médico é quase sempre representada por um homem13. O mesmo sucede com as profissões de educador/a de infância, em relação à de professor/a; com a de secretária/o em relação à de gestor/a, etc. Naqueles casos em que a interacção cliente/empregado aparece representada, quem recebe ou atende clientes masculinos é quase sempre uma mulher, enquanto o contrário nunca acontece (Fig. 14).

Figura 14

Pictogramas relativos a serviços de informações, check in, recepção de hotel e recepção de hospital (Da esquerda para a direita: Alemanha, 1968, d. Krampen e Kapitzki; Canada, 1970 (2 pictogramas); aeroporto de Dallas, EUA 1973, d. H. Dreyfuss; EUA, 1995, d. Todd Pierce; Austrália,1985)

 

O nosso conceito ou imagem mental de um objecto não é, como supunha Neurath, o resultado directo de experiências perceptivas de dados da Natureza; antes implica todo um complexo processo cultural que inclui clichés transmitidos pelos media, educação, família e meio social envolvente. Quando nos mostramos incapazes de o reconhecer, quando apenas somos sensíveis à iconicidade aparente dos pictogramas, estes podem tornar-se um perigoso obstáculo à compreensão do mundo que nos rodeia.

A comparação entre programas de épocas distintas permite também concluir que a pictografia sinalética é, na sua essência, conservadora. Em parte, isto deve-se às características do medium: por necessidade técnica de simplificação da mensagem, a pictografia está como que condenada à produção e reprodução de estereótipos, i.e. a transmitir-nos uma pouco elaborada caricatura da realidade (Dewar, 1999: 290, 298; Costa, 1989: 141). Por outro lado, mudanças abruptas no desenho dos sinais poderiam resultar também em confusão por parte dos/as utentes (ou mesmo, no caso da sinalização rodoviária, convergir em situações de perigo). Restará então aos designers continuarem a trabalhar com um conjunto limitado de estereótipos, i.e. de «caracteres fixos»14? Ou afigura-se possível mudar estar situação?

 

7. Combatendo a invisibilidade

Quando, em finais de 2006, o pequeno município de Fuenlabrada iniciou a sua campanha para substituir parte dos pictogramas masculinos nas placas de trânsito, o caso atingiu dimensões inesperadas – ao mesmo tempo que, tornando-se notícia nos media, o debate se alargava a outros países. E no entanto, se bem que pioneira, a ideia não era inteiramente nova. Há já algum tempo que outros países europeus vinham utilizando sinais de trânsito genderizados.

Na Alemanha, o conhecido Ampelmann (ou Ampelmännchen, «homenzinho dos semáforos») é uma herança da ex-RDA. Com o seu chapéu cómico e andar entusiasta, esta figura tornou-se, desde os anos 60, uma espécie de mascote para os habitantes de Berlim Leste e outros locais. Em Novembro de 2004, alguém decidiu que era altura de este popular personagem se tornar num símbolo da igualdade e foi criada a Ampelfrau15. Desde então, semáforos com figuras femininas apareceram igualmente na vizinha Holanda, nomeadamente nas cidades de Amersfoort e de Utrecht (Fig. 15).

Figura 15

Da esquerda para a direita: Ampelmann, Ampelfrau e figura dos semáforos de Amersfoort, na Holanda

 

Porquê então o alarido, no caso de Fuenlabrada? Em parte por razões culturais e, até mesmo, políticas – não será certamente irrelevante o facto de o município ser gerido por uma coligação do PSOE e Esquierda Unida. Por outro lado, o Ampelmann sempre foi encarado como uma figura engraçada e simpática, mais personagem de B. D. do que cidadão anónimo. Desenhar-lhe uma cara-metade (à semelhança do que acontece com o Rato Mickey ou o Pato Donald que têm também, cada um deles, a respectiva companheira) parecia uma coisa natural. Não sucede o mesmo com a acção abertamente feminista de Fuenlabrada.

E contudo, em Janeiro de 2007, há novos desenvolvimentos: a Câmara Municipal de Viena resolve, também ela, lançar uma campanha contra o sexismo dos pictogramas (Der Standard, 2007). Enquanto a iniciativa de Fuenlabrada apenas dizia respeito aos sinais de trânsito, este novo projecto era bastante mais ambicioso. Intitulado Wien sieht’s anders («Viena vê de forma diferente»), abrangia diversos tipos de sinalética, placas de informação e autocolantes. Também não pretendia mostrar simplesmente mais mulheres (combater a invisibilidade feminina), mas mostrar mais homens em tarefas menos usuais, questionando os papeis tradicionais de género.

