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Ex aequo

versão impressa ISSN 0874-5560

Ex aequo  n.22 Vila Franca de Xira  2010

 

É em comum que nós habitamos

 

Fernando Belo

Professor jubilado da Faculdade de Letras de Lisboa

 

Resumo

Trata-se de tentar sair a questão da habitação das oposições entre sujeito/ objecto e liberalismo/comunismo, inspirando-se no pensamento de Heidegger, de Derrida e de Nancy. O acento é posto na aprendizagem dos usos da tribo que vai alterando cada agente ao longo da vida. Termina acenando ao papel inspirador da arte no habitar dos humanos.

Palavras-chave Habitar, sociedade, usos sociais, aprendizagem, bem comum.

 

Abstract


It's in common that we inhabit

The text consists of an attempt to release the question of habitation from the subjectobject and liberalism-communism opposites, drawing inspiration from Heidegger, Derrida and Nancy's thought. Emphasis is placed on the learning of tribe uses which changes each agent throughout life. It ends by considering the inspiring role of art in human inhabiting.

Keywords Inhabit, society, social uses, learning, common good.

 

Résumé

En commun nous habitons

Il s'agit d'essayer de sortir la question de l'habitation des oppositions entre sujet/objet et libéralisme/communisme, avec inspiration dansla pensée de Heidegger, Derrida et Nancy. L'accent est posé sur l'apprentissage des usages de la tribu, qui altère chaque agent tout au long de sa vie. Pour finir, le rôle inspirateur de l'art dans l'habiter des humains.

Mots-clés Habiter, société, usages sociaux, apprentissage, bien commun.

 

«Estas são as casas. E se vamos morrer nós mesmos,
espantamo-nos um pouco, e muito, com tais arquitectos
que não viram as torrentes infindáveis
das rosas, ou as águas permanentes,
ou um sinal de eternidade espalhado nos corações
rápidos.
– Que fizeram estes arquitectos destas casas, eles que
vagabundearam
pelos muitos sentidos dos meses,
dizendo: aqui fica uma casa, aqui outra, aqui outra,
para que se faça uma ordem, uma duração,
uma beleza contra a força divina?
(…)
Falemos de casas como quem fala da sua alma,
entre um incêndio,
junto ao modelo das searas,
na aprendizagem da paciência de vê-las erguer
e morrer com um pouco, um pouco
de beleza».
Herberto Hélder, 2004, OU O POEMA CONTÍNUO1

 

«…o homem habita como poeta…»

1. «A maneira como nós, os humanos, somos na terra é a habitação. Ser humano quer dizer: ser na terra como mortal, isto é: habitar», escreveu Heidegger numa conferência de 1951, Construir habitar pensar (Heidegger, 1958:173). O «somos» sublinhado por ele é uma forma do verbo mais forte da filosofia, o verbo «ser», e a segunda frase é uma definição, a operação por excelência do pensamento gnoseológico greco-europeu. Em 1927, Ser e Tempo, o livro que abriu o chamado existencialismo (que renegou), buscava ir mais além do que o seu mestre Husserl na tentativa de conseguir escapar ao dualismo desse pensamento greco-europeu. O dualismo joga entre oposições exclusivas: Céu/Terra antes de mais, donde alma/corpo – ela imortal, quase divina, ele gerado e mortal – em Platão, Agostinho, Lutero, Descartes, esta dependendo por sua vez também duma outra mais insidiosa, pois que partilhada por quase todos nós, sem o sabermos porventura: a oposição dentro/fora, trivialmente sujeito/objecto. Um sintoma de como esta oposição sobrevive como armadilha filosófica nas neurologias e psicologias como nas ciências sociais e humanas, é o recurso à noção de representação, isto é, a presença do objecto exterior na interioridade do sujeito. Insidiosa, já que esta oposição dentro/fora é uma das nossas evidências mais preciosas, e é por isso que não é nada fácil pensar sem dualismo: não basta querê-lo ou dizê-lo, já que este está em quase todos os conceitos do pensamento ocidental e sem eles não sabemos pensar.

