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Ex aequo

versão impressa ISSN 0874-5560

Ex aequo  n.19 Vila Franca de Xira  2009

 

Machado, Helena (2007), Moralizar para Identificar: Cenários da investigação Social da Paternidade, Porto, Edições Afrontamento.

 

Maria do Céu da Cunha Rêgo

Instituto Europeu para a Igualdade de Género

maria.rego@dgaccp.pt

 

 

Gostamos de invocar a Constituição fundadora do nosso Estado de direito democrático.

Gostamos de referenciar a dignidade da pessoa humana como base da República.

Gostamos de contrapor a normatividade jurídica – libertadora de homens e mulheres como sujeitos de direito iguais e autónomos – à normatividade social – opressiva pelo determinismo dos papéis sociais de género, indutores de desigualdade estrutural nos indicadores do desenvolvimento humano das mulheres e dos homens.

E depois, a propósito de uma investigação sociológica sobre a investigação judicial da paternidade, vemos como a intervenção dos tribunais pode tornar distante o direito da vida: «A ideologia de protecção dos direitos e interesses dos menores que rodeia tanto a legislação como as práticas judiciárias que concretizam a investigação judicial de paternidade afiguraram-se como podendo constituir um exercício de poder institucional subtil e eficaz de monitorização de comportamentos femininos considerados atípicos e duplamente “anómalos”, por dizerem respeito não só a situações em que a procriação ocorreu fora do casamento formal como também àqueles em que é legalmente desconhecida a paternidade de um determinado indivíduo. O objectivo principal foi captar os sentidos e significados construídos pelo aparelho jurídico português, em particular pelos magistrados do Ministério Público e pelos juízes, no que toca à paternidade, à maternidade, à sexualidade, à procriação e, em última instância, às normas e valores que “idealmente” devem regular as relações íntimas entre mulheres e homens» (p. 10).

A autora começa por delinear a evolução histórica da investigação judicial da paternidade no direito português, interpretando a actualidade no cruzamento do género com o direito, a ciência e a cidadania e tendo em conta as teorias feministas do direito. O seu estudo incidiu na análise de todos os processos investigação judicial da paternidade existentes no tribunal escolhido, o que abrangeu mais de um século – de 1893 a 2000 – e 1327 casos. Os dados são exaustivamente trabalhados em função da década, dos resultados, da idade, do estado civil e da profissão da mãe e do pretenso pai, e interpretados à luz de inúmera produção teórica portuguesa e estrangeira. E a autora conclui sem hesitar que «os discursos dos magistrados produzidos ao longo de mais de um século revelam a pretensão exclusivista da instância jurídica no que diz respeito à regulação das relações de filiação (…) O controlo social sobre o comportamento sexual e procriativo das mulheres levado a cabo pelo aparelho jurídico é, muitas vezes, dificilmente perceptível e, na generalidade, extremamente eficaz, sendo relativamente aceite, de modo passivo, pela esmagadora maioria dos cidadãos. A análise dos discursos produzidos pelos magistrados permite apreender um determinado quadro cultural que vincula a maternidade e a paternidade ao casamento, nomeadamente ao definir como atributos desejáveis da feminilidade a fidelidade da mulher a um só parceiro sexual (preferencialmente o marido) e o espaço privado como a esfera própria de actuação da mulher (preferencialmente o espaço domestico). Deste modo, o sistema judicial veicula oposições binárias entre mulher e homem pelas quais a identidade da mulher é construída por referência a elementos relacionados com o seu comportamento sexual e procriativo, enquanto que os comportamentos masculinos são colocados na esfera do económico, procurando-se avaliar, por exemplo, se o pretenso pai alguma vez revelou indícios de paternidade, nomeadamente contribuindo para o sustento financeiro do indivíduo cuja paternidade é investigada ou de sua mãe. Esta separação de papeis sexuais remete-nos para a função de cristalização de diferenças de género levada a cabo pelos tribunais. A reafirmação de assimetrias e de desigualdades entre mulheres e homens socorre-se de técnicas de naturalização das diferenças sexuais e de funções parentais» (p. 161-162).

E sobre isto o que diz a lei?

  • nos termos do artigo 5.º da Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres, «Os Estados Partes tomam todas as medidas apropriadas para: a) Modificar os esquemas e modelos de comportamento sociocultural dos homens e das mulheres com vista a alcançar a eliminação dos preconceitos e das práticas costumeiras, ou de qualquer outro tipo, que se fundem na ideia de inferioridade ou de superioridade de um ou de outro sexo ou de um papel estereotipado dos homens e das mulheres; b) Assegurar que a educação familiar contribua para um entendimento correcto da maternidade como função social e para o reconhecimento da responsabilidade comum dos homens e das mulheres na educação e desenvolvimento dos filhos, devendo entender-se que o interesse das crianças é consideração primordial em todos os casos»;
  • nos termos do artigo 16.º da mesma Convenção, «1 Os Estados Partes … asseguram, com base na igualdade dos homens e das mulheres: d) Os mesmos direitos e as mesmas responsabilidades enquanto pais, seja qual for o estado civil, para as questões relativas aos seus filhos; em todos os casos, o interesse das crianças será a consideração primordial»;
  • nos termos do artigo 18.º da Convenção dos Direitos da Criança, «1. Os Estados Partes diligenciam de forma a assegurar o reconhecimento do princípio segundo o qual ambos os pais têm uma responsabilidade comum na educação e no desenvolvimento da criança. A responsabilidade de educar a criança e de assegurar o seu desenvolvimento cabe primacialmente aos pais e, sendo caso disso, aos representantes legais. O interesse superior da criança deve constituir a sua preocupação fundamental»;
  • nos termos do artigo 68.º da Constituição, «1. Os pais e as mães têm direito à protecção da sociedade e do Estado na realização da sua insubstituível acção em relação aos filhos, nomeadamente quanto à sua educação, com garantia de realização profissional e de participação na vida cívica do país. 2. A maternidade e a paternidade constituem valores sociais eminentes».