Tal como em Espanha, houve reacções variadas mas, uma vez mais, e de modo não completamente inesperado, a maioria das críticas veio dos homens. Houve também uma forte reacção dos partidos conservadores austríacos e um incidente desagradável quando alguns sinais tiveram de ser retirados devido a directivas da União Europeia sobre segurança (e.g. os sinais para «Saída de emergência » e «Trabalhos na estrada» da Fig. 19).

 

8. Um passo em frente, dois atrás?

No estudo realizado na Universidade de Aveiro foi possível encontrar alguns exemplos de «evolução» nos pictogramas das décadas de 1990-2000, quer ao nível da invisibilidade do feminino, quer ao nível dos estereótipos de género, com a introdução de soluções inovadoras. Concluía-se, contudo, que alguns dos problemas colocados pela linguagem sinalética eram insolúveis.

Existirão razões para alterar esta posição algo pessimista? Ao punhado de pictogramas não-sexistas então encontrados, poderiam acrescentar-se agora as novas sinaléticas de Fuenlabrada e de Viena; aparentemente houve progressos. E no entanto, todos estes casos, antigos e recentes, se apresentam problemáticos e cheios de contradições. Comparando, por exemplo, o antigo pictograma dos EUA para «Serviço de pediatria» com outro mais recente (Fig. 16), poder-se-ia pensar que este último é menos enviesado, além de politicamente correcto ao pressupor a partilha dos cuidados parentais. O elemento problemático é que o novo pictograma espelha modelos ideológicos da chamada família nuclear tradicional. Mães solteiras e famílias monoparentais dificilmente considerariam a mudança como positiva.

Figura 16

Pictogramas para «Serviço de pediatria»: Nova Iorque, década de 1960, e Danville Regional Medical Center, EUA, 2002?, d. Gladys Brenner

 

Também o novo pictograma para «Carrinhos de bebé» dos comboios suburbanos do Porto pode, a um primeiro olhar, parecer um progresso relativamente a representações de género mais tradicionais (Fig. 17); mas na verdade acaba por contribuir para um aumento da invisibilidade das mulheres. Fosse essa a intenção ou não, o facto é que, neste programa específico, os pictogramas masculinos assumem – uma vez mais – o valor de forma universal genérica à custa dos femininos, que simplesmente desaparecem. Um outro exemplo é o dos «Lugares reservados a deficientes, grávidas e acompanhantes de crianças de colo»: o novo autocolante visa contrariar o estereótipo tradicional de uma mãe com bebé ao colo, substituindo-o por um homem com bebé (Fig. 18). Mas, desta forma, o pouco equilibrado programa dos suburbanos do Porto apenas conseguiu eliminar da sua sinalética todas as mulheres – excepto a grávida.

Figura 17

Pictogramas para «Cadeiras de rodas, carrinhos de bebé e objectos de grandes dimensões», Unidade de Suburbanos do Porto, 2003 (Pormenor à direita)

 

Figura 18

Comparação entre as antigas placas de «Lugares reservados a deficientes, grávidas e acompanhantes de crianças de colo» e os novos autocolantes dos Suburbanos do Porto

 

Problemas de índole quase oposta ensombram os projectos de Fuenlabrada e de Viena. Em ambos os casos, uma crítica recorrente foi que os novos pictogramas eram, na realidade, sexistas e reproduziam estereótipos de género, uma vez que continuavam a representar as mulheres do ponto de vista dos homens: mulheres elegantes, de cabelo longo e botas de salto alto, usando saia ou vestido. No caso de Viena, por exemplo, a saia no sinal de «Trabalhos na estrada» (Fig. 19) mais parece uma piada sexista de mau gosto do que uma tentativa séria de chamar a atenção para as questões de género. Críticas semelhantes foram ouvidas quando, em Abril de 2008, o governo sueco anunciou a sua decisão de introduzir pictogramas femininos nas placas de sinalização vertical relativas à «Travessia de peões»16. Algumas feministas suecas criticaram o projecto sob o argumento de que os novos pictogramas representarão apenas um certo tipo de mulher, constituindo-se como normativos relativamente àquilo que as mulheres podem/devem ser.