2. Uma das grandes importâncias do pensamento de Heidegger 2 é justamente a de ter (quase) conseguido esse «salto» além do dualismo. No texto de 1927, o humano é caracterizado como «ser-o-aí» (Da-sein), como «ser-no-mundo», como ex-, exterioridade do ex-sistente (o tal do existencialismo). E também, em contraponto da imortalidade da alma, como ser mortal, finito, cujo saber-se assim, «existencialmente», permite acesso à sua autenticidade (termo que esteve muito em voga nos anos a seguir à guerra). Ora bem, na citação inicial do texto de 1951, os termos «ser» e «mortal» sugerem que definir o humano pela habitação na terra é a maneira que Heidegger teve, 25 anos mais tarde, de retomar as questões existenciais de Ser e Tempo deslocando-as para a história ocidental do pensamento, do ser. Tentarei seguir essa sugestão por minha conta e risco 3.

3. Habitar não é estar sem fazer nada, quer em casa quer no emprego fazemos como aprendemos que se faz, desde pequenos e ao longo de toda a vida, segundo os usos da nossa tribo (no sentido dos que nos rodeiam, nos ensinam a habitar). E é quase sempre fazer com os outros, e como os outros fazem. Em comum, pois: comunidade, em casa como no emprego. E este «em comum» repete-se muito parecido em todo o lado da mesma sociedade, trata-se dum «em comum»4 muito mais geral donde todos aprendem: «em comum» 4 é o que nos a aprender o que fazemos quando habitamos.

4. A dimensão social dos humanos (vistos como almas, sujeitos) é ignorada pela maior parte da filosofia europeia até há pouco tempo; é certo que Heidegger não fala de «sociedade», mas «habitar na terra» reenvia para ela. Ora, o dualismo filosófico, no que ao social diz respeito na história europeia recente, pegou em dois belos termos – «liberal», meta da modernidade, e «(bem) comum», da tradição medieval – e crismou-os com o sufixo «-ismo», opondo-os irreductivelmente, como individualismo5/colectivismo, cada um excluindo o outro. Pensar a habitação pode ajudar-nos a sair dessa oposição tão trágica. O ser-no-mundo (ser na sociedade, digamos) implica repensar o «sujeito»: em vez de se partir da consciência do adulto, há que pôr a questão da sua instituição como humano da nossa tribo pela aprendizagem dos seus usos, que são a maneira própria dessa tribo habitar na terra. Começar por aprender significa que se começa por se receber, por acolher, por múltiplas doações sociais que de fora nos vêm. Da mesma maneira que, em biologia, se começa por um ovo recebido de dois progenitores e se seguem doações (alimentos e oxigénio) vindas de fora que permitem crescer; o crescimento é o de quem (não ainda «alguém») aprendeu a saber, a saber fazer, e daí a tornar-se «alguém», a poder dizer «eu sei», «eu quero», «eu faço». De passivo, tornar-se activo, um habitante da sua tribo. O que exige que progenitores e mestres que ensinam, que doam língua e saber, se retirem para o deixar ser ele ou ela6. Sem que se possa dissociar o que se recebeu «passivamente» e o que se é «activamente»: dizia o poeta Manuel Gusmão que o poeta só dispõe para o seu poema das palavras dos outros. Como qualquer de nós, para falar, para pensar. É aliás o que nos leva frequentemente a conflitos, a querer ter razão, ser o mais hábil, e por aí fora: cada um de nós é indissociável e inconciliavelmente individual e social7, por isso as sociedades são dinâmicas. Seja, por exemplo, o sotaque da região ou da classe social numa voz que, ao telefone, é identificável pelos seus conhecidos. Assim como o é pela habilidade ou falta de jeito em tal ou tal uso social. O que «alma» e «sujeito» não deixam ver é que só «somos» pelo que crescemos e aprendemos, a diferença entre quem não sabe guiar um automóvel e aquele em que se torna após ter aprendido: a aprendizagem altera o sujeito.

5. Passivos – activos, é também o lugar do enigma essencial de cada um: nunca os outros sabem o que ele vai dizer ou fazer em resposta ao que se lhe disse ou fez. Enigma como «liberdade», sem recurso a alma ou espírito. Em resumo, cada humano recebe do «comum» social aquilo que lhe dá liberdade, isto é, a possibilidade ou capacidade de ser alguém mais ou menos valorizado. Sendo que o «próprio eu» é também doação enigmática que se «apropria» esse «comum» que lhe é doado, para se tornar «ele próprio», habitante da sua sociedade na terra8.

