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Ex aequo

versão impressa ISSN 0874-5560

Ex aequo  n.23 Vila Franca de Xira  2011

 

Introdução: Género e Intimidades

 

Anália Torres*

*Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas

 

A resposta ao apelo lançado neste número da Ex-aequo foi muito expressiva. Recebemos um conjunto vasto de artigos bem estruturados e relevantes, que corresponderam, na sua grande maioria, ao desafio temático lançado. O trabalho de selecção efectuado pelos e pelas referees foi por isso mesmo difícil, exigente e moroso. Nem todos os artigos seleccionados e revistos estiveram prontos a tempo de poder ser incluídos no dossier. Mas não deixarão de ser publicados noutros números da revista.

No plano substantivo temos um número muito rico, analisando de várias perspectivas disciplinares aspectos diversos do tema Género e Intimidades – dos menos abordados e invisíveis aos mais comuns – e diversificado no plano linguístico – dois artigos em castelhano, dois em francês, três em português e um em inglês – o que confirma o carácter internacional da Ex-aequo.

Desafiando visões comuns e imagens estereotipadas, o artigo da investigadora brasileira Alda Britto da Motta mostra-nos quão frequente é o obscurecimento das diversas situações específicas vividas pelas mulheres idosas. Trata-se de realidades que ficam na sombra, tanto porque a luz tende a iluminar apenas situações vividas por mulheres mais novas, como porque em relação às mais velhas se associam imagens desfocadas ou mitos. Sabe-se que o «banho» cultural em que as mulheres que têm hoje 80 ou 90 anos estiveram mergulhadas foi o da passividade e conformismo face à dominação masculina. Mas são menos salientadas as formas de resistência a essa dominação e as aprendizagens associadas a percursos femininos de mulheres idosas sozinhas – forçadas pela separação ou viuvez ou por vontade própria. Esses percursos traduzem-se muitas vezes em maior protagonismo e liberdade de acção através das formas de participação na vida pública ou de sociabilidade extradoméstica. Fala-se muito da idosa dependente, mas pouco da que é fonte indispensável de recursos e rendimentos financeiros e/ou cuidadora de todos. A violência contra as mulheres, associada à violência sexual no contexto da família, perdeu o carácter de tema tabu mas é muito menos frequente abordar a realidade do abuso através da espoliação dos rendimentos e das pensões das mulheres idosas por parte dos seus filhos ou filhas. É sobre estas realidades que Alda Britto da Motta se debruça sintetizando, de forma muito viva e atraente, resultados de anos de investigação e revelando como a pesquisa é fértil também para questionar ideias feitas das próprias investigadoras.

Em «O Sexo dos Anjos», Luísa Pimentel, a partir de resultados de investigação, mostra as profundas assimetrias de género associadas aos cuidados a dependentes. Embora ao nível discursivo muitos defendam responsabilidades idênticas de mulheres e homens nesse tipo de cuidados não só essa igualdade se não verifica na prática, como se revelam ambivalências ao nível dos discursos. Distinguindo entre meios geográficos e sociais, a autora mostra como as assimetrias de género os atravessam e como ainda prevalece a divisão de papéis patriarcal: as mulheres cuidam, os homens decidem. Luísa Pimentel mostra ainda como estes cuidados são em geral pouco valorizados e têm, alem disso, efeitos negativos de curto e médio prazo, nas trajectórias femininas, aprofundando as desigualdades existentes. Os seus resultados vêm por outro lado confirmar conclusões de outras pesquisas que mostram como, em Portugal, e ao contrário do que geralmente se pensa e se afirma, são no essencial familiares – mulheres – que cuidam dos/as idosos/as dependentes. As soluções institucionais constituem para estas situações uma percentagem muito diminuta. Conclui-se facilmente qual é o sexo dos «anjos» cuidadores.

Juana González Moreno em «La conciliación de la vida familiar y de la vida laboral en el Derecho Comunitario. Un análisis jurídico – feminista» mostra como a problemática da conciliação da vida laboral com a vida familiar no Direito Comunitário Europeu está atravessada por uma perspectiva que não contempla a necessidade da partilha equitativa de responsabilidades entre mulheres e homens das tarefas domésticas e dos cuidados com os filhos. No Direito Comunitário a conciliação das responsabilidades familiares e profissionais não é considerada uma questão de cidadania. A cidadania, por sua vez, tende a ser entendida como participação no espaço público não contemplando outras aspectos essenciais da vida dos cidadãos, aspectos considerados como privados e cuja responsabilidade têm sido atribuídas às mulheres, condicionando fortemente as suas vidas e a sua disponibilidade para a participação. Trata-se assim de um entendimento de cidadania e de espaço púbico segundo o modo de vida masculino de onde se excluem as necessidades inerentes às actividades de reprodução da vida humana e social. Nesta perspectiva e para a autora, o Direito Comunitário Europeu revela um viés masculino e de género.