Figura 19

Pictogramas para «Saída de emergência» e «Trabalhos na estrada» – Viena, 2007

 

Os novos pictogramas são também «marcados» – e, de facto, parece não haver modo de evitar os rabos-de-cavalo e as saias na representação do feminino17. Como referimos atrás, o recurso a estereótipos e a simplificação excessiva são, até certo ponto, intrínsecos às linguagens visuais. E, se há quem defenda o redesenho dos pictogramas e a criação de figuras assexuadas, também já foi sugerido que a melhor forma de atingir um equilíbrio genuíno nos sinais consiste em adoptar a solução contrária. Ou seja, restabelecer e/ou enfatizar algumas características «marcadas» dos pictogramas masculinos: adornar as figuras com chapéus, gravatas/laços ou bonés de basebol (o peão de fato e chapéu, da Fig. 1). Desta forma, o velho argumento de que as tradicionais silhuetas não representam necessariamente homens («as figuras são demasiado abstractas», «poderiam ser mulheres de calças»...) terminaria de vez18.

O programa de sinalética desenhado por Shigeo Fukuda para a Expo 98 em Lisboa constitui um indício interessante do que poderá vir a ser a nova estratégia (Fig. 20). É aliás o que melhor parece ter resolvido o problema da marcação, e.g. nos pictogramas referentes a «WC Homens» e «WC Mulheres. Ambos os sexos (e não apenas o feminino) surgem aí como marcados relativamente a pictogramas genéricos como sejam «WC genérico» ou «Telefone».

Figura 20

Pictogramas para «Telefone», «WC Homens», «WC Mulheres» e «WC Genérico» – Expo 98, Lisboa, d. Shigeo Fukuda

 

Quaisquer que sejam as soluções encontradas, permanece o facto de a linguagem não ser neutra. Embora a possamos conceber, um pouco à maneira dos positivistas lógicos, como um espelho da realidade – mas apenas no sentido em que ela reflecte o modo como organizamos o mundo e nos organizamos em sociedade – por essa mesma razão ela não reflecte igualdade (Goddard e Patterson, 2000: 73). As sociedades humanas, enquanto formas de organização patriarcal, ainda têm por base a discriminação e a desigualdade de oportunidades. Daí a necessidade – e actualidade – da reforma feminista da língua como contribuição para a mudança das relações de poder entre os sexos. Até ao momento, as mudanças na pictografia estão muito atrás das ocorridas na linguagem verbal. Isto não se deve a inépcia ou má vontade por parte dos designers mas a características decorrentes do próprio medium.

 

9. Conclusão

Apesar de iniciativas louváveis, como a de Fuenlabrada, é pouco provável que, num futuro próximo, todos os pictogramas genéricos (i.e. masculinos) possam ser repensados, de modo a receberem um correspondente feminino. Nunca será fácil, por exemplo, modificar o sinal de «Proibida a entrada», representado na Fig. 21. Qualquer versão feminina do mesmo, que pretendesse contrariar a omnipresença do falso-neutro (combater a invisibilidade feminina), parece estar condenada ao fracasso. Como pode observar-se, o sinal resultante torna-se algo ambíguo, introduzindo um significado restritivo que não consta do original. É muito provável que este novo pictograma fosse interpretado como proibindo a entrada, não a pessoas em geral, mas exclusivamente a mulheres.

Figura 21

«Proibida a entrada», Japão 2002, d. Kenzo Nakagawa, e hipotética versão feminina

 

Vimos atrás de que modo um pictograma masculino tanto pode referir-se a homens ou a pessoas em geral, dependendo dos contextos (cf. supra, Fig. 6). Um pictograma feminino, porém, será sempre lido em primeiro lugar como uma referência específica às mulheres. De facto, como recorda Deborah Cameron (1985: 69), na prática discursiva corrente «o homem pode apagar a sua masculinidade [marca específica] mas a feminilidade nunca pode ser apagada». E no entanto, a linguagem confunde-se com o próprio processo de construção social da realidade – ela determina, tanto quanto é determinada; reproduz, como constrói. Criando discursos alternativos, ainda que provisórios, estaremos a contribuir para abalar as mesmas estruturas e processos linguísticos que detêm um papel central na manutenção das desigualdades de género.

Talvez tão importante quanto os projectos de índole institucional, com o seu corolário de aceitação passiva e indiferença a longo prazo – quando, em Março 2207, a campanha de Fuenlabrada entrou na sua segunda fase muitos transeuntes não se aperceberam da mudança nos semáforos (El País, 2007) – são os gestos aparentemente menores de obscuros/as activistas anónimos/as visando uma reapropriação do espaço público. Estamos a pensar na recente tendência, por parte de grupos feministas e antiglobalização para, ao invés de simplesmente apagar ou vandalizar outdoors de publicidade comercial mais abertamente sexista, tentar subvertê-los de um modo inteligente. A mesma estratégia tem sido aplicada aos pictogramas: a Fig. 22 ilustra a acção de um grupo feminista português, envolvendo a colocação de garridos autocolantes-saia nos tradicionais semáforos e placas de sinalização masculinos (Colectivo Feminista, 2006). Confrontar o/a cidadão/cidadã comum com figuras inesperadamente re-genderizadas, que colidem com os seus hábitos visuais, pode ser extremamente eficaz em termos de percepção da realidade.