Para além de considerações fundamentadas sobre a prova científica, a desigualdade de acesso à mesma e o não questionamento sobre a respectiva autoridade, insiste a autora no sentido de que «o impacto da variável género na formulação de sentenças judiciais pode surgir interrelacionada com outras variáveis que não são negligenciadas pelas abordagens feministas do direito, nomeadamente a idade, o estado civil, a raça, a classe social e a profissão. No entanto, de acordo com as correntes feministas, o cerne do processo de tomada de decisão judicial reside na divisão sexual dos papéis sociais. Encontrámos aqui uma das mais ostentatórias e profundas contradições da retórica jurídica, que, baseando-se no princípio fundamental da igualdade dos indivíduos perante a lei, produz e reafirma desigualdades sociais (de género, de classe, de etnia) previamente existentes na sociedade, como seja na esfera da família» (p. 118).

Ou seja, é ainda com base na normatividade social e não na normatividade jurídica que as pessoas são tratadas pelos tribunais, afinal os agentes que devem pôr em prática a normatividade jurídica.

E no entanto, também no âmbito de compromissos políticos da comunidade internacional, «os Estados devem «Elaborar politicas, inter alia, na esfera da educação, para mudar as atitudes que reforçam a divisão do trabalho com base no género, com vista a promover o conceito de partilha das responsabilidades familiares no que respeita ao trabalho doméstico e, em particular, no que se refere ao cuidado das crianças …» (Plataforma de Pequim § 179).

Em meu entender – e a autora também o refere quando conclui pela necessidade de reforço da formação dos magistrados (p. 230) – isto prova que é de muito duvidosa eficácia mudar as leis em áreas que ponham em causa o senso comum, sem acompanhar a mudança de uma reflexão crítica de natureza formativa sobre o que lhe deu origem. As pessoas – incluindo magistrados e magistradas – repetem modelos de comportamento tidos como positivos e sistematicamente validados pelos pares, em vários contextos. Se não forem expressamente convidadas a racionalizar e a concretizar esses comportamentos à luz das normas base enquadradoras do sistema, em que avulta a Declaração Universal dos Direitos Humanos e a sua proclamação de que todas as pessoas – e por isso todos os homens e todas as mulheres – são livres e iguais em dignidade e direitos, continuarão a reproduzir acriticamente tais comportamentos, com a consciência ingénua de que a sua actuação é “óbvia” ou, como se diz em direito, «sem consciência da ilicitude». Porque, de direito (Constituição, Artigo 3.º – Soberania e legalidade – 3. A validade das leis e dos demais actos do Estado, das regiões autónomas, do poder local e de quaisquer outras entidades públicas depende da sua conformidade com a Constituição.) e de facto, é ilícita a interpretação das normas jurídicas pelo órgão de soberania «Tribunais» (Constituição, Artigo 110.º – Órgãos de soberania – 1. São órgãos de soberania o Presidente da República, a Assembleia da República, o Governo e os Tribunais), sem que seja expressamente tido em conta que a promoção da igualdade de homens e mulheres é uma tarefa fundamental do Estado [Constituição, Artigo 9.º – Tarefas fundamentais do Estado – São tarefas fundamentais do Estado: h) Promover a igualdade entre homens e mulheres].

Este estudo poderia ser um magnífico pretexto para juntar magistrados, magistradas, cientistas sociais e especialistas em igualdade de género que a transversalizam, como método, nas respectivas disciplinas num debate contraditório com contraditório e aprofundamento sobre a interpretação e a aplicação do direito sem o viés da desigualdade induzida pelos papéis sociais. Talvez a Associação Portuguesa de Estudos sobre as Mulheres pudesse dinamizar um tal debate, em cooperação com a Helena Machado, a autora da obra que aqui se comenta, com a Associação Portuguesa de Mulheres Juristas, com o Centro de Estudos Sociais, com o Centro de Estudos Judiciários, com Faculdades de Direito que trabalham sobre o tema, com outras universidades que se dedicam a estudos de género ou sobre a igualdade de género.

Este é um trabalho sobre a realidade. Que é dura para quem considera que o direito é uma técnica para a justiça e a paz.

No que me respeita, há muito que defendo que o direito liberta, que o direito é factor de equilíbrio social e de empoderamento para quem tem menos recursos. Não me conformo com a utilização do direito para desvirtuar a justiça ou para enfraquecer a democracia. Apenas por um currículo que persiste em evidenciar-se deficitário na formação de operadores judiciários.

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