O artigo de Marie-Carmen Garcia, «Maitresses de hommes mariés. Raison et sentiments dans les amours adulteres au prisme du genre», confronta-nos com aspectos menos visíveis e pouco investigados como são o envolvimento amoroso de mulheres sozinhas com homens casados. A autora considera que a análise deste tipo de envolvimento amoroso é um excelente ponto de observação para avaliar as relações que se estabelecem entre o modelo de amor romântico, o ideal conjugal contemporâneo e o sistema de género. E na verdade o texto mostra-nos de uma forma muito convincente como se entrelaçam estas relações. Marie-Carmen Garcia conclui através da pesquisa que de um lado temos os homens «infiéis» que conseguem através das suas relações paralelas conciliar o amor paixão com o amor estável e duradouro; trata-se assim de homens com duas mulheres, modelo de dominação masculina fundado numa lógica patriarcal arcaica. Mesmo que vivam a extraconjugalidade com intensidade amorosa, na verdade, esses homens não querem pôr em causa o seu estatuto de chefe de família. E, do outro, temos as amantes que apostam na sua relação com estes homens casados como o verdadeiro «amor», o amor fusional e romântico – considerado com ou sem conivência masculina – a relação conjugal que o homem conserva como um «erro». Elas esperam pelo divórcio destes homens – que acaba por nunca acontecer – e contribuem de forma poderosa para o reforço do ego masculino, reproduzindo o tradicional papel feminino da conformidade e da espera.

Com «The maternal is political. Exploring mothering among Women with disability» Paula Pinto introduz-nos a um tema raramente abordado na investigação científica em ciências sociais. Explorando as experiências de maternidade de mães com deficiência na sociedade portuguesa, ela mostra-nos como as narrativas destas mulheres reproduzem discursos comuns sobre a maternidade e o cuidar, mas também como eles se diferenciam de forma significativa. A maternidade nestes casos surge como forma de resistência, de afirmação e de autodeterminação na escolha do percurso de vida. Por isso, o maternal é também aqui político. A leitura dos depoimentos das entrevistadas, bem como a análise das narrativas desenvolvida pela autora, tão bem articulada e rica, mostra como a pesquisa sobre estes temas não se constitui apenas como acréscimo de conhecimento mas também como fonte de experiência de vida.

Com o artigo o «Impacto da orientação sexual e do género na parentalidade: uma revisão dos estudos empíricos com famílias homoparentais» Jorge Gato sistematiza e discute um conjunto de resultados de pesquisa sobre a parentalidade em casais de lésbicas e gays. Contestando o paradigma essencialista que associa diferenças biológicas e reprodutivas entre homens e mulheres a diferenças no comportamento parental, ele clarifica que o modelo da família heterossexual como modelo ideal de parentalidade corresponde mais a uma perspectiva ideológica do que a um facto cientificamente provado. Concluindo que os estudos em que se compara a homoparentalidade com a parentalidade heterossexual confirmam a existência de muitas semelhanças, centra-se depois na identificação das diferenças encontradas a respeito de várias dimensões da parentalidade. E tanto quanto às primeiras como quanto às segundas chama a atenção que para a análise é fundamental entrar em linha de conta com a dimensão do género. Procurando também sistematizar os resultados de estudos sobre os efeitos da homoparentalidade no desenvolvimento psicológico das crianças, não deixa de desenvolver depois reflexões metodológicas e epistemológicas sobre os limites das investigações analisadas. Trata-se de um texto muito rico em informação e reflexão sobre o tema em causa.

«Desnaturalización de la sexualidad: última frontera de la democracia. Formas afectivas y parentales a la prueba de la noción de género» de Caterina Rea vem directamente ao encontro dos temas discutidos em vários textos deste Dossier. Com efeito, ele sugere que as novas formas e laços parentais, em particular a respeito da homoparentalidade, suscitam um debate ideológico e cultural sobre o estatuto das normas que regulam o campo da sexualidade e da filiação. Sustenta o contexto historicamente situado das normas jurídicas e como elas se devem distanciar de uma lógica que atribui aos factores biológicos a regulação «natural» destas dimensões da vida. Considera ainda que as novas formas de organização familiar vêm alargar e estender à esfera privada as perspectivas da democracia deslocando mesmo as fronteiras entre o privado e o público. Tal como propunhamos no apelo para artigos que lançámos com este Dossier, o artigo discute as fronteiras ente público e privado e/ou as relações entre as duas esferas, com o privado a tornar-se arena de lutas políticas e debates apaixonados.

Finalmente, Maks Bannens, com «La reconnaissance légale du couple de même sexe en Europe», procura responder a três questões de análise comparativa: por que é que certos países se legislou mais tarde do que noutros? Por que razões certos países criaram um regime específico reservado aos casais do mesmo sexo, enquanto outros estabeleceram um estatuto universal aberto a todos os casais? Porque fazem os casais do mesmo sexo uso do novo estatuto em certos países e muito pouco noutros?

Depois de identificar diferenças entre os países europeus através de uma cronologia relativa aos diferentes momentos legislativos, o autor procura algumas variáveis explicativas para as diferenças encontradas. A resposta às perguntas sugeridas no início reenviam depois para a discussão sobre contextos culturais e tradições legislativas dos diferentes países europeus.

Com este estimulante conjunto de artigos analisam-se novas e velhas questões à volta do íntimo e do género. Tanto se iluminam domínios que permanecem na sombra – as velhas também, as amantes de homens casados – como se dá voz a quem é habitualmente remetido ao silêncio – mães deficientes – ou ainda são discutidos temas antes considerados do domínio privado – mulheres nos cuidados a dependentes, desnaturalização da sexualidade, viés de género no direito comunitário, homoparentalidade, casamento entre pessoas do mesmo sexo. E tal como tínhamos sugerido no apelo inicial, parece haver um fio condutor global: as questões da igualdade de género e dos feminismos, dos direitos humanos e da não discriminação pela orientação sexual implicam obrigatoriamente um salto da arena privada para a arena pública reforçando mais uma vez a velha ideia de que o pessoal é político.

Boas leituras!

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