Figura 22

Acção de rua – Colectivo Feminista, Setembro 2006

 

Concluindo, a pictografia sinalética tem evidentes limitações (como tem também vantagens) relativamente aos códigos falado e escrito. Um exemplo inequívoco dessas limitações é-nos dado pelas inúmeras dificuldades que rodeiam a representação equilibrada e paritária do género. Importa que estejamos conscientes do facto, em vez de idealizarmos este tipo de linguagens visuais como se de uma solução mágica se tratasse para todos os nossos problemas. Até porque, desnecessário será dizê-lo, esta forma de comunicação afigura-se realmente indispensável no mundo de hoje e os pictogramas estão aqui para ficar.

 

 

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Notas

1 Em Abril de 2008, o governo da Suécia adoptou medidas semelhantes, mas aplicáveis a todo o país. Segundo noticiou a SVT (2008 a; 2008 b), até finais de Dezembro novas placas de sinalização, mostrando mulheres em vez de homens, começarão a ser colocadas ao lado das antigas.

2 Fuenlabra é gerido por uma coligação do PSOE e da Esquierda Unida.

3 Marie Neurath (de solteira Reidemeister) trabalhou como assistente de Otto praticamente desde o início, tendo desempenhado um papel crucial na concepção e design dos pictogramas (embora o desenho final ficasse a cargo de outros membros da equipa). Em 1934, devido à pressão política na Áustria, ambos emigram para a Holanda, e depois para Inglaterra, onde acabam por casar em 1941. Nesse mesmo ano fundam o Isotype Institute, inicialmente com sede em Oxford e mais tarde em Londres. Otto faleceu em 1945, mas o Isotype Institute manteve-se em funcionamento até 1972, data em que Marie Neurath decidiu retirar-se.

4 Um pouco à semelhança do Esperanto, língua artificial criada por Leijzer L. Zamenhof, em finais do século XIX, o Isotype (International System Of Typographic Picture Education) tinha também pretensões humanistas: uma linguagem internacional de imagens permitiria educar e aproximar os povos. Cf. por exemplo, Marie Neurath, 1984 [1972]: 25.

5 O termo original de Peirce era signo. Ainda hoje, na linguagem corrente – e mesmo noutras áreas científicas que não a Semiótica – signo é quase sempre usado como sinónimo de significante.

6 A edição da International Encyclopedia of Unified Science ( vol.I, Chicago, 1938), por exemplo, foi um projecto conjunto de Morris, Rudolf Carnap, e Otto Neurath.

7 Os substantivos cuja distinção de género é efectuada unicamente pela forma do artigo que os precede (o intérprete ou a intérprete; o pianista ou a pianista) são considerados como possuindo dois géneros pelas gramáticas; aqueles cujo artigo não varia, i.e. que tanto podem designar um ser do sexo masculino como um do feminino (a criança – menino ou menina; o cônjuge, etc.) só têm um género, i.e. ou são masculinos (cônjuge) ou femininos (criança) – não havendo aqui que fazer confusão entre género gramatical e sexo-género. O vocábulo peão poderia facilmente incluir-se neste último grupo. Todavia, alguns dicionários (Gonçalves, 1966; Porto Editora, 2006), indicam peã e peona, como feminino de peão, se bem que estas designações não tenham uso na linguagem corrente. O Dicionário Houaiss (2001) regista peoa e peona, mas considera-os regionalismos do Brasil; de facto, designam a «mulher que presta serviços braçais», e.g. no campo, e não a «pessoa que anda a pé»; ao nosso peão chamam os brasileiros pedestre.

8 Do grego semeion e logia, «discurso ou estudo dos signos». Nos países anglo-saxónicos, o termo mais utilizado é semiotics, ao passo que na tradição europeia foi corrente, durante muito tempo, o termo semiologia. Este último remete geralmente para F. Saussure, a escola francesa e o estruturalismo, enquanto que semiótica remete para os estudos desenvolvidos por Peirce e C. Morris, no âmbito do Pragmatismo americano. Como foi referido acima, Peirce e Saussure estão na origem de dois modelos diferente de significação.