6. Ora, é óbvio que não se habita na rua: uma sociedade não é, como se crê muitas vezes, um conjunto de indivíduos, a população dum território, mas a rede organizada de unidades sociais de habitação, o sistema complexo dos usos que nessa terra se transmitem de geração em geração. «Terra» aliás é melhor do que «território», porque tem em conta a agricultura e o gado, tem em conta que ao nível biológico também vimos de inúmeras doações, e justamente a refeição – festas são almoços – é um dos momentos fortes das unidades sociais de habitação a que chamamos família, em que os seus vários membros se encontram como unidade social que se apropria do «comum». Uma família é uma unidade social em propriedade privada: é o «comum» que é privado duma potência sua para que a unidade social – sistemas regrados de usos – se possa reproduzir. O que lhe dá unidade é o próprio sistema dos usos quotidianos que encaixam uns nos outros, em que todos fazem parte desse sistema de usos, dessa unidade social. A palavra habitação usa-se correntemente para a família, mas as unidades sociais de tipo económico, em que se trabalha 8 horas por dia, são igualmente apropriações do «comum», recebido dos antepassados (e dos contemporâneos), também aqui é o «comum» que é assim «privado», apropriado: com efeito, tudo – capital, máquinas, matérias primas, saber técnico do pessoal – vem de «doações» do comum (de antepassados e contemporâneos).

7. Mas é claro que tudo isto só funciona se as doações múltiplas, incessantes, forem «esquecidas», ignoradas enquanto tais, pelos «próprios»9. Para eu dizer o que quero dizer, não posso lembrar-me da voz daqueles com quem aprendi as palavras que digo (se as ouvisse, seria alucinado, louco). Numa fábrica «privada», é necessário que se pense em «propriedade», mas, aquém do carácter jurídico do capital, o ponto essencial é a comunidade privada dos que trabalham, os seus usos sociais competentes coordenados uns aos outros; «privado» significa também que quem é «estranho» ao fabrico, a multidão dos que passam, tem que estar fora da fábrica para que ela possa funcionar. Por exemplo, nas lojas há sempre uma zona «privada», interdita a estranhos, como nas nossas casas há zonas mais «privadas» do que outras, sempre a defenderem-se do colectivo.

8. É às doações apropriadas por privação do «comum» que correspondem, não só os impostos, como a chamada «função social» das empresas (e famílias). Há uma ética da habitação ligada ao seu carácter «comunitário», para a qual chamava a atenção um antigo jornalista do Público, Joaquim Fidalgo: a confiança imensa que nos é pedida constantemente na qualidade do trabalho dos outros, anónimos, desconhecidos, cujos produtos usamos e consumimos quotidianamente. Se nos dermos conta de como, em relação a familiares, amigos e colegas, estamos constantemente na oscilação de sabermos se podemos, e até que ponto, fiarmo-nos neles, percebe-se que no «con-» deste confiarmos em quem não conhecemos, quantas vezes estrangeiros, percebe-se mais claramente como a habitação nos é «comum». E a ética essencial dos humanos em sociedades tão interdependentes é a da resposta a essa confiança anónima, da responsabilidade no que fazemos em relação ao comum que nos faz doação, resposta a pedir confiança por sua vez. Fazer bem o seu trabalho, no emprego como em casa, é o primeiro imperativo ético.

9. Termino regressando a Heidegger, à sua meditação do verso de Holderlin citado em epígrafe, em «…l'homme habite en poète…» (Heidegger, 1958). «Cheio de méritos, mas como poeta, o humano habita nesta terra». Quando a sua vida é penosa, ele olha acima de si e diz: «também eu, é assim que eu quero ser». Esse «olhar acima de si» é o olhar do poeta, para quem o sol e o azul da luz do dia, a lua e as estrelas recortadas na escuridão da noite, são o que apela ao habitar, poeta que escuta o apelo da língua culta – passivo e activo por excelência, lembre-se o tema romântico da «inspiração» –; a poesia mede o humano acima do que ele pode e abre a habitação a ir mais além do que, na grande literatura, nos foi doado pelos antepassados. Como outrora os mitos do divino, Heideggeer convida-nos a entender que «a poesia é o habitar inicial», o que «edifica o ser da habitação». Como quem ama e sonha a futura morada, como o arquitecto enquanto artista, diria eu correndo o risco de psicologizar, «a poesia é a potência fundamental da habitação humana». «Cheios de méritos»: catedrais góticas e palácios reais de outrora, a Ilíada, a Bíblia e a Divina Comédia, é este passado altivo com suas obscuridades e claridades, fonte de grande espanto, que, «em primeiro lugar, faz da habitação uma habitação; a poesia é o verdadeiro "fazer habitar"». Nós, altivos e mortais, em comum.