9 Em inglês, o termo fe-male aparece como «marcado» relativamente a male. Isto bastou para que linguistas como Geoffrey Leech (1968) desenvolvessem as categorias semânticas plus-male e minus-male, utilizadas para diferenciar os sexos numa base de «mais» e «menos». As mulheres e as fêmeas das várias espécies animais são definidas como non males («não-machos»), considerando-se que os machos representam o indivíduo-padrão da espécie.

10 Ao contrário do que sucedia nos países islâmicos, no mundo ocidental, até cerca de 1900, apenas algumas operárias encarregadas de trabalhos mais grosseiros usavam calças, e.g. no trabalho das minas. É só nessa altura que, com a introdução da bicicleta, se difunde o uso das saias-calça para as ciclistas – exigidas pela decência mas consideradas simultaneamente impróprias ou anti-femininas. Utilizadas, a partir dos anos 30, como roupa de trabalho, desporto ou jardinagem, as verdadeiras calças tardaram em generalizar-se e apenas em finais de 60 se tornaram parte do traje respeitável e elegante. Nos anos 50 eram aceites, por exemplo, como traje informal nos EUA mas a maioria das escolas e universidades insistia no uso da saia para assistir às aulas; em Portugal esta situação durou praticamente até ao 25 de Abril.

11 Num elevado número de casos foi impossível determinar o género representado.

12 No centro daquilo que designa por «espaço semântico negativo» do feminino, Julia Stanley (1977) coloca os papéis de esposa e mãe, além do desempenho de funções e trabalhos subalternos. Lupton e Miller (1999 a, p.42) referem uma situação semelhante na sinalética de aeroportos: o único lugar onde, para além da casa de banho, podemos encontrar o pictograma de uma mulher é no sinal de «Venda de bilhetes/check in».

13 O único caso encontrado de um médico e uma médica (female doctor) era oriundo de Bombaim, na União Indiana (2002?, d. Ravi Poovaiah), mas a existência de dois sinais tem um correspondente na duplicação de pictogramas distinguindo entre pacientes masculinos e femininos (e.g., «fila de espera para homens» e «fila para mulheres»).

14 O termo estereótipo (do grego stereós, «sólido» + t_pos, «molde») é oriundo da tipografia, onde designava a impressão em chapa sólida ou de caracteres fixos.

15 Os novos sinais foram inicialmente introduzidos em Zwickau e, no início do ano seguinte, em Dresden. Na Dinamarca existem também, desde data incerta, semáforos que mostram figuras de ambos sexos, mas reunidas no mesmo pictograma; o mesmo aconteceu, em tempos, na Bélgica.

16 Cf. nota 1.

17 Desse ponto de vista, o pictograma/semáforo de Amersfoort (Fig.15) constitui uma excepção: mantém-se o rabo-de-cavalo, mas foi eliminada a saia.

18 Nalguns países o argumento resulta especialmente ridículo, já que os próprios sinais têm nomes masculinos. É o caso dos sinais luminosos no Reino Unido (onde o homenzinho da luz verde é conhecido por green man) e na Alemanha (Ampelmann). Na Suécia, o pictograma das placas de «Travessia de peões» é tradicionalmente designado por Herr Garman – à letra «Sr. Anda-homem», mas também um trocadilho com a frase «É aqui que se anda [=atravessa]» (man tanto pode significar «homem» como corresponder ao nosso pronome «se», utilizado para indicar indeterminação do sujeito). A versão feminina, a ser implementada até finais de 2008, irá chamar-se Fru Garman, i.e. «Sra. Anda-homem».

 

 

Pedro Bessa (1963) é Professor Auxiliar do Curso de Design no Departamento de Comunicação e Arte da Universidade de Aveiro. Área de investigação: Design e Estudos de Género. É membro da APEM e da EAD/European Academy of Design. Licenciado em Artes Plásticas-Pintura (ESBAP, 1990), bolseiro na School of Visual Arts, em Nova Iorque (1990), Mestre em Fine Art and Theatre: interdisciplinary and theoretical studies (University of Surrey, 1993), Doutorado em Design (Universidade de Aveiro, 2005). Editor associado de The Design Journal (Salford, 1998-2002), actualmente é director do Curso de Design da Universidade de Aveiro.

e-mail: pbessa@ua.pt

 

Artigo recebido em 28 de Julho de 2008 e aceite para publicação em 15 de Abril de 2009.

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