 

Referências bibliográficas

Belo, Fernando (2009), La Philosophie avec Sciences au XXe Siècle, L'Harmattan, Paris, pp. 236.

Belo, Fernando (2007), Le Jeu des Sciences avec Heidegger et Derrida, vol. 1, Scène, retraits et régulation de l'aléatoire, vol. 2. La Phénoménologie reformulée, en vérité, L'Harmattan, Paris, pp. 467 e 664.

Heidegger, Martin (1958), Essais et Conférences, trad. A., Préau, Gallimard, Paris        [ Links ]

Heidegger, Martin (1985) [1927], Être et Temps, trad. E. Martineau, Paris, ed. hors commerce.

 

Notas

1 Epígrafe da responsabilidade da Coordenação do Dossier.

2 Apesar do seu nazismo nos anos 30! O que nos obriga a ter cuidado com os efeitos éticos que os nossos discursos podem ter em política.

3 Tendo em conta o pensamento de J. Derrida, pós-husserliano e pós-heideggeriano, muito mais voltado do que qualquer dos seus mestres para as questões das ciências sociais.

4 Inspiro-me neste motivo do filósofo Jean-Luc Nancy, em várias das suas obras. A «doação» inspira-se por sua vez em Heidegger, a «aprendizagem» e os «usos» na iterabilidade de Derrida. Para mais ampla informação, Belo 2009, ou mesmo Belo 2007.

5 Na crise actual (2009-10), o individualismo manifesta-se na maneira como um «patrão» se julga dono do que é seu, podendo fazer como quer. Velha tradição do direito romano: poder usar e abusar da sua propriedade, sem a menor atenção aos outros.

6 Em terminologia heideggeriana: doação que faz vir à presença, retiro, dissimulação dessa doação, que deixa vir à presença. E tudo se faz a pouco e pouco, crescer como aprender a conta gotas, preservando-se a pequenez do que cresce diante do adulto gigante que dá e deixa, sem que este o esmague. Estamos todos muito habituados, mas é algo de fabuloso!

7 É o que o dualismo separa e opõe, sensível à conflictualidade. Em todo o lado onde há oposições, há que buscar o indissociável que é esquecido por elas.

8 Este «comum» vale por «sociedade» que, na dimensão da habitação, é o equivalente de «espécie biológica» e de «língua» nas dimensões da vida e da linguagem. Com algum rigor: é o sistema de usos doados numa dada terra de antepassados em descendentes, o qual sistema é potente, isto é capaz de doar e deixar ser a reprodução de cada unidade social na sua relação às outras, em comum com elas.

9 Apenas em sonhos temos vislumbres delas, quando antepassados estranhos se manifestam aquém da nossa própria intimidade e consciência própria. O motivo psicanalítico do inconsciente é das raras descobertas científicas no que diz respeito a estas questões filosóficas.

 

Fernando Belo tem licenciatura em engenharia civil (1956, I. S. T.) e em teologia (1968, I. C. Paris), doutoramento na Faculdade de Letras de Lisboa (1989), onde foi docente de Filosofia da Linguagem de 1975-2003. Além de vários livros em português: 1974 Lecture matérialiste de l'évangile de Marc, récit, pratique, idéologie, Cerf, [tr. espanhola alemã e americana]; 2007 Le Jeu des Sciences avec Heidegger et Derrida, vol. 1. Scène, retraits et régulation de l'aléatoire, vol. 2. La Phénoménologie reformulée, en vérité, L'Harmattan; 2009 La Philosophie avec Sciences au XXe siècle, L'Harmattan. fernando_belo@hotmail.com

 

Artigo recebido em 24 Fevereiro de 2010 e aceite para publicação em 15 de Agosto de 2010.

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